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Mas, por que êste tema? Surgiu-me êle como o meio de retomar sob ângulo nôvo o problema da unidade de civilização

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 101-103)

que abordo, aliás, pela via da questão da verdade e das ordens

múltiplas de verdade. Já me havia parecido que uma civilização

tanto avança na linha da pluralização e da complexidade de

tarefas quanto na linha que conduz à unidade orgânica atestada

pelos grandes períodos. A dialética primordial da palavra e do

trabalho conduz-nos às cercanias do mesmo debate. Proced�

êste estudo, com efeito, de uma decepção e uma inquietação:

de uma decepção diante dos filósofos contemporâneos do tra­

balho (marxista, existencialista ou cristão) ; e de uma inquie­

tação em presença da noção de civilização do trabalho.

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A descoberta ou redescoberta do homem como trabalha­ dor é um dos grandes acontecir:ne�tos do �e��am:_nto contempo­ râneo; nossa aspiração de instltmr uma ClVtllzaçao d? tra

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alho

está de perfeito acôrdo com os pressupostos dessa ll

osofm do trabalho. Adiro plenamente a taiS pressupostos flloso!lcos e a essa aspiração econômic�-�ocia

, e

ôda m

nha an

lise. tende a responder à decepção e a mqmet�çao nascida no mterwr dessa

adesão e que dessa mesma adesao se nutrem.

Minha decepção está em ver essa reabilitação do trabalho triunfar no vácuo. Semelhante reflexão parte, com efeito, de uma forma determinada do trabalho: o trabalho como luta con­ tra a natureza física nos misteres antigos e no maquinismo in­ dustrial; depois, de próximo em próximo, a noção de trabalho se entumece até englobar tôdas as atividades científicas, morais e mesmo especulativas, e tende para a noção assaz indeterminada de uma existência militante e não contemplativa do homem. A essa altura, designa o trabalho tôda a condição encarnada do homem, pois que nada existe que o homem não opere por uma atividade laboriosa; nada há de humano que não seja praxis;

se, além disso, se considera que o ser do homem é idêntico à sua própria atividade, é preciso convir que o homem é trabalho. E por que não se prolongaria a filosofia do trabalho até essa

contemplação que é acessível ao homem, se é verdade que um nôvo campo de vir-a-ser e de atividade militante ainda se abre no cerne de uma vida eterna do homem? Dir-se-á, pois, que também a contemplação humana é trabalho.

Afinal, não se vê acaso uma teologia do trabalho retomar os fundamentos de uma filosofia do trabalho e prolongar-lhe as perspectivas, situando o trabalho na continuação da criação divina?

É precisamente essa apoteose do trabalho que me inquieta.

Uma noção que significa tudo, não significa mais nada. A re­ flexão pretende manter o benefício das análises em que a noção de trabalho tem sentido determinado - falou-se de modo ex­ celente da rude virtude do ofício manual "onde não se usa de manha com a matéria como se faz com as palavras ou com uma cultura à base de palavras"; mas ao mesmo tempo estende-se ao extremo a noção de trabalho para dessa maneira acumular também as vantagens que se podem tirar da indeterminação des­ sa noção. É ainda no trabalho manual que se pensa quando

se dá ao homem por divisa geral: fazer, e fazendo, fazer-se.

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E, entretanto, não existe embuste nesse modo de reflexão

que faz remontar de próximo em próximo o sentido do fazer

mais material à atividade mais espiritual, enquanto as resistên­ cias se sutilizam e a natureza rebelde, com a qual o homem obreiro luta, se refugia sucessivamente na obscuridade de um mundo a compreender e por fim, em nós mesmos, nas resis­ tências de um corpo indócil e na opacidade de nossas paixões. Aí não existe embuste, e sim uma parcialidade dissimulada, e, se ouso dizê-lo, uma espécie de zêlo excessivo.

O

problema não é interromper em determinado ponto êsse progresso da reflexão que recruta sucessivamente para a condi­ ção militante do homem todos os setores de sua atividade; a questão está antes em mesclar a essa leitura da condição hu­ mana uma outra leitura que a cruza de lado a lado. Pois tam­

bém a palavra acaba por anexar-se, de próximo em próximo, todo o humano; não existe um reino do trabalho e um império da palavra que se limitariam pelo exterior, mas existe um poder da palavra que atravessa e penetra todo o humano, inclusive a máquina, o utensílio e a mão.

Minha decepção toma de súbito sentido: essa espécie de repouso no vácuo da admirável noção de trabalho acaso não se prende à ausência de um contrário que lhe seja proporcional e que, ao limitá-la, a determina? É digno de nota que, nessa apo­

teose do trabalho, se lhe dê por contrário algo de tão distan­ ciado, de tão vago, e para tudo dizer, quimérico e estrangeiro à condição humana: a contemplação; nem mesmo, conforme se disse, qualquer contemplação humana ainda necessitada, mas a contemplação pura, o olhar que se tornaria presente a tudo ins­

tantâneamente, a visão sem esfôrço, porque sem resistência, a posse sem duração, porque sem esfôrço. Identificar a existência ao trabalho é a mesma coisa que banir da condição propria­ mente humana essa contemplação pura.

O

que é vão, ou pelo menos pouco edificante, pois uma tal idéia-limite não constitui contrapólo válido para a reflexão. É quimera que se afasta

de nós e dá lugar ao humano em tôda a amplidão. Acaso não será mais frutuoso discernir, no próprio interior da condição finita do homem, no cerne da vida militante do homem, os con­ trastes significativos? Não é mais aclarador conferir ao tra­ balho um contrapólo à sua medida, que lhe realce a significa­ ção, embora pondo em cheque sua suficiência? Por exemplo: acaso digo que estou a trabalhar quando volto de men em-

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prêgo e tomo repouso? Acaso trabalho quando leio, vou ao ci­

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