denominava antropocósmica 14 o otimismo trágico da Petite Peur 14 L'Homme et l'Univers (relatório), maio de 1949, págs 746�7: o
II. PALAVRA E "PRAXIS"
VERDADE E MENTIRA
Seria de desejar que se pudesse dar início a uma medita ção sôbre a verdade por uma celebração da unidade: a verdade não se contradiz, a mentira é legião; a verdade congrega os
homens, a mentira os dispersa e põe em conflito. E, entretanto, não é possível começar dessa maneira: o Uno é recompensa
por demais longínqua, e é antes de tudo uma tentação maligna.
Eis por que a primeira parte dêste estudo 1 será consagrada a
diferençar nossa noção de verdade. Desejaria mostrar que êsse esfôrç-o de redução dos planos ou ordens de verdade, não é
mero exercício escolar, mas corresponde a um movimento his tórico de dispersão; foi a Renascença, por excelência, o mo mento em que se tornou consciente -o caráter pluridimensional
da verdade; é pelo processo histórico que o problema da ver
dade diz respeito ao próprio movimento de nossa civilização e se presta a uma s-ociologia do conhecimento.
1 :&>te estudo constituía primitivamente um Rapport, submetido à discussão do "Congresso .Esprit" (Jouy-en-Josas, setembro de 1951 ) ; nada modificamos de seu caráter esquemático e unilateral. Exigia êle outras perspectivas complementares que a discussão não deixou de fazer surgir; não as quisemos trazer para dentro dêste estudo, que dêsse modo fica melhor aberta à discussão e à crítica. Por outro lado, servia êle de introdução a duas o:utras comun:cações de caráter mais preciso e mais concreto sôbre Verdade e mentira na vida privada e na política; não
é pois êsse estudo senão uma introdução, e de certo modo uma situação daqueles dois outros.
Mas 'a êsse processo de diferenciação responde um pro cesso inverso de unificação, de totalização, ao qual serã consa
grada a segunda parte dêste estudo. A interpretação dêsse pro cesso será a chave de tôda esta exposição: procurarei mostrar que a unificação do verdadeiro é ao mesmo tempo o intento da razão e uma primeira violência, uma falha; tocaremos assim um ponto de ambigüidade, um ponto de grandeza e culpabili dade; é precisamente nesse ponto que a mentira toca mais de perto a essência da verdade. Iremos diretamente ao aspecto do problema que diz respeito
à
interpretação de nossa civili zação. Histàricamente, a tentação de unificar de modo violento o verdadeiro pode provir e de fato proveio de dois pólos: o pólo clerical e o pólo político; para sermos mais exatos, de doispodêres, o poder espiritual e o poder temporal. Desejaria mos
trar que a síntese clerical do verdadeiro é a culpabilidade da autoridade especial que se vincula, para o crente,
à
verdade revelada, como a síntese política do verdadeiro é a culpabili dade que perverte a função natural e autênticamente dominante da política em nossa existência histórica. Eu seria, pois, levado a esboçar que sorte de autoridade pode a verdade teológico, exercer sôbre os outros planos de verdade, em que sentido uexatológico" e não "sistemático" pode ela unificar tôdas as ordens de verdade aos olhos do crente. Da mesma forma, ser -me-ia necessário elucidar os limites duma filosofia da história na sua pretensão a unificar os múltiplos planos de verdade em um único "sentido", numa única dialética da verdade.Os nódulos de minha análise seriam pois: a pluralização das ordens de verdade em nossa história cultural - o caráter ambíguo de nossa vontade de unidade, ao mesmo tempo como tarefa da razão e como violência - a natureza "escatológica'.' da síntese teológica - o caráter apenas "provável" de tôda síntese pela filosofia da história.
, T�lvez já se esteja a perceber que o espírito da mentira esta misturado de modo inextricável
à
nossa pesquisa da ver dade, como uma túnica de Nessus coladaà
estatura humana.A DIFERENCIAÇÃO DAS ORDENS DE VERDADE
A primeira vista, nada mais simples que a noção de ver
dade: defme-a a tradição como uma concordância uma con
cordância que se situa ao nível de nossa capacida
d
e de julgarl68
(de afirmar e de negar), uma concordância de nosso discurso com a realidade e de modo secundário, uma conc-ordância nos sa conosco mesm
�
s, uma concordância entre os e�píritos. Aten temos para a maneira de proceder da verdade: e um modo de nos pormos "em conformidade com . . . ", "do mesmo modoque . . . ". . . _ .
Mas ao primeiro exame, essa def1mçao se mamfesta pura mente fo
;
mal como o próprio têrmo "realidade" que lhe serve de referência.'
Existe um caso limite em que o sentido é tanto mais claro quanto mais anódino, aquêle em que a conformidade de nosso pensamento não é senão simples _:epetição de uma ordem já estruturada, onde nossa mamfestaçao nada desco�
re, nada inova não entra em conflito com qualquer contestaçao: chove a p�rede é branca; é verdade, todos o sabem. AsSiliil que n'os afastamos dessas verdades corriqueiras e preguiçosas, é fácil de ver que o gesto de nos dispormos conforme: . . , tal qual é a coi<;a, vincula-se a todo um trabalho que consiste precisamente em elaborar o fato enquanto fato, a estruturar o real. Coloquemo-nos imediatamente n.o nível �a ciência experi mentai· eis a atividade de verdade mms conhecida e, no entanto, , . a mais difícil e serôdm.
Sua maneira de estruturar a realidade institui um tipo de verdade fundamentalmente solidário com seu estilo metodoló gico. Foi preciso, an�e� de t�do, que �s I?atemáticas, que des prezam a realidade v;sivel,. tJvessem atmg1do certa matundade, e depois que 0 espmto l!vesse audacwsamente afirmado que
s
Ó
a par;
ela do real passível de tr�dução matemática era .. "obje tiva" e que as qualidades pe;�eb1das eram �e;�mente subJe; tivas". Essa iniciativa do espmto tem sua h1stona (que Koyre escreveu) : data exatamente de Galileu. Foi êsse acontecimento cultural 0 nascimento da ciência experimental, que precipitoua derr
�
ada da síntese filosófico-teológica da verdade, ou que pelo menos a tornou visível; l?ois, c_onforme se v�rá, essa sín tese só existiu sob a forma de mtençao ou pretensao.Será então o caso de se dizer que êsse plano de verdade se poderia tornar o único plano de, r�ferência da verdade, e que é possível professar-se uma especie de momsmo da ver dade científica? O caráter evoluído da noção de "fato" cien tífico adverte-nos de antemão que o trabalho que conduz à "_er- .__
dade - 0 trabalho de verificação - com o qual se identifica
a verdade experimental, está vinculado ao método que regula
êsse trabalho e à decisão que o espírito toma de definir o obje tivo pela tradução matemática. Nem mesmo os mstrumentos d etxam e· d ser como , .0 mostrou Duhen, reveladores de fatos A . ... . . científicos reduções materiais de toda a ctencm antenor, teo-: rias feitas' realidade. Surge, pois, a. ver
�
ad_e com� �lgo qu� se vincula ao processo de verificação, 1sto e, as p_oss1b1hd�de� ms trumentais, à metodologia peculiar de de,termmada �1enc1a <.a qual determina um fato como físico, qmm1co, bwlog1co, psi cológico etc.) e ao método experimental em geral.Eis por que a verdade experimental deixa de lado outros planos de verdade; pode-se mostrar brevemente de que modo ela os envolve numa espécie de Hcírculo''.
Antes de mais nada, a verdade experimental supõe_ justa mente aquilo que exclui: a saber, o poder de conv1eçao que emana dêste mundo percebido por uma co.mumdade de homens. Sons, côros, formas concretas que constituem o an:b1�nte de nossa vida (nosso Lebenswelt) , são declarados .subjet!vos; e,
no entanto, se estamos no mundo, é po�que ex1ste �e
�
e al�o de percebido. Isso continua a ser verd�de1ro pa:a o sabw, nao só em sua vida extracientífica - tambem para ele o sol se le vanta, 0 pão e 0 vinho se caracterizam pelo resl?ectiv? s��or,por sua consistência etc. - mas ainda em ... sua vtda cte?-tíft:a; pois os objetos científicos que êle el�bora sa� as
?.
eterm1��çoes dêsse mundo que percebe; é no honzonte desse �un�
o que sua própria pesquisa se torna intram�ndana; m�ts, e nesse mundo percebido que se situam êstes objetos culturaiS que cons tituem o próprio laboratório os fios que se cruzam na luneta, a oscilação da agulha, o t;
ajeto da partícula na câmara de Wilson.O movimento de reabsorção do percebid� no experi��n tal não pode, portanto, ser pensado até às úll!mas . consequen cias, pois o percebido continua a ser o ma�o. ex1stenc1al da objetividade científica. Uma primeira vez ass1st1m�s
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. desdo bramento da verdade entre a objetividade e a ex1stenc1a per� cebida; êsse desdobramento aparece imediatamente como um envoltório mútuo um "círculo". Isto é importante para nossa interpretação ult�
rior da unidade do ve�dadeiro; nã? se �o-�
e reduzir êsse "círculo" a uma "hierarqma", que sena a tdeta mais satisfatória para nosso espírito de síntese.170
Comecei por êste exemplo, por ser o mais satisfatório; mas eis algo que toca mais de perto as nossas preocupações éticas e culturais.
Temos dito que o nascimento da ciência experimental era um acontecimento de nossa história cultural como a literatura, a teologia, a política; identificamos o laboratório e seus instru mentos como objetos culturais, como as casas, os livros, os teatros, os idiomas, os ritos. Todos êsses objetos culturais se acham não apenas radicados na presença convincente dêsse mundo percebido; mas são obra de uma atividade cultural, de uma vida de cultura, da qual faz parte a ciência, considerada subjetivamente como trabalho humano.
Ora, a ciência procede também à redução dos objetos de cultura, ao mesmo tempo que à dos objetos percebidos. Mais, ela reduz à mesma medida de objetividade o homem portador dessa cultura; biologia, psicologia, sociologia são repartições da ciência natural, na qual o homem não possui, como objeto de ciência, nenhum privilégio especial. Entretanto esta ciência, que reabsorve o homem como um objeto, pressupõe uma atividade
científica e um homem-sujeito, portador e autor de tais ativi dades; a própria redução do homem ao estatuto de objeto só é possível no interior de uma vida de cultura que o env-olve em sua praxis total. A ciência nunca ali está senão como "praxis"
entre outras, uma "praxis teórica" como diz Hesserl, constituída
pela decisão de afastar tôda preocupação afetiva, utilitária, po lítica, estética, religiosa, e pela decisão de só considerar verda� deiro o que atender ao critério do método científico em geral e da metodologia particular de tal on qual disciplina.
Iremos dêsse modo encontrar um "círculo" nôvo: o do homem como objeto de ciência e do homem como sujeito de cultura. Surge concomitantemente um nôvo plano de verdade o que diz respeito à coerência da praxis total do homem, à or
dem do seu agir: é o próprio plano de uma ética, no sentido mais geral da palavra.
Ser-nos-á necessário voltar em breve à difícil noção de ver dade ética; contentemo-nos, por ora, de ter feito surgir, umas das outras, as ordens de verdades, por um duplo processo de exclusão e de envolvimento mútuo. Temos assim esboçado uma dialé.tica de certo modo triangular entre o perceber, o saber e o ag�r. O percebido, com seu horizonte de mundo, envolve em um sentido ·o saber e o agir como o mais amplo teatro de nossa