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seguirei a ordem precedente: econômico, político, cultural Par­ tirei do político Temos com efeito a sorte de poder apoiar-nos

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 62-71)

aqui na doutrina paulina do magistrado; a partir daí, talvez, possamos tentar dizer também alguma coisa das outras esferas de relação humana.

Em Romanos 1 3 desenvolve São Paulo uma teoria do ma­ gistrado,_ da qual nem todos üS aspectos têm aqui interêsse para nós, a não ser o seguinte: é por seu caráter de instituição e não por seu caráter pessoal que se diz "provir de Deus" a au­ toridade.

Tôdas as autoridades são "constituídas," 2 instituídas por Deus: resistir à autoridade é resistir à "ordem'' que Deus esta­ beleceu. 3 "A autoridade é o ministro de Deus para o teu bem"; é à função dela que se dirige nosso respeito. Tôdas essas pala­ vras: instituição, ordem, bem, função, situam-se ao nível da­ quilo que, faz pouco, eu denominava o coletivo humano. Que quer isto dizer? Quer dizer que Gengis Khan, Napoleão, Hitler, Stalin foram pessoalmente investidos de uma espécie de eleição de direito divino? Não, isso quer dizer, parece-me, que onde o Estado é Estado, através ou apesar da maldade do titular do poder, algo que é bom para o homem se acha a funcionar. Admito que êste crédito que se abre em prol do Estado é uma aposta. Aposta-se que, globalmente, o Estado é bom - através e apesar da maldade dos indivíduos que estão no poder.

. Ora,, é preciso que se diga, São Paulo ganhou a aposta; os 1mpénos, através e apesar de suas violências, fizeram pro­ gredir o direito, o conhecimento, a cultura, o bem-estar e as artes; a Humanidade não sOmente sobreviveu, mas cresceu, tor­ nou�se amadurecida e adulta, mais responsável; de maneira se­ creta, . e q�e secreta perrr:anecerá até a Jerusalém celeste, a pe­

?

agogta vwlenta do magtstrado portador do gládio coordena-se a pedagogt� do amor fraternal. Não se deve esquecer, o capí­ tulo 13 se msere entre dois hinos dedicados ao amor recíproco;

� q�e bem prova que São Paulo não se embaraça com a dis­ tmçao entre :elações pessoais e relações públicas: "Não pa­ gueis a nmguem o mal com o mal", disse êle no capítulo pre­ cedente; e após o parágrafo sôbre o Estado, volve êle: "O amor não prejudica ao próximo. O amor é o pleno cumprimento da lei." Assim, a teoria da autoridade insere-se entre dois apelos ao amor fraternal; o que não se faz sem paradoxo: pois o

2 Tetagmenai eiSln.

3 Tê ecsousia tê toil Theoü. diatagê. 124

magistrado, ao contrário do mandamento do amor, produz 0

mal ao punir; como compreender que é a mesma economia da redenção que se desenrola através das duas pedagogias? Vive­ mos no dilaceramento das duas pedagogias.

Objetar-se-á que a doutrina paulina da autoridade não con­ vida à procura dos sinais de redenção ao nível das comunidades históricas, de vez que a magistratura não é portadora da marca do amor fraternal; acaso não preferiu a doutrina da reforma referir-se antes à política como ordem da conservação do que como ordem da redenção? Mas que se lucra com essa distinção? A Humanidade não é só conservada. É promovida, instituída, educada pela política. Se essa educação se situa fora da reden­ ção, que tem ela a ver com o Evangelho e por que São Paulo a ela se refere? E se a redenção não inclui a história efetiva dos homens, que é política por um lado, acaso não será ela abs­ trata e irreal?

Três observações nos permitirão talvez atenuar o disparate entre a redenção enquanto tem por sinal o amor fraternal, e essa espécie de pedagogia do gênero humano que o apóstolo diz instituída por Deus para nosso bem: repugna-nos falar da redenção ao nível do desenvolvimento político da Humanidade, porque perdemos um dos sentidos fundamentais da redenção, que é o crescimento da Humanidade, seu acesso à maturidade, à idade adulta. "É preciso ser feito homem para ser feito Deus", dizia Irineu. Ora, a mais leiga das instituições, a magistratura menos eclesiástica, se fôr justa, se está .em c-onformidade com sua função, como diz Paulo, coopera com êsse crescimento; nesse sentido, é ela uma das vias da redenção corporativa dos homens. O próprio Kant percebia ainda algo que o teólogo pós-augus­ tiniano raramente compreende. 4 "O meio de que a natureza se serve para levar a bom têrmo o desenvolvimento de tôdas as suas disposições é um antagonismo no seio da sociedade, na medida em que êste é, não obstante, afinal a causa de um ordenamento regular dessa sociedade."

Essa "insaciável sociabilidade", que se torna o instrumento da sociedade civil, acaso não é a expressão laicizada da teolo­ gia dos Padres? E não será a justo título que essa expressão é laicizada, se é verdade que a redenção assimila a via tortuosa

4 Idée d'une histoire zmiversalle ou point de vue cosmopolitique,

das magistraturas instituídas por Deus, não quando elas são cle­ ricais, mas quando justas?

Segunda observação: a pedagogia violenta do magistrado vincula-se à ardo amoris, à ordem fraternal do amor, pelo fio que lhe vem da utopia. Tem a utopia, com efeito, grande al­ cance teológico : é um dos caminhos desviados da esperança, um dos caminhos contornados pelos quais se promove a huma­ nização do homem, em vista de sua divinização. Existe um serviço que a utopia presta hoje, nesta época que a sociedade possui tantos meios e tão poucos objetivos; penso, particular­ mente, na doutrina do aniquilamento do Estado com os grandes liberais, os anarquistas, os partidários da Comuna de Paris, no Lênin d'O Estado e a Revolução; é com efeito por meio da utopia do fim do Estado - ao menos do Estado repressivo tal como hoje o conhecemos - que sonhamos com a reconciliação da política e da amizade; sim, sonhamos com um Estado que não seria senão o administrador das coisas e o educador das pessoas para a liberdade.

Essa utopia é vital para o próprio destino da política: ela lhe confere um objetivo, uma tensão e, se me é dado dizê-lo, uma esperança. Reconheço meu Evangelho no "anarquista" que prega a dissolução do Estado coativo, belicoso e policial; é meu Evangelho, que me caiu das mãos e foi soerguido por um homem que não sabe que confessa Jesus Cristo. Acaso não é na linha da utopia que se deve ler o próprio São Paulo? "A autoridade é o ministro de Deus para o teu bem." Pois, qual o Estado que é ministro para o meu bem, antes de que surja o Estado universal, pacífico e educador? Nenhum dos Estados atuais satisfaz à utopia, mas a todo Estado confere ela sentido e direção.

Terceira observação: o fôsso entre a pedagogia violenta do Estado e o amor fraterno não apenas diminui por meio da utopia, coisa que transfere para além da história o sinal da re­ conciliação, mas também pelo testemunho dos não violentos que

inscrevem êsse sinal _no presente. Penso expressamente em Gândi, nas formas não violentas do movimento dos negros ame­ ricanos e nas expressões variadas da resistência não violenta na Europa. Que faz o não violento? À primeira vista, êle se exclui da esfera política, de vez que desobedece à autoridade, mas na realidade, na profundeza das coisas, é êle que salva o Estado lembrando-lhe que não é Estado senão para conduzir

Os homens à liberdade e à igualdade; a não-violência é a espe­ rança vivida a tempo e fora de tempo ; é a esperança "intem­ pestiva" no sentido próprio da palavra. Com efeito, os meios do não-violento são os meios que se atribuem liminarmente aos fins de todo Estado, do próprio Estado violento, portanto; é por tais meios que o não-violento anuncia a êsse Estado que pertence à redenção, isto é, sua instituição para o bem dos homens.

Eis algumas observações que talvez façam compreender em que sentido as magistraturas humanas são os órgãos da reden­ ção, da grande redenção que não se processa apenas pela via do amor fraterno, mas também pela via do "grande animal". Eu me havia pr-oposto a falar da redenção nas três esferas do ter, do poder, do valer. Não segui essa ordem; tentei uma abertura no nível político e esbocei o tema de uma redenção em massa por intermédio de instituições a respeito das quais ousamos dizer com São Paulo que são instituídas por Deus.

Não se poderia encontrar o análogo de uma redenção pela instituição na ordem econômica e na ordem cultural, que de certo modo enquadram a política? Torna-se então necessário ampliar e generalizar essa noção de instituição de maneira a fazer com que ela cubra todo o campo das mediações estáveis e duráveis, dos utensílios às obras de arte, pelos quais os ho• mens se comunicam entre si.

A extensão de nossa reflexão do político ao econômico

é fácil: já o dissemos, a relação do homem às coisas que pos­ sui não tem qualquer existência fora do regime de propriedade e de uma organização do poder econômico. Ora, a própria Bíblia atribui uma esperança precisa ao pleno domínio da na­ tureza: eis o que leito no Salmo 8 :

"Quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrêlas que lá fixastes: "Que é o homem, digo-me então, para dêle vos lembrardes? Que é o filho do homem para que vos ocupeis com êle? Entretanto, vós o fizestes pouco infe­ rior aos anjos, de glória e de honra o coroastes. Destes-lhe o poder sôbre as obras de vossas mãos. V ás lhe submetestes tôda a criação: rebanhos e gados, e até os animais bravios, pás­ saros do céu e peixes do mar, tudo o que se move nas águas do oceano."

o domíni,0 sôbre as coisas é assim uma das vias de acesso à maturidade, ao estado adulto do homem, e é sob . êsse tí

ulo uma das expressões da imago dei.

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ra, sabemos hoje que esse domínio é instituído pela orgamzaçao do trabalho, pela pre­ visão econômica e tôdas as formas "constituídas" do poder eco­ nômico. Não é, pois, sàmente a r.el�ç

o pesso�l do indivíd�o aos haveres mas o conjunto das msl!tmçoes economrcas que e cha­ mado

à

redenção. É, pois, a êsse C_?njunto instituído . que d�­ vemos tentar aplicar nossas observaçoes antenores, lrmrtadas as

magistraturas políticas. . . . _

Deve-se preliminarmente observar que a plena srgmfrcaçao da noção de autoridade civil não aparece senão quando desvin­ culada de sua função puramente repressiva e penal; sabemo-lo hoje melhor a função repressiva não manifesta a ordem senão como "orde

estabelecida", isto é, "desordem estabelecida"; a instituição não é sinal do Reino, senão �a medida em que edi­ fica a comunidade humana, que constrm a crdade; o castrgo só faz conservar uma ordem já instituída; é de certo modo a recaída das instituições, sua reação contra os "maus", os quais até certo ponto são os portadores do destino de instituições futuras mais justas e mais fraternais. Eis por que, ao alargar a noção de instituição até às dimensões do social e do econô­ mico, fazemos aparecer não somente o sentido humano da jus­ tiça, mas a significação teológica da instituição; o desenvolvi­ mento do Estado moderno é, sob êsse ponto de vista, como que uma exegese viva e concreta da noção paulina de instituição. 5

Por outro lado, o que dissemos da função da utopia, como expressão puramente humana, racional e civil da esperança en­ contra aqui, não sàmente uma aplicação essencial, n;�s um ponto de apoio assaz concreto. A utopia puramente polrtrca do aniquilamento do Estado repressivo é uma utopia abstrata, en­ quanto não estiver coordenada a uma utopia do trabalho desa­ Iienado· talvez mesmo seja esta a utopia por excelência, a que ' . ' responde à maldição do ter, da avareza que separa; pors e em

5 "É justamente quando o Estado cessa de ser poderio de pura repressão e conservação de uma ordem estabelecida ao sabor das con­ tingências da história, de uma ordem que dissimula mal a desordem fundamental das paixões e dos interêsses individuais ou coletivos, que sua própria função assume tôda sua significação no desígnio de Deus; pode êle então participar, no domínio que lhe é próprio, na edificação dêsses sinais que, para a fé, anunciam o Reino que há de vir." R. MEHL, Explication de la confession de foi de La Rachei/e, pág. 162.

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têrmos de riqueza (riqueza material, riqueza intelectual e espi­ ritual) que se exprime tôda maldição: "Ai dos ricos!" Tôda benção deve, pois, encontrar sua projeção nesse mesmo regis .. tro. Qual o sentido que isto pode ter, senão uma revolução que transtorna as relações de expropriação e de exclusão mú­ tua instituídas pela propriedade? A reapropriação da essência do homem perdida no ato de possuir, ou o que dá no mesmo, a reconciliação dos homens separados por seus haveres é, com a utopia do aniquilamento do Estado, a utopia reguladora de todo pensamento econômico zeloso de exibir os sinais do Reino que há de vir.

E se prossigo no paralelismo com a redenção por meio das magistraturas, não deveria eu dizer que a não-violência no pla­ no político apresenta, também ela, o seu simétrico na pobreza franciscana? A pobreza franciscana acaso não anuncia de ma­ neira intempestiva - intempestiva em relação a tôda econo­ mia razoável e regular - o fim da maldição que se vincula à

apropriação privada e ciumenta, que gera dureza e solidão? Uma visão ampla e generosa da redenção acaso não nos en­ sina a ler determinados sinais do Reino que há de vir nas mais doidas emprêsas vinculadas ao aniquilamento do Monstro-Ca­ pital, assim como o da Besta-Estado?

Meus amigos, avanço timidamente nas vias perigosas e vos pergunto se é a esperança que nos chama ou somente a sedução do mundo . . . Talvez algumas pérolas de esperança se perde­ ram na palhada das falsas expectativas.

É mais insólito falar de "instituições" a propósito da cul­ tura, que a propósito da vida política, social ou econômica. No entanto, o sentido profundo da instituição não aparece senão quando ela se estende até às imagens do homem na cultura, na literatura e nas artes. Essas imagens, com efeito, são cons­ tituídas ou instituídas; têm uma estabilidade e uma história pró­ prias que superam os azares da consciência individual: sua es­ trutura é passível de uma psicanálise da imaginação que versaria sôbre a temática dessas imagens do homem, sôbre as respecti­ vas linhas de fôrça e de evolução: é nesse sentido que a cultura se institui no nível mesmo da tradição do imaginário. É pois nesse nível que também se deve pesquisar os sinais do Reino que há de vir.

Ora, a imaginação tem uma função metafísica que não se poderia reduzir a uma simples P.roje�ão

os desejos �itais in­ conscientes e recalcados; tem a tmagmaçao uma funçao pros­ pectiva, uma função de exploração face aos possíveis do ho­ mem. É por excelência a instituição e a constituição do pos­ sível humano. É na imaginação de seus possíveis que o homem exerce a profecia de sua própria existência. Compreende-se, por conseguinte, em que sentido se pode falar de uma redenção por imaginação: é através dos sonhos de inocência e reconciliação que a esperança trabalha em plena massa humana; no sentido amplo da palavra, as imagens de reconciliação são mitos; não no sentido positivista do mito, no sentido de legenda ou de fábula, mas no sentido da fenomenologia da religião, no sen­ tido de uma narrativa significativa do destino humano global­ mente considerado; mythos quer dizer palavra; a imaginação, enquanto função mito-poética, é também a sede de um trabalho em profundidade que comanda as mudanças decisivas de nossas visões do mundo; tôda conversão real é antes de mais nada uma revolução ao nível de nossas imagens diretrizes; ao mudar sua imaginação, muda o homem sua existência.

Alguns exemplos tirados da literatura e das artes farão compreender essas revoluções de fundo. Disse mais acima que o homem pode perverter-se no nível das imagens que forma de sua própria face; evoquei nessa ocasião a função de escân­ dalo da literatura e às vêzes das artes plásticas e a ambigüidade que seduz e diz a verdade. Gostaria de dizer agora que os sinais da redenção não são sempre de serem procurados em algo que seria o contrário do escândalo; bem ao contrário: é pelo escândalo, muitas vêzes, que se anuncia a salvação; é sob as mais destruidoras aparências que a imagem se faz "edifi­ cante"; há decisões que purificam, como existem apologias que traem; assim como o magistrado castiga, a literatura castiga com o gládio da denúncia e do escândalo.

Mas, em si mesmo, não é o escândalo senão o avêsso da função utópica da cultura; a imaginação, na medida em que pesquisa as mais impossíveis possibilidades do homem, é o ôlho avançado da Humanidade que marcha para um maior grau de lucidez, de maturidade, em suma, para sua estatura adulta. O artista é assim na esfera cultural aquilo que é o não-violento na esfera política; êle é "intempestivo"; assume os maiores ris-

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cos, porque jamais sabe se está a construir ou a destruir; se não destrói quando crê construir; se não constrói quando crê des­ truir; se não planta quando seria preciso arrancar, se não ar� ranca quando seria tempo de plantar.

Mas então, devemos estar temerosos devido ao risco imen­ so que é ser homem? Talvez devêssemos atribuir à própria generosidade de Deus êsse perigoso aprendizado do homem atra­ vés do bem e do mal, confiando-nos à sua generosidade.

Terminarei por onde comecei, uma vez que me arrisquei nesta palestra sôbre a interpretação dada pelos Padres a res­ peito da imagem de Deus; voltarei portanto, uma vez mais, aos Padres da Igreja. Quando os gnósticos os atropelavam com o problema do mal, não hesitavam êles em inserir na grandeza da criação a produção do homem livre capaz de desobedecer; o risco do mal era assim incluído aos olhos dêles nessa ascensão à maturidade da criação inteira.

"Tendo Deus manifestado sua generosidade, declara Irineu, o homem conheceu o bem da obediência e o mal da desobe­ diência, a fim de que o ôlho de sua inteligência, ao receber a experiência duma e doutra coisa, faça judiciosamente a escolha das coisas melhores e não seja nunca preguiçoso ou negligente no que diz respeito ao preceito de Deus . . . " Para Tertuliano também, o homem é constituído à imagem de Deus por sua adesão livre: "Foi preciso, pois, que a imagem e a semelhança de Deus estivesse dotada de liberdade e autonomia no seu que­ rer, pois que é nessa liberdade que se define a imagem e a seme­ lhança de Deus". E ainda: "Pela liberdade cessa o homem de ser escravo da natureza; apropria-se seu próprio bem e assegu­ ra-lhe a excelência, não como uma criança que recebe, mas como um homem que consente.,

Talvez devamos crer que até Deus, querendo ser conhecido e amado livremente, correu êsse risco que se chama o Homem.

SEGUNDA PARTE

I . PERSONALISMO

EMMANUEL MOUNIER: UMA FILOSOFIA PERSONALISTA

Nosso amigo Emmanuel Mounier não mais responderá às nossas perguntas: uma das crueldades da morte é mudar radi­ calmente o sentido de uma obra literária que ainda se constrói: não só ela não mais continuará, como também é subtraída a êsse movimento de intercâmbio, de interrogações e respostas, que situava êsse autor entre os vivos. Torna-se para sempre obra escritaJ e apenas escrita; consuma-se a ruptura com seu autor, cuja obra entra doravante no campo da única história possível, a dos leitores, a dos homens vivos que ela alimenta. Em certo sentido, uma obra atinge a verdade da sua existência literária quando morre seu autor; tôda publicação, tôda edição inaugura a impiedosa relação dos homens vivos com o livro de um homem virtualmente morto.

Os vivos menos preparados a participar de tal relação são, sem dúvida, aquêles que conheceram e amaram o homem, aqüe­ le que viveu . . . e cada leitura renova nêles e consagra de certo modo a morte do amigo.

Não fui capaz de reler os livros de Emmanuel Mounier como os livros devem ser lidos, como se fôssem livros de um morto. Dêsse modo, não se queira ver nestas páginas um estudo histórico puro e simples, mas algo de híbrido, que começa no domínio da leitura e pretende em vão continuar o diálogo im­ possível . . .

Reli em primeiro lugar, e de certo modo em contr�ponto, os artigos de Emmanuel Mounier aparecidos em Esprzt e�tre outubro de 1932 e dezembro de 1934 (e que foram reumdos

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