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PALAVRA E "PRAXIS"

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 84-87)

denominava antropocósmica 14 o otimismo trágico da Petite Peur 14 L'Homme et l'Univers (relatório), maio de 1949, págs 746�7: o

II. PALAVRA E "PRAXIS"

VERDADE E MENTIRA

Seria de desejar que se pudesse dar início a uma medita­ ção sôbre a verdade por uma celebração da unidade: a verdade não se contradiz, a mentira é legião; a verdade congrega os

homens, a mentira os dispersa e põe em conflito. E, entretanto, não é possível começar dessa maneira: o Uno é recompensa

por demais longínqua, e é antes de tudo uma tentação maligna.

Eis por que a primeira parte dêste estudo 1 será consagrada a

diferençar nossa noção de verdade. Desejaria mostrar que êsse esfôrç-o de redução dos planos ou ordens de verdade, não é

mero exercício escolar, mas corresponde a um movimento his­ tórico de dispersão; foi a Renascença, por excelência, o mo­ mento em que se tornou consciente -o caráter pluridimensional

da verdade; é pelo processo histórico que o problema da ver­

dade diz respeito ao próprio movimento de nossa civilização e se presta a uma s-ociologia do conhecimento.

1 :&>te estudo constituía primitivamente um Rapport, submetido à discussão do "Congresso .Esprit" (Jouy-en-Josas, setembro de 1951 ) ; nada modificamos de seu caráter esquemático e unilateral. Exigia êle outras perspectivas complementares que a discussão não deixou de fazer surgir; não as quisemos trazer para dentro dêste estudo, que dêsse modo fica melhor aberta à discussão e à crítica. Por outro lado, servia êle de introdução a duas o:utras comun:cações de caráter mais preciso e mais concreto sôbre Verdade e mentira na vida privada e na política; não

é pois êsse estudo senão uma introdução, e de certo modo uma situação daqueles dois outros.

Mas 'a êsse processo de diferenciação responde um pro­ cesso inverso de unificação, de totalização, ao qual serã consa­

grada a segunda parte dêste estudo. A interpretação dêsse pro­ cesso será a chave de tôda esta exposição: procurarei mostrar que a unificação do verdadeiro é ao mesmo tempo o intento da razão e uma primeira violência, uma falha; tocaremos assim um ponto de ambigüidade, um ponto de grandeza e culpabili­ dade; é precisamente nesse ponto que a mentira toca mais de perto a essência da verdade. Iremos diretamente ao aspecto do problema que diz respeito

à

interpretação de nossa civili­ zação. Histàricamente, a tentação de unificar de modo violento o verdadeiro pode provir e de fato proveio de dois pólos: o pólo clerical e o pólo político; para sermos mais exatos, de dois

podêres, o poder espiritual e o poder temporal. Desejaria mos­

trar que a síntese clerical do verdadeiro é a culpabilidade da autoridade especial que se vincula, para o crente,

à

verdade revelada, como a síntese política do verdadeiro é a culpabili­ dade que perverte a função natural e autênticamente dominante da política em nossa existência histórica. Eu seria, pois, levado a esboçar que sorte de autoridade pode a verdade teológico, exercer sôbre os outros planos de verdade, em que sentido uexatológico" e não "sistemático" pode ela unificar tôdas as ordens de verdade aos olhos do crente. Da mesma forma, ser­ -me-ia necessário elucidar os limites duma filosofia da história na sua pretensão a unificar os múltiplos planos de verdade em um único "sentido", numa única dialética da verdade.

Os nódulos de minha análise seriam pois: a pluralização das ordens de verdade em nossa história cultural - o caráter ambíguo de nossa vontade de unidade, ao mesmo tempo como tarefa da razão e como violência - a natureza "escatológica'.' da síntese teológica - o caráter apenas "provável" de tôda síntese pela filosofia da história.

, T�lvez já se esteja a perceber que o espírito da mentira esta misturado de modo inextricável

à

nossa pesquisa da ver­ dade, como uma túnica de Nessus colada

à

estatura humana.

A DIFERENCIAÇÃO DAS ORDENS DE VERDADE

A primeira vista, nada mais simples que a noção de ver­

dade: defme-a a tradição como uma concordância uma con­

cordância que se situa ao nível de nossa capacida

d

e de julgar

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(de afirmar e de negar), uma concordância de nosso discurso com a realidade e de modo secundário, uma conc-ordância nos­ sa conosco mesm

s, uma concordância entre os e�píritos. Aten­ temos para a maneira de proceder da verdade: e um modo de nos pormos "em conformidade com . . . ", "do mesmo modo

que . . . ". . . _ .

Mas ao primeiro exame, essa def1mçao se mamfesta pura­ mente fo

;

mal como o próprio têrmo "realidade" que lhe serve de referência

.'

Existe um caso limite em que o sentido é tanto mais claro quanto mais anódino, aquêle em que a conformidade de nosso pensamento não é senão simples _:epetição de uma ordem já estruturada, onde nossa mamfestaçao nada desco

re, nada inova não entra em conflito com qualquer contestaçao: chove a p�rede é branca; é verdade, todos o sabem. AsSiliil que n'os afastamos dessas verdades corriqueiras e preguiçosas, é fácil de ver que o gesto de nos dispormos conforme: . . , tal qual é a coi<;a, vincula-se a todo um trabalho que consiste pre­

cisamente em elaborar o fato enquanto fato, a estruturar o real. Coloquemo-nos imediatamente n.o nível �a ciência experi­ mentai· eis a atividade de verdade mms conhecida e, no entanto, , . a mais difícil e serôdm.

Sua maneira de estruturar a realidade institui um tipo de verdade fundamentalmente solidário com seu estilo metodoló­ gico. Foi preciso, an�e� de t�do, que �s I?atemáticas, que des­ prezam a realidade v;sivel,. tJvessem atmg1do certa matundade, e depois que 0 espmto l!vesse audacwsamente afirmado que

s

Ó

a par

;

ela do real passível de tr�dução matemática era .. "obje­ tiva" e que as qualidades pe;�eb1das eram �e;�mente subJe; tivas". Essa iniciativa do espmto tem sua h1stona (que Koyre escreveu) : data exatamente de Galileu. Foi êsse acontecimento cultural 0 nascimento da ciência experimental, que precipitou

a derr

ada da síntese filosófico-teológica da verdade, ou que pelo menos a tornou visível; l?ois, c_onforme se v�rá, essa sín­ tese só existiu sob a forma de mtençao ou pretensao.

Será então o caso de se dizer que êsse plano de verdade se poderia tornar o único plano de, r�ferência da verdade, e que é possível professar-se uma especie de momsmo da ver­ dade científica? O caráter evoluído da noção de "fato" cien­ tífico adverte-nos de antemão que o trabalho que conduz à "_er- .__

dade - 0 trabalho de verificação - com o qual se identifica

a verdade experimental, está vinculado ao método que regula

êsse trabalho e à decisão que o espírito toma de definir o obje­ tivo pela tradução matemática. Nem mesmo os mstrumentos d etxam e· d ser como , .0 mostrou Duhen, reveladores de fatos A . ... . . científicos reduções materiais de toda a ctencm antenor, teo-: rias feitas' realidade. Surge, pois, a. ver

ad_e com� �lgo qu� se vincula ao processo de verificação, 1sto e, as p_oss1b1hd�de� ms­ trumentais, à metodologia peculiar de de,termmada �1enc1a <.a qual determina um fato como físico, qmm1co, bwlog1co, psi­ cológico etc.) e ao método experimental em geral.

Eis por que a verdade experimental deixa de lado outros planos de verdade; pode-se mostrar brevemente de que modo ela os envolve numa espécie de Hcírculo''.

Antes de mais nada, a verdade experimental supõe_ justa­ mente aquilo que exclui: a saber, o poder de conv1eçao que emana dêste mundo percebido por uma co.mumdade de homens. Sons, côros, formas concretas que constituem o an:b1�nte de nossa vida (nosso Lebenswelt) , são declarados .subjet!vos; e,

no entanto, se estamos no mundo, é po�que ex1ste �e

e al�o de percebido. Isso continua a ser verd�de1ro pa:a o sabw, nao só em sua vida extracientífica - tambem para ele o sol se le­ vanta, 0 pão e 0 vinho se caracterizam pelo resl?ectiv? s��or,

por sua consistência etc. - mas ainda em ... sua vtda cte?-tíft:a; pois os objetos científicos que êle el�bora sa� as

?.

eterm1��çoes dêsse mundo que percebe; é no honzonte desse �un

o que sua própria pesquisa se torna intram�ndana; m�ts, e nesse mundo percebido que se situam êstes objetos culturaiS que cons­ tituem o próprio laboratório os fios que se cruzam na luneta, a oscilação da agulha, o t

;

ajeto da partícula na câmara de Wilson.

O movimento de reabsorção do percebid� no experi��n­ tal não pode, portanto, ser pensado até às úll!mas . consequen­ cias, pois o percebido continua a ser o ma�o. ex1stenc1al da objetividade científica. Uma primeira vez ass1st1m�s

}W

. desdo­ bramento da verdade entre a objetividade e a ex1stenc1a per� cebida; êsse desdobramento aparece imediatamente como um envoltório mútuo um "círculo". Isto é importante para nossa interpretação ult

rior da unidade do ve�dadeiro; nã? se �o-

e reduzir êsse "círculo" a uma "hierarqma", que sena a tdeta mais satisfatória para nosso espírito de síntese.

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Comecei por êste exemplo, por ser o mais satisfatório; mas eis algo que toca mais de perto as nossas preocupações éticas e culturais.

Temos dito que o nascimento da ciência experimental era um acontecimento de nossa história cultural como a literatura, a teologia, a política; identificamos o laboratório e seus instru­ mentos como objetos culturais, como as casas, os livros, os teatros, os idiomas, os ritos. Todos êsses objetos culturais se acham não apenas radicados na presença convincente dêsse mundo percebido; mas são obra de uma atividade cultural, de uma vida de cultura, da qual faz parte a ciência, considerada subjetivamente como trabalho humano.

Ora, a ciência procede também à redução dos objetos de cultura, ao mesmo tempo que à dos objetos percebidos. Mais, ela reduz à mesma medida de objetividade o homem portador dessa cultura; biologia, psicologia, sociologia são repartições da ciência natural, na qual o homem não possui, como objeto de ciência, nenhum privilégio especial. Entretanto esta ciência, que reabsorve o homem como um objeto, pressupõe uma atividade

científica e um homem-sujeito, portador e autor de tais ativi­ dades; a própria redução do homem ao estatuto de objeto só é possível no interior de uma vida de cultura que o env-olve em sua praxis total. A ciência nunca ali está senão como "praxis"

entre outras, uma "praxis teórica" como diz Hesserl, constituída

pela decisão de afastar tôda preocupação afetiva, utilitária, po­ lítica, estética, religiosa, e pela decisão de só considerar verda� deiro o que atender ao critério do método científico em geral e da metodologia particular de tal on qual disciplina.

Iremos dêsse modo encontrar um "círculo" nôvo: o do homem como objeto de ciência e do homem como sujeito de cultura. Surge concomitantemente um nôvo plano de verdade o que diz respeito à coerência da praxis total do homem, à or­

dem do seu agir: é o próprio plano de uma ética, no sentido mais geral da palavra.

Ser-nos-á necessário voltar em breve à difícil noção de ver­ dade ética; contentemo-nos, por ora, de ter feito surgir, umas das outras, as ordens de verdades, por um duplo processo de exclusão e de envolvimento mútuo. Temos assim esboçado uma dialé.tica de certo modo triangular entre o perceber, o saber e o ag�r. O percebido, com seu horizonte de mundo, envolve em um sentido ·o saber e o agir como o mais amplo teatro de nossa

existência; os laboratórios, as aplicações da ciência - ao traba­

lho, ao bem-estar, à guerra - dão à ciência uma presença per­

cebida, e dêsse modo ela se agrega à nossa vida e à nossa

morte.

E no entanto, o saber científico por sua vez tudo envolve,

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 84-87)

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