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Esta última observação sugere que a idéia de progresso, ainda quando corrigida, não exclui da história uma ambigüidade

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 76-78)

irredutível, uma dupla possibilidade de petrificação e de liber­

tação: as situações que o homem inventou e que depois se

interpuseram em sua rota como enigmas

à

espera de decifração,

são um complexo de oportunidades e de perigos. Mas a tarefa

do homem é correr seus próprios riscos; a partida na direção

do artificial vincula-se

à

própria condição de homem na medida

em que êle tem uma "História" e não mais só uma "natureza".

Nesse particular, Mounier chega bem perto de Marx: "A natu­

reza não é apenas matriz da Humanidade: oferece-se ao homem

para ser por êste recriada . . . O hom�m. se vê h�ie, cha;nado a ser o demiurgo do mundo e de sua propna cond1çao (pag.

75).

Aqui atinge a reflexão o ponto decisivo: essa história c-onstitutiva de um destino tomado em conjunto terá acaso sen­ tido? Orienta-se tal sentido para algo de melhor? Esse algo melhor terá como caminho por excelência o desenvolvimento das ciências e das técnicas? E finalmente o sentido dessa as­ censão será para o homem "a missão gloriosa de ser o autor de sua própria ascensão?" (pág.

104).

Eis o complexo de ques­ tões que constitui o problema do progresso. Emmanuel Mou­ nier aborda-o concedendo um crédito de confiança, embora se reserve o direito de criticar antes um certo otimismo inicial que um pessimismo inicial. Todo êsse livro tende a substituir, na alma do leitor, o regime afetivo do "pessimismo ativo" pela disposição contrária do "otimismo trágico", isto é, o clima da confiança corrigido pela experiência do combate indeciso e obs­ curecido pela possibilidade do malôgro. Não se deve acusar Mounier de ter sistematizado sua apologia do progresso : suas páginas mais lúcidas são aquelas em que se faz a distinção da escatologia cristã do progresso face ao racionalismo do século

XVIII

ou face à dialética marxista. Em particular, o emprêgo que se faz do Apocalipse, na primeira e na terceira conferên­ cias, conduz-nos a atribuir ao otimismo posição privilegiada, mas com m] reservas que não temos o direito de negligenciar. A bem dizer, o "clima", o "tom" que Mounier designa pelo nome de otimismo trágico é algo mais complexo do que poderia parecer à primeira vista: traz no bôjo duas tendências prestes a se disso�ia_rem; uma, que permanece em primeiro plano, tende para o ot1m1smo como resultante final do drama; a outra mais discreta, tende para o sentimento de ambigüidade da hi

tória, em cujo seio se digladiam o melhor e o pior. Emmanuel Mou­ nier pôs sem dúvida em cena um debate de interêsse de histo­ riadores� soc

ólogos,

J

ilósofos, teólogos; a questão que deixa em aberto e a mterseçao duma teologia bíblica e duma filosofia profana de história, na encruzilhada do otimismo como ba­ lanço �ositivo, em face dos olhos humanos, e da esperança como ftrme certeza de um sentido oculto. Mas uma vez mais sua tarefa própria é pôr-nos de sobreaviso contra uma aborda­ gem especulativa do problema, desvinculada da crítica do mun­ do contemporâneo e isolada do problema central da Revolução do século XX.

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2 . Em prol de um cristianismo dos fortes

Tal grau de proximidade em relação ao movimento da his­ tória conduziria um espírito fácil à divinização do homem. Mas quanto mais acentuava Mounier seu parentesco com a dialética marxista, tanto mais êle se reequilibrava por um senso abrupto, virulento, da transcendência cristã. Eis por que não se deve tomar La Petite Peur du XX• Siecle sem L' Affrontment chré­ tien. Este livro foi escrito em Dienlefit, no inverno de

1943-

1944,

símbolo de tanta pobreza material e de ascese interior. Outro, que não eu, dirá o que foi em Emmanuel Mounier o cristã-o; quanto a mim, só buscarei nesse livro, tão duro para o cristão ordinário, tão exigente, suas incidências filosóficas. Pode-se dizer que êle, por inteiro, uma meditação sôbre a vir­ tude da fôrça, da qual tratou São Tomás, depois dos Padres. Não é por acaso que essa obra é possuída pela idéia fixa de Nietzsche como a Petite Peur o é pela de Marx. Pois só o cristão que tem algo a retrucar a Nietzsche é cristão assaz duro para não mais se deixar dissolver na parcela de marxismo que assume. Nêle se acha a articulação dos dois primeiros grupos de meditações publicadas após a guerra. Nietzsche propõe ao cristão um problema que no fundo o atinge mais perto do cora­ ção que o marxismo; pois ,o argumento anticristão do marxismo ainda permanece muito sociológico para produzir comoção maior: respondeu-me depressa demais que Marx só havia conhe­ cido uma caricatura do cristianismo, uma cristandade decaden­ te, que se apressava em cobrir os privilégios da burguesia com um Evangelho pervertido da resignação. Ao passo que Nietzs­ che é aquêle que, para além do malôgro sociológico da cristan­ dade, pretende descobrir um malôgro de origem, vinculado à existência cristã como tal; "Será verdade que o cristianismo,

capaz de lançar um clarão tranqüilo sôbre as civilizações enve­ lhecidas e as vidas em declínio, é um veneno para as muscula­ turas jovens, um inimigo da fôrça viril e da graça natural ( . . . ) ? ( . . . ) Traria acaso o cristianismo em seu bôjo alguma fraqueza liminar cujos efeitos emergem enfim à luz depois de terem sido retardadas pela lentidão e a complexidade da história?"

(págs.

1 1

e

14).

Emmanuel Mounier procura servir-se da "conversão atéia" como provação à "conversão cristã" (págs.

23-24).

A primeira iniciativa do cristão, s-ob a conduta do "�ava­

leiro vestido de sombra", é tomar a encontrar aquela qualidade

do trágico cristão digna do diálogo com Nietzsche: trági�o de

paradoxo - pois que é preciso m.orr�r ao mundo e nel: se

empenhar afligir-se pelo pecado e rejubi1ar-se pelo homem novo.

Mas que 'decadência dêsse trágico ao "espírito de nôvo-rico"

do cristão ordinário 'à "tristeza terna e algo estúpida" do con­

trito à "náusea de' viver dos desfavorecidos ou dos anêmicos

do �ombate espiritual", à "rovardia espiritual" e à "morna e

estéril pureza" dos vir�uos?s!

.

.

.

.

A segunda iniciativa e descobnr no cerne do cnstmmsmo

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 76-78)

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