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CAPÍTULO 3 CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.3 O Conselho de Segurança da ONU e o discurso institucional

A delimitação dos textos do corpus da presente pesquisa originou-se da leitura que fizemos da obra de Krieg-Planque (2014), na qual a autora se dedica ao estudo do discurso institucional. Alguns exemplos de discursos que se constituíram como objeto de sua pesquisa foram aqueles tipos de discurso que se engendram na/da enunciação de sujeitos engajados em partidos políticos, sindicatos, fundações, organizações públicas e privadas, instituições políticas e públicas nacionais, internacionais e transnacionais.

No que diz respeito às políticas internacionais, a autora cita inclusive a própria Organização das Nações Unidas para demonstrar que certas instituições existem justamente por produzir determinados discursos. Ilustra esse fato com a demanda de produção de textos como atas de debates, proposições de lei, resoluções, declarações etc., associada à referida instituição. Essa associação lhe permite retomar a noção de comunidade discursiva, com o fim de designar os grupos sociais que não existem independentemente da enunciação dos textos que eles produzem e difundem, segundo normas reiteradamente codificadas.

Um dos trabalhos citados por Krieg-Planque (2014), para ilustrar uma abordagem da Análise do discurso institucional, é o de Duchene (2004), professor de Sociologia da Linguagem e Plurilinguismo da Universidade de Friburgo (Suíça), que inclusive já foi citado por nós anteriormente. Sua pesquisa girou em torno de um documento típico das Nações Unidas: a ata resumida dos debates da ONU. O autor observa, primeiramente, que os

documentos que emergem no seio dessa instituição são de natureza diversa: textos legislativos (instrumentos internacionais), resoluções, atas e os discursos de especialistas, ressaltando que a grande maioria desses documentos está disponível ao público.

Duchene (2004) justifica sua análise das atas resumidas de debates da ONU pelo fato de elas fazerem parte de um funcionamento importante dessa organização. Segundo o autor, esse documento constitui um traço textual (escrito) importante dos debates realizados em diferentes sessões de comissões da ONU. Além de estar submetido a regras de elaboração estritas, conforme um manual de redação de responsabilidade dos departamentos de Linguística (seção francesa e inglesa) da instituição, a finalidade desse gênero de discurso é ser um reflexo objetivo dos discursos aos quais faz referência. Isso permite compreender a imagem que a instituição projeta dela mesma, fato que estaria em conformidade com os discursos da ONU no sentido que lhes atribuiu Maingueneau (2002; 2008b).

No estudo que faz – e que foi (re)publicado em uma coletânea organizada no Brasil (MAINGUENEAU, 2008b) –, o autor examinou o discurso das organizações internacionais, questionando se ele seria um discurso constituinte. Sua análise voltou-se para o gênero relatório. A partir dela, Maingueneau verificou que as organizações projetam representações de si mesmas para o mundo exterior. Isso porque os relatórios possuem a finalidade de falar dos problemas da humanidade, mas sua elaboração é feita localmente. Por isso, tais lugares institucionais restritos não são apagados de sua produção. Para ele, “os gêneros de discurso específicos dessas organizações não surgem como um ‘complemento’ que manifestaria os conteúdos do pensamento que já estão lá; eles são, ao mesmo tempo, seu produto e a condição de sua identidade” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 142).

No caso da presente pesquisa, trabalhamos com um gênero de discurso diferente daqueles focalizados em Duchene (2004) e Maingueneau (2008b). Por acreditarmos que as análises das intervenções dos representantes permanentes no CSNU revelariam traços discursivos de sua constituição diferentes daqueles apreendidos nesses dois trabalhos, lançamos mão das categorias de análise expostas em 3.4, com o fim de evidenciar, de um lado, as coerções linguístico-discursivas impostas pelo quadro institucional do CSNU a esse gênero de discurso; de outro, a projeção de uma imagem não apenas desse órgão, mas, sobretudo, de enunciadores que representam três Estados diferentes: Brasil, Espanha e França. Dessas imagens, projetadas em seus respectivos discursos, emergiriam suas faces diplomáticas multilaterais, demarcando posicionamentos particulares no seio desse organismo internacional.

Para isso, assumimos o posicionamento de Krieg-Planque (2014) de que, dentro de toda organização, nos deparamos com pessoas e/ou serviços que contribuem para a produção do discurso, particularmente em relação às regularidades e às normas estabelecidas por/para determinados gêneros. De acordo com a autora, os pesquisadores que tomam o discurso institucional como objeto de estudo podem, por exemplo, focalizar o papel que os atores desempenham no desenvolvimento de uma “linguagem comum”, com o fim de identificar os documentos que são regidos em sintonia com determinadas normas. É o que pretendemos verificar em relação às intervenções dos representantes permanentes no CSNU.

Essa proposta, não obstante, exigiu-nos repensar a própria noção de discurso institucional. Vimos que Duchene (2004) propôs uma descrição para as atas resumidas da ONU, ressaltando que a finalidade desse gênero de discurso é ser um reflexo objetivo dos discursos aos quais faz referência. Nesse sentido, o termo discurso institucional parece neutralizar certas características do estatuto dos sujeitos que contribuem para a produção desse discurso. A partir do momento que trabalhamos com a hipótese de que os representantes permanentes projetariam não apenas a imagem do CSNU, mas também a de seus Estados, algumas características advindas do estatuto do sujeito ganham maior relevância. Por essa razão, pretendemos também propor uma revisão terminológica por meio da qual a classificação de gêneros como as intervenções de representantes permanentes no CSNU revelaria, de forma mais explícita, algumas de suas características. Assim, acreditamos que seria mais produtivo falar em gênero de discurso estatutário-institucional.

A produtividade desse termo depende, evidentemente, das análises que realizaremos. Ela está ligada a algumas das categorias de análise que serão expostas na seção subsequente e será retomada em 4.11. Nessa subseção, proporemos um cotejo das análises realizadas de 4.1 a 4.10 com o fim de apresentarmos uma definição do gênero de discurso intervenções de representantes permanentes no CSNU. Se a nossa hipótese de que esse gênero porta características linguístico-discursivas advindas de uma projeção enunciativa bidimensional – I) a do sujeito que manifesta elementos socioculturais de seu Estado; II) a do sujeito que se concentra na instituição em foco (Conselho de Segurança das Nações Unidas), buscando ater-se a suas normas e recomendações – seja confirmada, passaremos a defender o conceito de gênero de discurso estatutário-institucional para a classificação de tais casos.