• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.4 As categorias de análise utilizadas no estudo do corpus

3.4.2 Médium e valência genérica

As propostas teórico-metodológicas de Maingueneau (2016) reservam um lugar de destaque para o exame da manifestação material do discurso, envolvendo tanto o seu suporte como o seu transporte. Ao tratar dessa questão, o autor nos lembra de que atualmente não devemos considerar o médium apenas com o objetivo de fixar ou de transportar

determinado discurso. Assim, tal categoria deve ser tomada, sobretudo como um elemento discursivo que pode impor conteúdos e dirigir seus usos, tanto que uma alteração do médium pode acarretar a modificação do conjunto de um gênero de discurso. Um exemplo disso é a transformação da reunião eleitoral da França do século XIX em uma campanha feita no rádio e na televisão décadas mais tarde.

Para a análise do corpus, recorreremos às características dos textos escritos apontadas pelo autor. Segundo ele, um texto escrito

pode circular longe de sua fonte, encontrar públicos imprevisíveis sem ser, no entanto, modificado a cada vez. Como o escritor não pode controlar a recepção de seu enunciado, ele é obrigado a estruturá-lo de forma compreensível, a fazer dele um texto no sentido mais pleno. (...) pode também ser copiado, arquivado, classificado; o estoque permite confrontar textos variados e estabelecer princípios de classificação (por temas, por gêneros, por autores, por datas...). (...) permite também associar a ele elementos icônicos variados (esquemas, desenhos, gravuras, fotos...) e um paratexto. Denomina-se “paratexto” o conjunto de fragmentos verbais que acompanham o texto propriamente dito. Pode se tratar de unidades vastas (prefácio, texto de capa...) ou de unidades menores: título, assinatura, data, intertítulo etc.36

(MAINGUENEAU, 2016, p. 77-79; grifos do original).

Tomaremos essas características como categorias de análise do corpus associadas a outras problemáticas discursivas abordadas no próprio quadro teórico-metodológico que vem sendo proposto e reelaborado por Maingueneau. Ao centrarmos nosso estudo nas características apresentadas, não estamos relegando outros aspectos da complexidade do médium do gênero de discurso em foco, mas insistindo na necessidade de se estudarem as intervenções dos representantes permanentes do Brasil, da Espanha e da França no CSNU como um gênero de discurso institucional particular cuja estabilidade está relacionada intrinsecamente com seu médium.

Por essa razão, articularemos o estudo do médium à abordagem da valência genérica proposta por Maingueneau (2014, p. 69-74). O teórico francês propõe uma perspectiva bidimensional com objetivo de descrever a configuração histórica dos gêneros de discurso: valência genérica interna e valência genérica externa. A primeira é definida como um conjunto de modos de existência comunicacional de um texto, sendo que tais modos são historicamente variáveis. A título de exemplo, o próprio autor evidencia as transformações do

36 Tradução livre de: « Il peut circuler loin de sa source, rencontrer des publics imprévisibles sans être pour

autant modifié à chaque fois. Comme le scripteur ne peut contrôler la réception de son énoncé, il est obligé de le structurer pour le rendre compréhensible, d’en faire un texte au sens le plus plein (...); peut aussi être recopié,

archivé, classé; le stockage permet de confronter des textes variés et dʼétablir des principes de classement (par

thèmes, par genres, par auteurs, par dates...); (...) permet aussi de leur associer des éléments iconiques variés (schémas, dessins, gravures, photos...) et un paratexte. On appelle ‘paratexte l’ensemble des fragments verbaux qui accompagnent le texte proprement dit; il peut s’agir d’unités vastes (préfaces, texte de couverture...) ou d’unités réduites: un titre, une signature, une date, un intertitre, etc. »

modo de existência do sermão católico, desde o século XVII até os dias atuais. Inicialmente, um texto escrito a ser memorizado pelo pregador, o sermão transformou-se em uma perfórmance oral; em seguida, passou a circular por meio de cópias do manuscrito dentro de um círculo mais ou menos restrito; houve, por fim, com o advento da imprensa, uma circulação mais ampla de publicações piratas e originais.

Ao constatar fatos como esse, Maingueneau (2014) propõe o detalhamento da valência interna. Primeiramente, distingue o núcleo de seus avatares, a partir do exemplo do sermão católico. Assim, considera a apresentação oral como núcleo da valência genérica interna do sermão e suas cópias, como avatares de três tipos, conforme as peculiaridades de seus processos metamórficos: a) avatares prescritos; b) avatares previsíveis; c) avatares não desejados. Enquanto o primeiro termo designa um conjunto de textos que circulam como publicação obrigatória, o segundo se refere a publicações facultativas e o terceiro, a publicações piratas. O autor, porém, não se restringe a essa classificação e passa a problematizar as modalidades das valências genéricas internas a partir da renovação tecnológica, principalmente em relação à internet.

Diante dessa preocupação de Maingueneau de relacionar e atualizar sua teoria com a evolução dos meios tecnológicos, cremos que os analistas de discurso podem dispor de tais categorias, apoiando-se, no entanto, em interpretações impostas pelo próprio corpus. De um lado, pensamos que, embora o exemplo fornecido por Maingueneau tenha evidenciado efeitos históricos em uma perspectiva diacrônica, fatos similares poderiam também ser percebidos em uma perspectiva mais sincrônica. É o que julgamos poder ocorrer com os textos do corpus desta pesquisa. De outro, concordamos com o autor que todo tipo de texto escrito ou oral produzido dentro de uma situação informal está suscetível de ser deslocado para a Web. As intervenções dos representantes permanentes no CSNU parecem complexificar ainda mais fatos como esse. Isso porque se trata de textos escritos em registro formal, que seguem parâmetros institucionais e cujo médium parece ser um elemento fundamental para demonstrar sua (das intervenções) estabilidade enquanto gênero de discurso. Voltaremos a essa questão no capítulo das análises.

Estudaremos, pois, o médium dos textos do corpus atrelado à noção de valência genérica interna. Por fim, complementaremos nossas análises com uma referência à valência genérica externa, entendida como uma rede de gêneros de discurso, na qual se insere um dado gênero proveniente da mesma esfera ou lugar de atividade. Nesse caso, contudo, nos limitaremos a evidenciar a relação entre o gênero de discurso que tomamos como objeto de estudo (as intervenções) e alguns dos gêneros de discurso com os quais ele se relaciona dentro

de uma sequencialidade. Para isso, aplicaremos a abordagem sequencial proposta por Maingueneau (2014) que leva em consideração o processo de irradiação de um dado gênero de discurso:

Retomemos o nosso exemplo do relatório de defesa de tese. Quando ele é inserido em outro gênero de discurso (por exemplo, um dossiê de candidatura para a obtenção de uma bolsa ou de um posto de trabalho), ele não é mais um gênero autônomo, mas um gênero incluído em um gênero de nível superior, onde ele entra em relação de complementaridade com outros gêneros: curriculum vitae, lista de publicações, cartas de recomendação... ele se transforma, então, em um gênero

textual, não um gênero de discurso. Enquanto um gênero de discurso é uma

atividade comunicacional autônoma, um “gênero textual” é um componente de um gênero de discurso37 (MAINGUENEAU, 2014, p. 73; grifos do original).

Vemos, portanto, que a referência à valência genérica será bastante produtiva em relação ao estudo do corpus desta pesquisa. Aliás, ao delimitá-lo em 1.4, já havíamos elaborado o Esquema 1 no qual apresentamos graficamente a nossa principal hipótese de trabalho. Consideramos as intervenções de representantes permanentes do Brasil, da Espanha e da França no CSNU como um possível gênero de discurso, apesar de não desconsiderarmos a sua função de traço discursivo na constituição de outros gêneros. Acreditamos que o estudo da valência genérica nos fornecerá alguns mecanismos para sustentar a nossa principal tese. Em termos maingueneaunianos, julgamos que poderemos evidenciar traços da valência genérica interna que comprovariam, de forma complementar, a atividade comunicacional autônoma das “intervenções” sem desconsiderar o seu papel de “gênero textual”, principalmente, no que tange aos debates e às atas integrais do CSNU.