• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.2 As propostas teórico-metodológicas de Dominique Maingueneau

O desdobramento da ADF ocorreu de forma relativamente rápida e sob diferentes enfoques. Nesta seção, dedicamo-nos à contextualização das propostas de Maingueneau, que tiveram grande repercussão na França, no Brasil e em vários outros países. Essa contextualização tem por objetivo permitir uma melhor visualização das categorias de análise utilizadas para caracterizar o discurso diplomático, por meio do estudo do gênero de discurso intervenções de representantes permanentes no CSNU.

De acordo com Angermuller e Philippe (2015), as contribuições de Maingueneau para a Análise de Discurso estão representadas por categorias que ultrapassaram o caráter de questionamento teórico e alcançaram o teor de ferramentas metodológicas. Alguns exemplos dados pelos autores são: aforização, comunidade discursiva, competência discursiva, éthos, gênero discursivo, hiper-enunciador, cenografia etc. Essas categorias vêm sendo (re)elaboradas pelo autor desde o início de sua trajetória, razão pela qual faremos uma exposição cronológica de suas propostas por meio do estudo da referida obra de Angermuller e Philippe (2015).

O primeiro aspecto que orienta a compreensão das teorias desenvolvidas por Maingueneau é o seu vínculo institucional. Em 1970, ele integrava o grupo de trabalhos do Laboratório de Lexicometria Política da Escola Normal Superior de Saint-Cloud (École Normal Supérieure de Saint-Cloud). A importância desse vínculo refletiu-se no contato do

autor com a análise lexical mediada por computador e na redução desse projeto analítico à dimensão ideológica. Tratou-se de uma etapa-chave que marcaria questões basilares das propostas de Maingueneau, uma vez que havia dois principais círculos no desenvolvimento dessas pesquisas. Do primeiro, participava Michel Pêcheux. Do segundo, Michel Foucault. De acordo com Argermuller e Philippe (2015), Maingueneau aproximou-se mais dos estudos de Michel Foucault e essa aproximação refletiu-se em suas propostas.

Os primeiros trabalhos de Maingueneau foram Introduction aux méthodes de l’analyse du discours (1976) e Sémantique de la polémique (1983). Neles sobressai o estudo sobre a semântica dos discursos e sobre os dispositivos pelos quais eles (os discursos) se legitimam. O fato de o trabalho de 1983 ter sido sobre o discurso religioso do século XVII evidencia o distanciamento que Maingueneau assume em relação ao objeto de estudo inicial da ADF, o discurso político, o que também se refletiu em alguns trabalhos posteriores do autor voltados para os discursos constituintes: o discurso religioso, o literário e o filosófico, em um primeiro momento. Posteriormente, foram incluídos os discursos científico e jurídico. Em 1984, Maingueneau publicou uma obra de cunho mais teórico: Genèses du discours, na qual encontramos uma relação com elementos estruturais e influências da obra de Michel Foucault, mais precisamente da obra L’archéologie du savoir. Tal fato está marcado, sobretudo, pela defesa do autor de que os enunciados devem ser compreendidos dentro de sua dimensão interdiscursiva. Para isso, Maingueneau propõe que a descrição do ato enunciativo seja feita a partir de suas forças extradiscursivas (sujeito falante, comunidade de origem, realidade social e inscrição institucional).

Esse aspecto já estava presente em outra obra do autor: Les livres dʼécole de la République,1870-1914, Discours et idéologie (1979). Nela se verificam tanto algumas metodologias que já vinham sendo utilizadas, desde os seus estudos sobre o discurso religioso, quanto novas perspectivas sobre a atividade enunciativa:

De uma parte, como no trabalho sobre o discurso religioso, Maingueneau esforça-se para construir um sistema de categorias semânticas, assegurando a coesão e a eficiência do discurso escolar republicano. De outra parte, ele coloca em relevo a dimensão reflexiva da atividade enunciativa: o discurso da escola republicana sobre o mundo é também um discurso sobre o mundo dessa escola, uma legitimação do dispositivo e da instituição que o torna possível34. (ARGERMULLER; PHILIPPE,

2015, p. 10).

34 Tradução livre de: « D’une part, comme dans les travaux sur le discours religieux, Maingueneau s’y efforçait de construire un système de catégories sémantiques assurant la cohésion et l’efficacité du discours scolaire républicain, d’autre part il mettait l’accent sur la réflexivité de l’activité énonciative: le discours de l’école républicaine sur le monde est aussi un discours sur le monde de cette école, une légitimation du dispositif et institutionnel qui le rend possible ».

A trajetória do autor pode ser observada também a partir de sua preocupação em (re)elaborar sucessivamente manuais da ADF, como o de 1976: Initiation aux méthode de l’analyse de discours. Nessa obra, encontramos abordagens lexicológicas, sintáticas, enunciativas e textuais que serviram como base para a aparição posterior de noções como hiper-enunciador, paratopia e éthos. Em 1987, Maingueneau lançou o livro Nouvelles tendances en analyse du discours, no qual contemplou categorias relacionadas à instituição, à heterogeneidade enunciativa e à inter(in)compreensão. Essa abordagem evidenciou notadamente a renúncia ao método harrissiano, utilizado por ele até então. Em 1991, Maingueneau reafirmou os aspectos basilares da obra de Foucault em sua teoria, a partir da publicação de L’Analyse du discours. Introduction aux lectures de l’archive. Foi também nessa ocasião que apresentou a noção de cenografia.

A acepção desse termo, na teoria de Maingueneau, necessita de alguns esclarecimentos. Possenti (2015, p. 117-123) lembra que a cena de enunciação possui três dimensões. A cena englobante corresponde ao domínio em que o texto é situado pelo autor, pelo leitor e por toda a comunidade discursiva: literatura, religião, ciência etc. A segunda dimensão é a cena genérica com a qual se verifica a materialização de uma cena englobante, por exemplo, a política, em um determinado gênero de discurso: um manifesto, um programa eleitoral etc. A última dimensão é a cenografia com a qual o enunciador determina o seu lugar, a partir de sua enunciação. A cenografia é, pois, aquilo com que se confronta o leitor diretamente, o que leva ao deslocamento, para o segundo plano, do quadro cênico (cena englobante + cena genérica).

Desde 2005, Maingueneau tem demonstrado particular interesse pelo estudo de enunciados destacados (ou aforizações). Uma demonstração desse viés investigativo foi a publicação de Les phrases sans texte (2012). Nela, o autor divide as aforizações entre aforizações por natureza (provérbios, slogans etc.) e aforizações destacadas (a posteriori) de um determinado texto. Esse interesse não excluiu outras abordagens, como a noção de discurso constituinte, abordada em La Philosophie comme instituion discursive (2015). A proposta de estudo sobre as aforizações foi integrada ao último manual de Análise de Discurso (2014) publicado pelo autor, no qual ele estuda, entre outros domínios, o universo da Web, constatando que esse domínio exige da AD uma revisão de certo número de conceitos até então utilizados para outros objetos de estudo.

Percebe-se pelo exposto o processo contínuo de (re)construção de ferramentas teórico-metodológicas estabelecido por Maingueneau. Nesse processo de teorização e experimentação dos métodos da AD (ou daquilo que o próprio autor prefere chamar de “tendências contemporâneas em análise do discurso”), com a consolidação e a renovação de seus princípios, o autor mantém um diálogo constante com os seus próprios trabalhos e com as contribuições de diversos pesquisadores dessa disciplina. Evidenciamos esses aspectos em

3.4, seção na qual apresentaremos separadamente as categorias de análise que utilizamos no estudo do corpus da presente pesquisa. Ressaltamos que, na referida seção, além das categorias propostas pelo autor, incluímos contribuições de outros analistas do discurso. Nesse sentido, buscamos manter a linha dialógica assumida pelo próprio Maingueneau, o que nos permitirá descrever nosso objeto de estudo, contemplando as suas características multifacetadas. Antes, porém, abordaremos questões relacionadas ao discurso institucional.