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CAPÍTULO 2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO E DO

2.1 Contextualização do discurso político

2.1.2 Abordagens contemporâneas do discurso político

2.1.2.3 O lugar do discurso político na produção científica contemporânea na França

Obra de grande relevância para as abordagens contemporâneas sobre o discurso político, não apenas na França, mas também em diversos países em que a AD tem sido estudada, é o livro de Charaudeau (2011), O discurso político, publicado originalmente em 2005. O autor inicia seu trabalho a partir da constatação de que há vários setores de ação social, como o jurídico, o econômico, o midiático e o político. Define esse último, em sentido restrito, como o setor cujo desafio é estabelecer regras governamentais a partir da distribuição de tarefas e responsabilidades em conformidade com as instâncias legislativas e executivas.

De acordo com o teórico francês, no interior desse campo de práticas, haveria uma organização da linguagem em uso com efeitos psicológicos e sociais específicos desse setor social. Esta é, em última instância, a definição de discurso político para o autor. Isso porque no seio da AD, espera-se uma análise dos “discursos que tornam possíveis tanto a emergência de uma racionalidade política quanto à regulação dos fatos políticos” (CHARAUDEAU, 2011, p. 37). Esses aspectos são encontrados nas diferentes formas de manifestação do discurso político: como sistema de pensamento, como ato de comunicação e como comentário.

Como vimos anteriormente, o discurso político como sistema de pensamento implica a manifestação desse discurso com o fim de fundar um ideal político, determinando filiações ideológicas. No que diz respeito ao discurso político enquanto ato de comunicação, sua manifestação está relacionada à participação de diferentes atores nas cenas da comunicação política. Por fim, a última forma de manifestação do discurso político proposta

pelo autor é tomá-lo como comentário, caso em que não há um fim político. A partir dessa classificação, o autor evidencia as duas orientações que se destacaram na primeira década do século XXI. De um lado, um viés que leva em conta o sistema de pensamento com foco: a) no conteúdo das proposições apresentadas por políticos; b) no valor dos argumentos em relação a um sistema de crenças; c) nos efeitos do logos. Por outro lado, observa-se um deslocamento progressivo desses elementos para I) os procedimentos encenados; II) as estratégias persuasivas; III) os efeitos do páthos e do éthos.

Um dado, em especial, dessa obra foi de suma importância para o desenvolvimento da presente pesquisa. Reproduzimos a seguir o terceiro círculo do discurso político proposto pelo autor:

Um terceiro círculo seria constituído pelos organismos supranacionais (parlamento europeu), internacionais (Gatt e depois OMC, FMI) e não governamentais (ONU, Unesco), que também se encontram em posição de dependência em relação às instâncias governamentais (eles reúnem os representantes de diversos países e procuram entender-se para regular o mercado global, a cultura e a tecnologia), mas também em posição de autonomia, quando fazem pressão sobre esses mesmos países, impondo regras de funcionamento e evocando para si um poder de controle (regulamentação do direito internacional, da economia agrícola etc.) (CHARAUDEAU, 2011, p. 46).

A abordagem de Charaudeau (2011) permitiu-nos ver, de forma mais clara, o objeto que elegemos para esta pesquisa. Nessa perspectiva, o trabalho de Courtine (1980/2009) poderia ser visto como incidindo sobre o discurso político enquanto sistema de pensamento, uma vez que se privilegiou a caracterização do discurso comunista. No caso do presente estudo, integramos o discurso político enquanto ato de comunicação ao terceiro círculo constituído pelos organismos sociais21. Com essa integração, percebemos que o setor de ação sócio-política teria que ser visto a partir do campo disciplinar das Relações Internacionais, razão pela qual separamos metodologicamente a contextualização do discurso político da contextualização do discurso diplomático.

21 Essa integração pareceu-nos a mais produtiva, uma vez que o representante permanente exerce uma função

técnica. Assim, seu caso difere, a nosso ver, de outros atores como o Ministro das Relações Exteriores e o Presidente da República que, mesmo procurando neutralizar os seus discursos diplomáticos, encontram-se filiados, por exemplo, a partidos políticos. Nesses últimos casos, acreditamos que o discurso político enquanto sistema sobressairia de forma mais nítida. Durante a comunicação individual de Andrade (2015b), discutimos o fato de o representante permanente ser indicado por Presidentes da República e/ou Ministros das Relações Exteriores, fato que poderia deixar transparecer em seu discurso posicionamentos ideológicos relacionados ao discurso político enquanto sistema (partidos políticos, base aliada do Governo etc.). Não obstante, tal fato foge ao escopo do presente trabalho. Por isso, em alguns momentos, nos limitaremos a propor questões que exigem outras abordagens teórico-metodológicas.

Outro trabalho que citamos aqui demonstra justamente o lugar que esses organismos supranacionais vêm ocupando enquanto objeto de estudo de analistas do discurso. Trata-se do estudo sobre os relatórios das organizações internacionais, no qual Maingueneau (2008b) buscou verificar se esse tipo de discurso se enquadraria no campo dos discursos constituintes.

Para encerrarmos esta seção, falaremos de dois artigos publicados na revista francesa MOTs. Trata-se de um periódico de grande relevância para o estudo do discurso político na França, tendo inclusive um importante papel na difusão da Análise de Discurso em âmbito internacional. Para isso, tomamos como base o número 94 da Mots. Les lagages du politique pelo fato de seu (sub)título revelar um aspecto comemorativo que demonstra a importância do discurso político enquanto objeto de estudo: “Trinta anos de estudo das linguagens do político (1980-2000)”.22.

O primeiro deles é Le discours politique et son ‹‹environnement›› (MAINGUENEAU, 2010b). Nesse trabalho, o autor busca a mostrar a relação entre um “interior” e um “exterior” dos textos associados ao discurso político, dentro do quadro evolutivo da ADF. Lembra que, no início dessa disciplina, o único grupo de pesquisa que estudava o discurso político era aquele do laboratório de lexicometria de Saint-Cloud, no qual a noção de exterior era compreendida como visão de mundo. Em seguida, evidencia o surgimento de termos para tratar do “exterior” do texto e sua relação com o “interior”: interdiscurso, primado do interdiscurso, formação discursiva, condição de enunciação, instituição discursiva, cena de enunciação. À guisa de conclusão, propõe três dimensões do discurso político: a) uma rede de dispositivos segundo a qual os indivíduos se constituem enquanto atores legítimos; b) um arquivo em que a atividade política é instaurada dentro de uma memória; c) uma dimensão midialógica que trata dos suportes materiais dos gêneros de discurso do campo político.

Diferentemente desse viés teórico-metodológico, o artigo Le discours de la revolution française. Aperçu dʼensemble dʼun trajet de recherche (1980-2009) (GUILHAUMOU, 2010), apresenta diversos trabalhos produzidos sobre esse tema, desde a formação da equipe « 18e-Révolution » nos anos 1970, no laboratório de lexicologia política da « École normale supérieure de Saint-Cloud ». A título de exemplo, destacamos a contextualização de: a) estudos sobre iniciativas político-linguísticas de gramáticos patriotas

22 Tradução livre de: « Trente ans d’étude des langages du politique (1980-2010) ». Disponível em: https://www.cairn.info/revue-mots-2010-3.htm. Acesso em: 23 ago. 2017.

ou de escritores revolucionários; b) métodos conceptuais de antônimos políticos; c) produção de dicionários de usos sociopolíticos do francês; c) estudos sobre os porta-vozes republicanos.

Procuramos, ao longo dessas últimas seções, demonstrar nossa inserção na tradição do discurso político (ampliado) que se estuda no domínio atual da AD. Dialogamos com os trabalhos citados, a fim de evidenciar que as intervenções de representantes permanentes no CSNU enquadram-se nessa tradição de pesquisa e, embora possam apresentar objetivos distintos de outras abordagens/outras pesquisas, articulam-se, de uma forma ou de outra, às grandes problemáticas lançadas por diferentes analistas do discurso.