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CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO E DO

2.2 Contextualização do discurso diplomático

2.2.2 Os Estados e seus representantes diplomáticos

De acordo com Kessler (2012), o embaixador pode ser visto como a própria reencarnação do Estado, uma vez que ele o simboliza em nível internacional. No caso específico das Organizações Internacionais, tipo de instituição com a qual trabalhamos, o embaixador é denominado “representante permanente”. Algumas de suas atribuições são: “saber dominar diversos mecanismos e agir em prol da criação de normas internacionais” 23 (KESSLER, 2012, p. 19-20). Não obstante, essa relação entre embaixador e instituição só ocorreu no século XIX, razão pela qual faremos a seguir uma exposição a partir dos principais aspectos da origem e das transformações do corpo diplomático.

A função de embaixador remonta ao Antigo Regime, e sua origem está relacionada à necessidade de o rei ser representado por personalidades que ele escolhia no exército, nos tribunais ou na igreja. “Esse longo período ligado à reputação desse representante e esse gesto iluminado funda, portanto, a reputação da diplomacia”24 (KESSLER, 2012, p. 37). De qualquer forma, durante todo esse período, não havia um corpo diplomático, tampouco uma administração de prestígio. Foi a partir de 1879 que a diplomacia ganhou estrutura, a ponto de se poder falar em sua profissionalização. Um exemplo da profissionalização do embaixador encontra-se na chamada Terceira República da França. Foi nesse momento que ele ganhou o status de “haut fonctionnaire” e passou a ser membro de um grande corpo do Estado. A importância desse status encontrou respaldo inclusive na própria forma de seleção do embaixador. Por isso, passamos a abordá-la sob um viés geral.

Um aspecto consensual sobre essa forma de seleção notada na leitura da obra de Kessler (2012) é que todos os países possuem a tendência de seguir os métodos de seleção adotados pela Grã-Bretanha e pela França, às vezes incorporando o mesmo sistema diplomático de um desses países em seus Estados, outras vezes misturando aspectos dos dois sistemas. Nesse sentido, a compreensão desses dois princípios traz uma visão geral do processo de seleção em diversos países. No caso da Grã-Bretanha, faz-se um concurso inicial para que, em seguida, os novos diplomatas recebam uma formação mais especializada em seu ofício. No que se refere à França, tem-se um longo período de formação geral e formal, cujas etapas são demarcadas por concursos de admissão, antes da efetiva inclusão do embaixador no corpo diplomático.

Esse processo de admissibilidade ilustra, portanto, um dos aspectos formais dessa função social. Fato relevante é que a política é uma etapa chave na carreira diplomática. Reproduzimos a seguir uma citação que demonstra a influência dos fatos políticos no desenvolvimento das práticas diplomáticas, particularmente nas do representante permanente, visto que sua função é considerada um cargo de prestígio.

As biografias dos grandes personagens da diplomacia atual, sobretudo aqueles provenientes do corpo [diplomático] do Oriente, mostram que há, geralmente, uma série de engajamentos constantes junto a personalidades de alto nível. Elas demonstram uma permanência junto ao Presidente da República ou ao Ministro das Relações Exteriores, por cerca de sete a oito anos de serviço, e um retorno mais tarde como diretores de gabinetes, conselheiros diplomáticos, membros que ocupam

24 Tradução livre de: « Le lustre attaché à cet honneur et à cette tâche fonde donc la réputation de la

postos relevantes como o de embaixador (União Européia, ONU, Washington) 25

(KESSLER, 2012, p. 65).

Aliás, esse fato político é tão importante que alguns embaixadores não são diplomatas profissionais. Isso foi evidenciado em nível mundial por Clark (1973). Seu estudo mostrou que muitos deles são enviados diretos de um determinado governo. Um exemplo fornecido pelo próprio autor é o caso dos Estados Unidos, em que cabe ao presidente a nomeação de embaixadores, com a devida aprovação do congresso. Para sermos mais precisos, sua pesquisa demonstrou que uma média de 30% dos postos de embaixadores eram direcionados especialmente àqueles indivíduos que apoiaram o presidente durante sua campanha eleitoral.

Na obra de Kessler (2012), esse fato também foi ressaltado. A autora afirma que o embaixador não é considerado apenas um agente do Estado, mas também um agente do governo, visto que sua função resulta das políticas estrangeiras dos governos envolvidos. Para ilustrar esse fato, recorremos à reabertura, no governo de Barack Obama, da Embaixada dos Estados Unidos, em Havana, e a de Cuba, em Washington, após cinquenta e quatro anos do rompimento das relações internacionais entre os dois Estados. Ora, tal fato ocorreu apenas em virtude das negociações entre os dois governos no período em questão.

No que tange à institucionalização da diplomacia, é preciso considerar que, em 1945, a ONU declarou que todos os Estados fossem considerados iguais, consagrando-os, assim, como atores da sociedade internacional. A partir da convenção de Viena sobre as relações diplomáticas, em 1964, destacou-se o papel da diplomacia para a manutenção da segurança internacional e para o desenvolvimento de relações internacionais entre as nações. “Com esse objetivo, ela define o quadro jurídico universal no qual se inscrevem as funções e os deveres dos embaixadores e os tipos de proteção que lhes são de direito” 26 (KESSLER, 2012, p. 128.).

Assim, vimos com Kessler (2012) que o embaixador é um dos atores que fazem parte de um bloco institucional constituído por um aparelho administrativo e político cuja função é executar ações diplomáticas. Tal institucionalização, para a autora, estabeleceu-se progressivamente a partir do século XIX, quando o direito internacional clássico atribuiu ao

25 Tradução livre de: « Les biographies des grands personnages de la diplomatie actuelle, issus du corps d’Orient,

montrent généralement une série d’engagements répétés auprès de personnalités de très haut niveau. Elles permettent de voir un passage auprès du président de la République ou du ministre des Affaires étrangères, après sept à huit ans de service et un retour plus tard comme directeurs de cabinets, conseiller diplomatique, ‘sherpa’ avec des passages dans de beaux postes d’ambassadeurs (Union européenne, ONU, Washington). »

26 Tradução livre de: « À cette fin, elle définit le cadre juridique universel dans lequel s’inscrivent les fonctions

Estado a característica de personalidade jurídica. O embaixador passou a ser visto como parte integrante do Estado, com legitimidade própria, segundo os poderes que lhe são outorgados. Tal fato evidenciou a disposição de um capital institucional e social relativo a esse sujeito e intrinsecamente ligado à sua função de representante de Estado, o que sempre foi a sua própria razão de ser.

A obra de Kessler (2012) mostra ainda que a produção de informações delegadas ao embaixador não se restringe ao governo, estendendo-se também à opinião pública, aos diferentes grupos constituídos pela sociedade civil, no âmbito do próprio país, bem como na esfera internacional. Nesse sentido, um aspecto de particular importância no que diz respeito ao exercício do diplomata é a negociação. Ainda que as decisões em relações internacionais não possam ser tomadas sem o consentimento efetivo dos governos, o ator diplomático desempenha um papel relevante, visto que possui um conhecimento específico e especializado sobre os adversários e sobre a evolução dos processos. Trata-se de um aspecto central da diplomacia por meio do qual o diplomata pode ter acesso a um poder direto.

Entretanto, há uma diferença relevante entre a negociação dentro de um quadro de relações bilaterais comparada àquela que se engendra no âmbito das relações multilaterais. Por isso, passamos a focalizar a segunda forma de negociação, visto que, neste trabalho, nos ocupamos de um gênero de discurso particularmente originado em um quadro multilateral de negociação: as intervenções de representantes permanentes no CSNU.

Conforme Kessler (2012, p. 208), o ano de 1945 foi o momento em que a diplomacia multilateral generalizou-se, permitindo uma verdadeira expansão que pode ser facilmente atestada nos dias de hoje. A pesquisadora toma como exemplo a França, mostrando que esse Estado possui atualmente dezessete representantes permanentes em diferentes organizações internacionais. A partir desse fato, explica que o poder político dos embaixadores varia de acordo com a missão e a atualidade de cada organização. No que diz respeito à ONU, trata-se da primeira e principal organização com vocação política, cujo objetivo é a segurança coletiva, segundo a carta de 24 de outubro de 1945. Nesse mesmo ano, a França ocupou a vaga de membro permanente da instituição por ter sido considerada uma das cinco grandes potências mundiais.

É preciso ressaltar a seguinte consideração da autora: como instituições do tipo da ONU são marcadas por um quadro de discussão cujas abordagens centrais estão relacionadas ao equilíbrio das relações internacionais e às questões de paz, segurança e direitos do homem, a função de representante permanente seria “reservada aos embaixadores considerados ‘os

mais talentosos’” (KESSLER, 2012, p. 209). Na seguinte citação, podemos compreender o que a autora considera como “talentoso”:

As recomendações da Assembléia Geral, e mesmo as do Conselho de Segurança, não são juridicamente obrigatórias para os Estados, que não sofrem pressões a não ser das reações posteriores da opinião pública. Uma resolução não tem chance de contribuir para a regulamentação de uma situação ou de um conflito sem que seja aceita por todas as partes interessadas. Um resultado como este não pode ser obtido senão por um trabalho de persuasão, de conciliação, anterior às discussões públicas, obra dos diplomatas presentes na instituição. Os debates públicos são, em grande escala, encenações que corroboram as posições adotadas anteriormente pelos diversos países. Os embaixadores franceses não os consideram, entretanto, como negligenciáveis: eles se gabam frequentemente de ter, por seu talento oratório, captado a atenção da comunidade diplomática em favor das teses francesas27

(KESSLER, 2012, p. 209-210).

Todavia, do ponto de vista da ADF, não seria suficiente apontar esse tipo de classificação, de forma tão ampla e subjetiva, em relação ao sujeito-enunciador e, além disso, sem uma ancoragem analítica na/da materialidade discursiva. Ao assumir o posicionamento de analistas do discurso, precisamos considerar, por exemplo, que o discurso do representante permanente emerge de um quadro institucional específico. Assim, tanto o seu status histórico- social quanto a sua inserção em uma dada instituição devem ser consideradas para se descrever e problematizar seu discurso.

Por isso, tomamos, nesta pesquisa, as intervenções dos representantes permanentes no CSNU como principal objeto de estudo. Acreditamos que a análise desse gênero de discurso, inscrito nesse quadro institucional particular, pode evidenciar não o talento oratório de embaixadores franceses (brasileiros ou espanhóis), mas, sim, os seus (do gênero) traços constitutivos, entre eles, o éthos que os representantes permanentes do Brasil, da Espanha e da França no CSNU devem construir para enunciar seu discurso comme il faut. Esse objetivo maior e suas principais ramificações, a partir do quadro teórico-metodológico que assumimos, fazem com que a presente pesquisa se insira no – ainda incipiente – repertório de estudos sobre o discurso diplomático, como se poderá conferir nas seções seguintes.

27 Tradução livre de: « Les recommandations de l’Assemblée général et même du Conseil de sécurité ne sont pas

juridiquement obligatoires pour les États qui ne sont contraints que par les réactions ultérieures de l’opinion publique. Une résolution n’a de chances de contribuer au règlement d’une situation ou d’un différend que si elle est acceptée par toutes les parties intéressés. Un tal résultat ne peut être obtenu que par un travail de persuasion, de conciliation, antérieur aux discussions publiques, œuvre des diplomates présents sur place. Les débats publics sont largement des jeux de rôle corroborant les positions adoptées antérieurement par les divers pays. Les ambassadeurs français ne les estiment pourtant pas négligeables: ils se vantent souvent d’avoir, pour leur talent oratoire, attiré l’attention de la communauté diplomatique sur les thèses françaises ».