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CAPÍTULO 3 CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.4 As categorias de análise utilizadas no estudo do corpus

3.4.6 Dêixis espácio-temporal, dêixis enciclopédica e memória coletiva

A dêixis enunciativa trata da instauração, via ato enunciativo, de uma dêixis espácio-temporal, constituída em função do próprio universo do discurso. Define-se, assim, uma instância de enunciação legítima e delimitam-se a cena e a cronologia que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação. A análise dos textos do corpus será direcionada, sobretudo, pelos casos de dêiticos temporais. Maingueneau (2016, p. 114; grifos do original) enumera essas categorias a seguir:

(...) as marcas do presente, passado e futuro ligadas ao radical do verbo, ou as palavras ou grupo de palavras que portam um valor temporal, como ontem,

amanhã, hoje, há dois dias, dentro de um ano etc. que têm como referência o

momento de sua enunciação. Com efeito, dentro de um ano designa o tempo de um ano a partir do momento em que se fala, o advérbio ontem designa um dia anterior,

hoje designa o dia mesmo da enunciação (grifos do original) 44.

Nessa abordagem, levamos em conta também o estudo de Paveau (2006) para aprofundar essa questão, uma vez que a autora defende que a dêixis configura um elemento central de acesso ao quadro pré-discursivo. Isso porque tal categoria constitui um dispositivo que assegura, de uma só vez, a referência e a construção enunciativa do discurso. A

44 Tradução livre de: « (...) les marques de présent, passé, futur attachées au radical du verbe, ou les mots ou groupes de mots à valeur temporelle comme hier, demain, aujourd’hui, il y a deux jours, dans un an, etc., qui ont pour repère le moment de leur énonciation. En effet, dans un an désigne une durée d’une année à partir du moment où l’on parle, l’adverbe hier désigne le jour antérieur, aujordʼhui désigne le jour même de l’énonciation. »

pesquisadora baseou-se nos conceitos de competência enciclopédica, competência discursiva e competência situacional, com o fim de elaborar parte de sua proposta. Segundo ela, as duas últimas categorias de análise não permitem um acesso direto ao conhecimento, às crenças e aos discursos anteriores que constituem os quadros pré-dicursivos. Vejamos então alguns aspectos centrais de sua teoria para contextualizarmos o estudo da dêixis enciclopédica.

Paveau (2006) define o pré-discurso como um conjunto de quadros pré- discursivos compostos por saberes, crenças e práticas que condicionam a produção e a interpretação do discurso. Além de esses quadros possuírem seis propriedades específicas (coletividade, imaterialidade, transmissibilidade, experimentabilidade, intersubjetividade e discursividade), eles “são temporalmente anteriores ao discurso no eixo diacrônico de sua produção (quer essa anterioridade seja real, como um saber pré-existente, ou resulte de um efeito de discurso, como o efeito de evidência), mas são localizados nas relações entre o sujeito e seu meio social, cultural, histórico e tecnológico" 45 (PAVEAU, 2006, p. 128). Esses dados evidenciam, portanto, um maior grau de detalhamento teórico-metodológico do conceito de saber enciclopédico (MAINGUENEAU, 1996) e nos interessará particularmente no estudo da dêixis.

Paveau (2006) retoma a noção de “dêixis memorial” proposta por T. Fraser e A. Joly e verifica que a dêixis ativa o compartilhamento de saberes e crenças pré-discursivas. Porém, enquanto o método utilizado por esses autores ancora-se na categoria de análise “dêixis memorial” para o estudo exclusivo de construções nominais, Paveau (2006) propõe uma metodologia mais ampla a partir do termo “dêixis enciclopédica” com o qual se analisam duas formas da materialidade do enunciado, que a autora classifica desta forma:

- Caso ela se inscreva por meio de categorias dêiticas tradicionais na teoria enunciativa (pronomes pessoais, desinências verbais, possessivos, demonstrativos, advérbios de lugar e de tempo) que permitem o acesso a uma memória coletiva pressuposta pelo locutor, eu a denomino dêixis enciclopédica marcada.

- Caso ela se inscreva de maneira mais abrangente, através de certas formas lexicais ou sintáticas que não se enquadram no estoque habitual das formas dêiticas e que convocam os dados culturais e memoriais compartilhados pelos protagonistas da enunciação e por seu grupo de referência; tem-se, então, um fenômeno de dêixis indireta, que faz referência a um conjunto de saberes e crenças manifestadas de forma mais difusa. Eu a denomino dêixis enciclopédica não marcada46 (PAVEAU,

2006, p. 174, grifos do original.).

45 Tradução livre de: ‹‹sont temporellement antérieurs aux discours sur l’axe diachronique de leur production

(que cette antériorité soit réelle, comme un savoir préexistant, ou résulte d’un effet des discours, comme l’effet d’évidence) mais sont localisés dans les relations entre le sujet et son environnement social, culturel, historique et technologique.››.

46 Tradução livre de: « - soit elle s’y inscrit à travers les outils déictiques traditionnels dans la théorie énonciative

(pronoms personnels, désinences verbales, possessifs, démonstratifs, adverbes de lieu et de temps) qui permettent l’accès à une mémoire collective présupposée par le locuteur; je l’appelle deixis encyclopédique

Nesse sentido, procuraremos estudar os dêiticos temporais segundo a perspectiva de Maingueneau (2016), articulando essa abordagem à noção de dêixis enciclopédica marcada. Isso porque, ao nos defrontarmos com esses elementos que julgamos ser relevantes para a análise do corpus, será necessário verificar se eles se referem apenas à cena de enunciação ou se, por tabela, tais marcas dêiticas poderiam também revelar aspectos da memória coletiva pressuposta pelo enunciador das intervenções dos representantes permanentes do Brasil, da Espanha e da França no CSNU, particularmente os saberes, as crenças e as práticas anteriores ao referido discurso (textos do corpus).

Por fim, o estudo em torno dessa noção também será desenvolvido em consonância com o guia de análise elaborado por Krieg-Planque (2014), uma vez que a autora dedicou-se ao estudo do discurso institucional, ou seja, justamente aqueles discursos que se engendram na/da enunciação de sujeitos engajados em partidos políticos, sindicatos, fundações, organizações públicas e privadas, instituições políticas e públicas nacionais, internacionais e transnacionais.