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CAPÍTULO 3 CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO

3.1 O lugar da Análise do Discurso no percurso histórico da linguística

Ao propor uma análise das intervenções de representantes permanentes do CSNU com o fim de caracterizar o discurso diplomático que emerge desse quadro particular de enunciação, selecionamos um tipo específico de objeto pelo qual diversas disciplinas se interessam. Uma das teorias científicas que se volta para o estudo de fenômenos como esse é a Análise do Discurso. Nascida de uma perspectiva transdisciplinar, a AD ocupa um lugar de destaque no âmbito dos Estudos Linguísticos, razão que nos leva a expor os fatos históricos mais relevantes da Linguística, a fim de que se possa vislumbrar a origem e o desenvolvimento da perspectiva teórico-metodológica que assumimos neste trabalho. Isso, principalmente, porque acreditamos que o presente trabalho, devido à temática que aborda, pode interessar a outros pesquisadores, não necessariamente familiarizados com a AD.

Na obra elaborada por Sarfati e Paveau (2014) sobre os momentos cruciais da Linguística, constata-se que o estudo da gramática comparativa, desenvolvido entre 1810 e 1875, forneceu uma base relevante para a conversão dessas investigações em uma Linguística histórica. Com isso, a partir de 1860, assistimos à origem de um programa explícito de reconstituição detalhada dos intervalos e das linhas de evolução entre idiomas. Essa perspectiva de comparação conjuntural de línguas particulares foi, contudo, rechaçada pela perspectiva saussuriana. Ocorreu, assim, a primeira ruptura epistemológica no âmbito da Linguística. Com ela, houve a delimitação do objeto de estudo (a língua enquanto sistema) e a dita Linguística moderna ganhou o status de ciência.

Sendo o “novo” objeto de estudo a língua enquanto sistema, foi necessário que se postulassem as clássicas divisões entre língua/fala, significado/significante etc. para que ocorresse a descrição das relações internas desse sistema em contraposição ao método adotado pelos antecessores de Saussure. Estes haviam proposto descrever tal sistema de forma isolada e diacrônica. Um fato importante a ser destacado aqui é que, ao longo do desenvolvimento dessa perspectiva, deparamo-nos com alguns conceitos que serviram de base para outras construções teóricas. A título de exemplo, a própria noção de estrutura foi utilizada nas propostas teóricas de Ducrot e de Bally. Ela também foi relevante nos trabalhos da Escola de Praga, os quais tiveram a participação de Benveniste e Jakobson. Aliás, a tese de que a estrutura da língua é determinada pela função social, pela função de comunicação e pela função poética foi amplamente difundida.

De acordo com Sarfati e Paveau (2014), há um consenso de que até 1970 desenvolveu-se e aprofundou-se uma teoria da língua, fundamentada no princípio do estruturalismo. A partir dessa década, entretanto, emergiram trabalhos que se concentraram em aspectos da enunciação, embora a existência de interesses voltados para tal fenômeno possa ser constatada já entre 1910 e 1920, na Europa (particularmente na Rússia). Nesse último caso, os autores citam a concepção de linguagem de Bakhtin-Voloshinov.

Porém, o desenvolvimento da linguística enunciativa durante esse período não ocorreu de forma efetiva por causa da rápida expansão do modelo estruturalista. Foi apenas nos estudos de Benveniste que se encontrou, de fato, uma definição original para a enunciação, noção que se tornou canônica e estabeleceu a segunda ruptura epistemológica no domínio da Linguística.

Na perspectiva teórica de Benveniste, a enunciação ocupou um lugar de destaque, ao lado da semântica. Entende-se que sua proposta fundou um segundo programa para a Linguística contemporânea porque a frase, então unidade de análise, passou a ser estudada enquanto realização de um locutor, método oposto à análise de frases-modelo utilizada em abordagens estruturalistas e gerativistas. Todavia, o estudo da dimensão transfrástica dos enunciados ocorreu de forma efetiva apenas no que se denominou Linguística Discursiva, termo que abarca três principais teorias: Linguística Textual, Semântica de Textos e Análise do Discurso (SARFATI; PAVEAU, 2014). Na sequência, ocupamo-nos da contextualização dessa última teoria na qual se inscreve a presente pesquisa.

No final dos anos 1960, originou-se um campo disciplinar autônomo dentro das Ciências da Linguagem que tomou como objeto de estudo o discurso. Essa autonomia pode ser verificada pelo conjunto de noções, ferramentas e métodos específicos que reúne os traços fundamentais dessa nova abordagem transdisciplinar cujo resultado é a fundação do que hoje denominamos, em sentido amplo, Análise do Discurso. De acordo com Sarfati e Paveau (2014), o termo utilizado para definir essa disciplina é uma tradução da expressão elaborada por Harris – discourse analysis – para o estudo da dimensão transfrástica.

Tradicionalmente, usa-se o termo Análise do Discurso associado à Escola francesa – ou, simplesmente, Análise do Discurso Francesa (ADF) – com o objetivo de definir essa disciplina de forma mais específica. Isso para diferenciá-la da corrente anglo-saxã e também da própria Linguística Textual. A primeira corrente dedica-se a uma análise linguística voltada para a hierarquização dos textos conversacionais e assume uma abordagem etnometodológica, enquanto a segunda tem como objetivo maior estudar a coesão e a coerência dos textos dentro de uma perspectiva textual-pragmática que perpassa aspectos microestruturais e macroestruturais (sequências, gêneros de discurso etc.). Já a ADF – ou a corrente da AD (tomada em sentido amplo) que praticamos aqui – é uma disciplina de origem francesa que estuda as produções verbais no seio de suas condições sociais de produção, sendo que tais elementos são tomados como partes integrantes da significação e do modo de formação dos discursos.

Essa definição permite-nos perceber a razão pela qual se diz que a ADF apoia-se em outros campos disciplinares das Ciências Humanas, como História, Filosofia, Sociologia, Psicanálise, Literatura etc. Fato particularmente importante é que essa ocorrência transdisciplinar foi marcada inclusive do ponto de vista institucional. Por um lado, podemos ver o desenrolar da ADF sob o ângulo de estudos linguísticos na École Normal Supérieure de Saint-Cloud por meio da aplicação do método de lexicometria política; por outro, na Université de Paris VII, associada ao Laboratoire de Psychologie Sociale du CNRS, onde Pêcheux elaborou uma teoria da linguagem fortemente marcada pelo marxismo e pela psicanálise.

De fato, o discurso já havia sido objeto de dois filósofos que fundamentaram o quadro teórico da nova disciplina: Althusser e Foucault. O primeiro defendia a ideia de que os mecanismos da ideologia contribuíam para a reprodução dos meios sociais e, consequentemente, dos modos de dominação que os fundavam. Por meio desses estudos, a ADF pôde ser vista como uma prática que permitia uma análise crítica da ideologia. Já para Foucault, o discurso deveria ser visto como um conjunto de fenômenos que possibilitaria

escrever uma história discursiva das ideias. Ele se perguntava quais eram as condições que permitiriam denominações como o discurso dos médicos, o da economia, o da gramática etc. Para responder a tais questionamentos, o filósofo propôs o estudo dos objetos, do tipo de enunciação, dos conceitos e das escolhas temáticas, com o fim de apreender um conjunto de regularidades que ele denominou “formação discursiva”.

Em 1984, Maingueneau retomou o termo “formação discursiva” para mostrar como um discurso emerge, estrutura-se em um conjunto coerente e em um espaço cultural homogêneo que perdura para além das fronteiras impostas por variações individuais e temporais. A partir desse momento, a ADF evoluiu e as pesquisas desenvolvidas dentro desse quadro teórico-metodológico diversificam-se por meio de propostas de diferentes analistas de discurso. Na próxima seção, descreveremos as propostas teórico-metodológicas de Maingueneau, autor com quem dialogamos mais de perto neste trabalho.