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CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO E DO

2.2 Contextualização do discurso diplomático

2.2.6 Novas perspectivas sobre o discurso diplomático enquanto objeto de estudo

Durante o percurso para formação definitiva do corpus desta pesquisa, deparamo- nos com várias situações de manifestação do discurso diplomático, razão que nos levou a elaborar esta seção. Em primeiro lugar, os fatos aqui expostos reforçam as justificativas já apresentadas na Introdução e no capítulo 1 sobre o recorte proposto para a constituição do corpus. Em segundo lugar, eles apontam para outras possibilidades de se estudar o discurso diplomático no campo da AD, uma vez que tais perspectivas não são dedutíveis dos poucos trabalhos que descrevemos neste capítulo. Por fim, esta exposição ressalta o caráter inter e multidisciplinar da Análise do Discurso.

A primeira possibilidade seria estudar o próprio CSNU (seu papel, sua estruturação, seu funcionamento etc.). Apesar de haver aqui uma relação muito próxima com a nossa pesquisa, trata-se de outro estudo, cujos aspectos teórico-metodológicos ultrapassam o escopo do presente trabalho. A segunda possibilidade, já no domínio do discurso, seria examinar os debates e outros gêneros de discurso produzidos nas seções e reuniões do CSNU, como mostra o quadro 2, a seguir:

Nome das seções Participação de não membros Atas oficiais Seções do

Conselho de Segurança

Seções públicas

Debate aberto Podem-se convidar para participação do debate aqueles países não membros do conselho que solicitarem.

São publicadas.

Debate Podem-se convidar os países não membros

do Conselho quando o assunto examinado afetá-los diretamente ou quando houver especial interesse no assunto por parte deles.

São publicadas.

Exposição Apenas os membros do Conselho podem

formular declarações após as exposições.

São publicadas.

Aprovação Os países não membros do Conselho podem

ser convidados para participar do debate se solicitarem.

São publicadas.

Seções

privadas Seção privada

Podem-se convidar para participação no debate os países não membros do Conselho que solicitarem.

Elabora-se apenas uma cópia, que é conservada pelo Secretário Geral.

Reuniões com os países

que aportam

contingentes

São convidadas para participação no debate as partes indicadas na resolução 1353 (2001).

Reunião dos membros do

Consultas oficiosas do pleno (§20 a 27 da nota).

Não se convidam países não membros do Conselho.

Não se elaboram atas oficiais.

Conselho de Segurança

Diálogo oficioso (§59 da nota). Unicamente por convite. Não se elaboram atas oficiais.

Reunião conforme a regra da “Fórmula Arria” (§ 65 da nota).

Unicamente por convite. Não se elaboram atas oficiais.

Quadro 2 - Formato das seções e reuniões relacionadas com o Conselho de Segurança30

Nesses casos, o objeto de estudo não seriam (ou não seriam apenas) as intervenções de representantes permanentes no CSNU. Porém, um pesquisador que se dedicasse a investigar esses outros gêneros poderia, por exemplo, esbarrar na acessibilidade a determinadas seções, que são restritas. Em outros casos, não há publicações, o que poderia, novamente, dificultar o trabalho. Essas questões, entre outras, levaram-nos a optar pelo gênero intervenção de representantes permanentes no CSNU, visto que se trata de documentos publicados, divulgados e, portanto, de fácil acesso.

Além do mais, o estudo que propomos em torno das intervenções de representantes permanentes no CSNU poderá orientar outras pesquisas sobre os gêneros de discurso que apresentamos no Quadro 2. Isso porque, apesar de perseguirmos o objetivo de caracterizar o referido gênero de discurso ao longo deste trabalho, ressaltamos o seu papel na produção dos debates e das atas oficiais no seio da ONU. Por essa razão, apresentaremos, a seguir, uma breve definição desses dois gêneros de discurso, apontando algumas características que supomos ser as mais adequadas em relação ao quadro institucional de onde emergem. Esclarecemos que não é nossa intenção fazer uma exposição exaustiva, mas apenas evidenciar algumas características que demonstram a relação entre as intervenções de representantes permanentes e esses dois gêneros de discurso.

Em relação ao debate, julgamos que, a partir do quadro 2, seria mais produtivo falar de hipergênero, ainda que, em um estudo aprofundado sobre, por exemplo, o debate aberto e o debate, a noção de gênero de discurso seria indispensável. Segundo Bonini (2011, p. 679-704), o hipergênero é um agrupamento de gêneros de discurso que compõem uma unidade maior de interação. Em outras palavras, trata-se de um gênero de discurso de nível superior a outros. Escolhemos a proposta desse autor31, pois ela nos permite esclarecer, de forma mais pontual, a relação entre debate do CSNU e intervenção de representantes permanentes no CSNU. Esse gênero de discurso que buscamos caracterizar na presente

30 Quadro adaptado de: <<http://www.un.org/es/sc/pdf/methods/meetings.pdf>>. Acesso em: 23 dez. 2016.

31 Embora o conceito de hipergênero de Bonini (2011) se diferencie da definição proposta por Maingueneau

(2004, p. 43-58), ele nos permitirá estabelecer um diálogo com o estudo das valências genéricas (MAINGUENEAU, 2014).

pesquisa faria, então, parte de um gênero de nível superior: o hipergênero debate no CSNU, que mereceria um estudo à parte.

No que diz respeito às atas dos debates do conselho de segurança, primeiramente precisamos diferenciar atas resumidas de atas literais. As primeiras foram estudadas por Duchene (2004). Vimos que o autor tomou esse gênero de discurso como uma parte importante do funcionamento da Organização das Nações Unidas pelo fato de ele constituir um “traço” importante dos debates realizados nesse órgão. Algumas de suas características constitutivas foram apontadas, a partir dos manuais de redação das atas resumidas como, por exemplo, o fato de ela (a redação) ser de responsabilidade dos departamentos de linguística (seção francesa e inglesa). Destacamos esse aspecto porque ele mostra as restrições impostas pelo quadro institucional no qual o referido gênero de discurso está inscrito. Não obstante, em relação às atas literais não encontramos um estudo específico dentro do quadro teórico- metodológico da Análise do Discurso.

Isso nos levou a consultar a lista de documentos oficiais da ONU. Vimos que uma ata literal é um relato completo de determinada seção, escrito em primeira pessoa. Cada ata é identificada com as iniciais PV, em contraste com as atas resumidas cuja identificação é feita com as iniciais SR. A partir dessas informações, direcionamos nossa busca para os estudos sobre o gênero de discurso atas lato sensu. Mellet e Sitri (2013) iniciaram o seu estudo destacando a grande variedade formal desse objeto de estudo em função de sua instância de produção, seu estatuto e sua função, além da natureza do redator. Para nós, a análise de dados como esses são indispensáveis para uma definição, no âmbito da Análise do Discurso, das atas integrais do CSNU.

Por ora, nos contentaremos com a sinalização de alguns dados que dizem respeito às intervenções de representantes permanentes no CSNU. Para isso, utilizamos a versão em espanhol da Ata integral S/PV. 6471 na qual estão incluídas as intervenções do Brasil e da França sobre o Haiti. Do ponto de vista formal, destaca-se a presença de um sumário que identifica o presidente da seção (debate no CSNU) e todos os membros que participaram dela listados em ordem alfabética: Alemanha, Brasil, China, Colômbia, Estados Unidos da América, Rússia, França, Gabão, Índia, Líbano, Nigéria, Portugal, Reino Unido, Sudáfrica. No que tange aos aspectos textuais, lançamos a hipótese de que seria necessário diferenciar pelo menos dois níveis de enunciação: o interenunciador32 (destacado em itálico no original) e os enunciadores (o presidente e os respectivos membros).

32 De acordo com Maingueneau (2016, p. 157), o termo interenunciador designa a instância única que representa

Se abre la sesión a las 11.10 horas.

Aprobación del orden del día

Queda aprobado el orden del día.

La cuestión relativa a Haití

El Presidente (habla en inglés): De conformidad con el artículo 37 del reglamento

provisional del

Consejo, invito al Representante Permanente de Haití a participar en esta sesión (...)

Sra. Viotti (Brasil) (habla en inglés): Doy las gracias a los Secretarios Generales

Adjuntos Alan Le Roy y Valerie Amos por sus amplias exposiciones informativas de hoy. Un año después del terremoto y sus devastadores efectos, exacerbada por la trágica pérdida de vidas a causa de la epidemia del cólera, la situación en Haití sigue siendo sumamente difícil. Estamos siguiendo de cerca los últimos acontecimientos en Haití, en particular los relacionados con el proceso político y la situación humanitaria.

Sr. Araud (Francia) (habla en francés): Doy las gracias al Sr. Alain Le Roy, a la

Sra. Valerie Amos y al Encargado de Negocios de Haití por sus declaraciones. Desde el terremoto que tuvo lugar en enero de 2010, Haití ha sufrido otras tribulaciones: el huracán Tomás y la epidemia del cólera. Esa serie de catástrofes explica por qué es necesario prestar asistencia humanitaria con carácter urgente. Por consiguiente, somos muy conscientes de la importancia de la coordinación, sobre todo dado el número excepcionalmente elevado de organismos y organizaciones no gubernamentales que trabajan en Haití33.

Vemos, portanto, que, a partir de uma perspectiva discursiva, as intervenções de representantes permanentes no CSNU não se confundem com as atas integrais. Acreditamos que se trata de uma problemática que pode ser estudada, por exemplo, a partir de uma abordagem do discurso reportado (ver, por exemplo, DESOUTTER; MELLET, 2013) e da valência genérica (Ver MAINGEUNEAU, 2014). De qualquer forma, finalizamos com duas ponderações. De um lado, acreditamos que muitas características que apontaremos relacionadas às intervenções de representantes permanentes no CSNU também estariam presentes nas atas integrais, visto que elas contêm uma versão literal dos discursos pronunciados em uma dada seção. Aliás, no estudo de Pérez Herranz (2014), debate, intervenção e atas integrais se misturam, uma vez que a autora centrou-se no estudo da argumentação sem focalizar essa distinção. De outro lado, vários outros traços constitutivos no quadro institucional do CSNU serão impostos ao gênero discursivo “atas integrais”: a tradução, as línguas oficiais, as línguas minoritárias (DUCHENE, 2008) etc.

33 Disponível em: http://www.un.org/french/documents/view_doc.asp?symbol=S/PV.6471. Acesso em: 09 nov.

A terceira possibilidade de pesquisa decorreria da relação que estabelecemos, ao longo deste estudo, entre o manual sobre o discurso institucional (KRIEG-PLANQUE, 2014) e a obra de Kessler sobre o embaixador (2012). No que diz respeito às negociações bilaterais, verificamos que a embaixada pode ser estudada como organização. Segundo Kessler (2012), certas embaixadas podem ser vistas como “organizações”, dentro do campo sociológico, na medida em que são constituídas por um conglomerado de serviços, com hierarquias e diferentes pressões, determinadas pelo meio social. Ainda que a autora ressalte que esse aspecto burocrático e institucional possa não ser muito significativo em razão de um número limitado de atores, ele poderia ser considerado pelos analistas de discurso, por exemplo, com o fim de descrever a relação entre a instituição e as possibilidades de restrição do discurso diplomático que podem surgir de relações diplomáticas bilaterais.

Mais um aspecto possível de estudo refere-se ao percurso histórico da diplomacia no Brasil. O estudo da obra de Pecequilo (2012) possibilitou-nos a visualização de dois momentos cruciais para a diplomacia brasileira do século XX. O primeiro abrangeu o período entre 1902 e 1961, iniciando-se com Rio Branco no MRE e terminando com Juscelino Kubitschek. Segundo a autora, esse momento diplomático foi marcado pela priorização do eixo bilateral hemisférico e políticas de alinhamento com os Estados Unidos. O segundo período indicado foi o de 1961 até o presente momento. Esse período caracteriza-se pela substituição do eixo bilateral por um processo multilateral com o qual se procurou minimizar o papel periférico da diplomacia tradicional que vigorou durante o primeiro momento do século XX.

Dados históricos como esses e ainda outros sobre o século XXI – já que a autora também evidenciou ponderações de especialistas sobre a era FHC, Collor, Itamar Franco e Lula – poderiam constituir objetos de estudo para os analistas de discurso. Pesquisas com tal foco se inseririam nessa mesma tradição de análise à qual nos filiamos, ainda que a partir de objetivos distintos. Evidentemente, uma problemática para essas pesquisas seria a qual gênero de discurso recorrer, inclusive com a já citada preocupação quanto ao acesso aos textos produzidos, visto que se trataria, em alguns casos, de documentos históricos nem sempre disponíveis.

Por último, mencionamos o trabalho de Jeannesson (2016) que propõs algumas questões teórico-metodológicas com base no gênero biografia. O historiador evidenciou como a biografia de diplomatas pode contribuir para o estudo da História e das Relações Internacionais. Para isso, assume o posicionamento de que a biografia se caracteriza por uma reconstrução intelectual, que tem por objetivo a seleção de eventos julgados pelo biógrafo

como significativos, sendo organizados, de forma coerente, por meio de sua memória (do biógrafo). Destaca ainda que uma das finalidades da biografia consiste na incorporação do itinerário do biografado à própria história de sua profissão. Um exemplo dessa situação é a biografia do diplomata Jacques Seydoux, que permitiu uma melhor compreensão sobre a diplomacia da França durante sua atuação diplomática.

Nessa perspectiva, a biografia mostra-se como um objeto de estudo relevante para o discurso diplomático. Esse gênero de discurso já vem sendo investigado por analistas do discurso no Brasil, porém, acreditamos que ele ainda não alcançou o domínio da diplomacia. Por isso tecemos essas considerações, tendo em vista que, neste momento, não apenas a biografia, mas, sobretudo, o conceito de narrativa de vida têm delineado parte de pesquisas dos analistas de discurso brasileiros (ver ANDRADE, 2016b; MACHADO, 2015).

Vemos, pois, que dado o caráter multi e interdisciplinar da AD, muitas “entradas” seriam possíveis para o estudo do discurso diplomático. Reconhecemos, no entanto, que, quando escolhe uma determinada “entrada”, o pesquisador delimita seu objeto de estudo, sabendo que este permanecerá aberto para novas investigações e que o caminho escolhido não é “a”, mas “uma” leitura possível.