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CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO E DO

2.2 Contextualização do discurso diplomático

2.2.1 O domínio discursivo das Relações Internacionais e a questão da diplomacia

Ao adotarmos as ferramentas teórico-metodológicas de uma disciplina que nasce e persiste com o objetivo de tomar o discurso como um objeto inter/multidisciplinar, deparamo- nos com a necessidade de expor alguns pontos-chave do domínio a que a diplomacia está vinculada de forma mais direta. Essa contextualização procurou atender a dois aspectos essenciais para o desenvolvimento de nossa pesquisa. O primeiro foi o fato de que nos servimos deles para a compreensão dos aspectos sociais atrelados ao discurso diplomático. O segundo foi a possibilidade de delimitarmos nossos objetivos, de modo a permitir que a pesquisa dialogasse com outros campos de estudo, mas sem perder o vínculo privilegiado com os Estudos Linguísticos (Discursivos), ainda que os resultados obtidos possam interessar a pesquisadores de diferentes áreas de investigação.

Pecequilo (2012) inicia sua obra de introdução às Relações Internacionais colocando em evidência os fatos que exigem a alocação da origem dessa disciplina no seio das Ciências Sociais ou das Ciências Humanas. Tais fatos são resumidos por uma finalidade comum a todas as ciências desse campo: o estudo que focaliza o homem a partir de uma “visão interpretativa e subjetiva do sujeito que gera, existe e transforma as sociedades e seus espaços domésticos e internacionais” (PECEQUILO, 2012, p. 16). Para ela, o surgimento dessa disciplina ocorreu em razão da necessidade de se estudar a forma como uma sociedade se relaciona com o “mundo de fora”, principalmente tendo em vista a evolução dos relacionamentos além-fronteiras, ou seja, a ampliação das relações internacionais. Vejamos:

Assim, define-se como o objetivo de estudo das Relações Internacionais os atores, acontecimentos e fenômenos que existem e interagem no sistema internacional, ou seja, além das fronteiras domésticas das sociedades. Trata-se de uma disciplina dedicada à análise do que acontece “no mundo de fora” destas sociedades, avaliando suas interações, o surgimento de novos atores internacionais e os fluxos diversos do cenário mundial. As Relações Internacionais consistem em uma forma organizada de pensar as relações sociais que se estabelecem além das fronteiras dos Estados, fornecendo-nos parâmetros e instrumentais para interpretar e compreender este campo de ação externo (...). As guerras, a paz, a diplomacia, as interações econômicas e culturais entre diferentes povos, os fluxos naturais, as comunicações são alguns dos elementos que compõem a esfera do internacional e que têm implicações e efeitos sobre os homens (PECEQUILLO, 2012, p. 15).

A autora aponta dois tipos de atores que atuam no cenário das Relações Internacionais: os atores estatais e os não estatais. Os primeiros referem-se aos Estados, enquanto os segundos dizem respeito a dois subgrupos: a) as Organizações Internacionais Governamentais ou Intergovernamentais (OIG); b) as Forças Transnacionais (FTs). A autora afirma ainda que, até o século XX, os Estados eram praticamente os únicos agentes desse cenário, lembrando que a concepção de Estado teve origem no Tratado de Vestfália, em 1648. Foi a partir dele que um território passou a ser considerado Estado, tendo em vista os princípios clássicos que determinavam a sua soberania e a sua autonomia com base jurídica no direito internacional. Além disso, também há os aspectos de território, população e governo que devem ser levados em conta na composição de um Estado.

No que diz respeito ao governo, é importante considerar a divisão entre regimes democráticos e autoritários. Nos primeiros, tem-se a participação da sociedade na escolha de seus representantes. Já no segundo há uma monopolização nas decisões por parte das camadas sociais dirigentes. A forma de governo pode, porém, variar dentro de um regime democrático. Por exemplo, “o Brasil e os Estados Unidos são repúblicas presidencialistas, a França é uma república presidencialista e parlamentarista, enquanto a Espanha e a Inglaterra são monarquias parlamentaristas” (PECEQUILO, 2012, p. 48).

Vimos no capítulo I que esses dados foram utilizados como justificativa para a formação do corpus do presente trabalho. Aqui, apresentamos, de forma mais detalhada, algumas considerações sobre esse fato. De acordo com Pecequilo (2012, p. 50-51), as práticas diplomáticas são vistas geralmente como políticas de Estado: “políticas que são elaboradas a partir de uma visão abrangente do que é o interesse nacional, nascidas de uma burocracia especializada e estável, não sujeitas a alterações bruscas de governo”. Nesse contexto, indagamos, novamente, se as diferenças de governo já apontadas entre Brasil, Espanha e França poderiam se projetar nos discursos/intervenções de seus representantes permanentes no CSNU. Essa possibilidade pode ser pensada a partir da própria origem do termo Estado.

O surgimento do conceito de raison d’état e a instauração de uma forma moderna no tratamento das relações internacionais têm origem na França do século XVII, com o cardeal Richelieu. Foi a partir de então que tais relações passaram a ser baseadas na concepção de estado-nação, tomando como objetivo permanente os próprios interesses nacionais. Aliás, é por essa razão que Richelieu é considerado o pai do moderno sistema de Estados.

De acordo com Kissinger (2012, p. 42), Richelieu tomou partido dos príncipes protestantes “seguindo o que hoje chamaríamos interesse da segurança nacional [que] foi então rotulado – pela primeira vez – de raison d’état”, contrariando, assim, os interesses do Sacro Imperador Romano, o Habsburgo Fernando II, na sua tentativa de (re)estabelecer a universalidade católica e eliminar o protestantismo na Europa Central. Dava-se origem, assim, à Guerra dos Trinta Anos, em 1618. Essa guerra chegou ao fim com o já citado Tratado de Vestfália (1648). A França não apenas se tornou o país dominante na Europa, mas, no século seguinte, “a raison d’état passou a ser o princípio orientador da diplomacia europeia” (KISSINGER, 2012, p. 47).

Assim, quando apresentamos a possibilidade de manifestação das diferenças entre governos na representatividade do Estado, estamos considerando fatos históricos como este. Isso porque acreditamos que eles podem implicar modulações culturais diferentes. De qualquer forma, o predomínio do Estado sobre o Governo nas práticas diplomáticas é ainda verificado a partir do seguinte dado apontado no trabalho de Pecequilo (2012): cada Estado possui regras internas próprias e uma Constituição Nacional. Nesta são determinadas, por exemplo, questões relacionadas à competência no campo das Relações Internacionais. Conforme a autora, “no caso do Brasil, os responsáveis pelas questões internacionais são o Executivo, o Presidente da República e o Ministério das Relações Exteriores, subordinado à presidência” (PECEQUILO, 2012, p. 49).

Aqui é preciso levar em conta o conceito de Estado enquanto unidade administrativa de um território. Tal unidade é formada por um conjunto de instituições públicas. Uma dessas instituições é o Governo, de caráter transitório, que tem por função administrar o Estado. Depreende-se da posição de Pecequilo (2012) que as práticas diplomáticas tenderiam a neutralizar alguns aspectos governamentais. No entanto, a própria autora ressalta as ponderações de especialistas sobre um perfil próprio da política externa em cada um dos diferentes governos (FHC, Collor, Itamar Franco e Lula). A título de exemplo dessa perspectiva de análise, citamos o artigo Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula, no qual Almeida (2004) estudou a relação entre a política externa do governo Lula e as propostas e as posições tradicionais do Partido dos Trabalhadores.

Para nós, no caso dos representantes permanentes, não há indícios de que seus posicionamentos majoritários seriam de um governo específico. Assim, assumimos, nesta pesquisa, que o representante permanente age no CSNU, sobretudo, em nome de seu Estado, o que não nos impede de trabalhar com a hipótese de que as três diferentes formas de governo de Brasil, Espanha e França poderiam se refletir, de alguma maneira, nos textos do corpus.

Por isso voltaremos a essa questão em outros momentos da pesquisa. Afinal, ainda que o discurso diplomático tenha a finalidade de neutralizar as diferentes formas de governo, acreditamos que elas podem aparecer por razões culturais.

Levantamos ainda a hipótese de que, se elas não se manifestassem nos textos do corpus, talvez aparecessem em outros textos, uma vez que o emprego das noções de Estado e de governo democrático parece ocorrer em situações muito diferentes. Nesse sentido, seria necessário fazer uma comparação mais abrangente em termos sócio-políticos entre os três Estados, orientada por outros objetivos que fogem ao escopo central desta pesquisa.

Tratamos, então, por ora, das semelhanças entre os três Estados aqui contemplados. Vimos, no início desta seção, que disciplinas como as Relações Internacionais se interessam pelo estudo do homem, com o fim de interpretar os sujeitos que fazem a sociedade emergir e se transformar em espaços nacionais e internacionais. Um desses sujeitos, cuja função é representar o seu Estado diante de outros Estados ou diante de organizações internacionais, é o embaixador. Por isso, na próxima seção, abordaremos a evolução, no âmbito da História, de um dos principais atores do campo da diplomacia: o embaixador, assim como a sua relação com o Estado. Tudo isso para compreendermos o status desse sujeito, o que nos permitirá, posteriormente, associá-lo ao estudo dos textos do corpus