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Somos assim recambiados àqueles afetos dos quais disse­ mos possuírem afinidade com a negação: falta da carência, pe­

No documento Historia e Verdade Paul Ricoeur (páginas 163-172)

sar, impaciência, angústia; não se pode, ao que parece, ir mais

longe; é preciso admitir, a título de resíduo da análise regres­

siva, que a negação proferida, elaborada em tôrno da idéia de

outrem, de alteridadc,

exiba

negativo em certas "tonalidades"

vividas; êsse negativo, inscrito mais abaixo que qualquer dis�

curso, Spinoza o denominava "tristeza". "Por tristeza, dizia êle,

entendo uma paixão pela qual a alma passa a uma perfeição

menor". Essa

diminuição de existência

que afeta o próprio es-

fôrço pelo qual a alma se esfor�a- em pe:�everar no seu ser, pode bem denominar-se uma af01çao pnmtl!va.

Dêsse modo, venho eu a forma� a idéia de ��a falha

e subsistência, ou contigência, que a �aracte:1stica on�o

?­ gica de minha existência enquanto � lambem u:ol:' tdeta que tomo de empréstim? .à esfera das coisas onde d:stmgo o necessário do não-necessano na ordem das determmaçoes com­ preendidas· eu a retomo e aplico a êsse obscuro abalo de todo

0 meu ser' a essa vaga vertigem que se origina de meditação

simultânea' do nascimento e da morte, da carência e do esque­ cimento, do envelhecimento e do inconsciente. Falta-me o ser necessário, posso não ter sido, posso não ser mais. Sou a não-necessidade vivente do existir.

É, pois, dessa negação primordial, que agora denomino con­ tingência ou insnbsistência, que o ato de transcendência se faz a negação segunda. A denegação é negação de negação. Com mais exatidão, o pensamento que visa ao sentido para além da perspectiva finita, a tomada de posição que visa à validez para além do ponto de vista do próprio querer, encontram-se face à negação de limitação em uma relação específica que se enun­ cia bastante bem em expressão como esta: penso, quero, a des­

peito de minha limitação. A despeito de . . . tal me par�ce. ser

a relação mais concreta entre a negação como transcende_nci� e a negação como limitação, entre a denegação e o amqmla­ mento.

Que nos valeu esta análise? Isto: a negatividade que nossa reflexão sôbre o sentido e o ponto de vista, sôbre o querer e o querer-viver, tinha pôsto em evidência não é uma nega�ão imediata, mas uma negação de negação. É portanto posstvel

reconhecer ali uma afirmação que se recupera resistmdo à re­ sistência, como diria Bergson.

4 . DENEGAÇÃO E AFIRMAÇÃO

É agora tarefa da análise reflexiva mostrar que a alma da recusa, da recriminação, da contestação e finalmente da inter­ rogação e da dúvida, é fundamentalmente afirmação; que a denegação não é jamais senão o reverso de uma afirmação mais originária e, se assim se pode dizer, só a metade de um ato. Dizer que a transcendência humana é negação a título pri­ mário, é autorizar a passagem da redução do nada ao próprio

f

i

nada. É tal passagem que precisamos examinar aqui. Ora, tôda a filosofia de Sartre repousa sôbre o direito de chamar "nada" aquilo que as análises anteriores só nos permitiam denominar "atos conduzindo ao nada". 4

Parte Sartre dessa observação, assestada contra Hegel, que o ser e o nada não são logicamente contemporâneos e que não existe passagem de um ao outro; o ser não passa ao nada e o nada ao ser; o ser é o ser e jamais a negação terá pé nêle, pois é preciso negá-lo para pensar em têrmos de não-ser. A plena e inteira positividade do ser é portanto inatacável. Resta pois, se desejamos dar contas da "origem da negação", que o nada surja "no próprio seio do ser, em seu coração, como um ver­ me" (pág.

57).

Em outras palavras, é preciso que o nada seja "de certo modo dado, dado no coração do ser" (pág. 58); se

com efeito o ser exclui o nada e até se apresenta sem relação com êle, é preciso que exista um ser que tenha por propriedade "aniqüilar o nada, sustê-lo pelo seu ser, apoiá-lo perpetua­ mente pela sua própria existência, um ser pelo qual o nada vem às coisas". Parodiando e retomando uma expressão conhe­ cida de Heidegger, chama-o Sartre: "um ser no qual em seu ser está em questão o nada de seu ser" (pág.

59).

Devemos bem compreender aquilo que Sartre espera de sua análise: não só um conjunto de atos que conduzem ao nada e que, êle próprio o reconhece, requeririam por sua vez um fundamento no ser, mas "uma característica ontológica do ser requerido" (pág.

59).

Em suma, um nada e não apenas

um ato conduzindo ao nada. A questão está exatamente nisso:

acaso os numerosos atos que conduzem ao nada descritos por Sartre com extraordinária virtuosidade - desde a interrogação, a dúvida, a ausência, a angústia, até a resposta petrificante ao olhar petrificante de outrem - postulam um tal nada de ser como característica ontológica?

Ésse nada, fonte dos atos que conduzem ao nada, Sartre pensa detectá-lo na liberdade: "essa possibilidade para a rea­ lidade humana de secretar um nada que a isola, Descartes, de­ pois dos estóicos, deu-lhe um nome, é a liberdade" (pág. 61 ) .

A que faz Sartre alusão? A ligação que o próprio Descar­ tes estabeleceu entre a dúvida e a liberdade. É verdade que

4 Cf. J. P. SARTRE, L'Etre et /e Néant, Paris, 1948.

Sartre se esquece de notar que, no J:rór:rio

J?

escar,t,es, .a lib.er­ dade na qual a dúvida desemboca nao e. senao o mms. baiXo grau da liberdade" por êle denommado hberdade de mdiferen­ ça. Seja como fôr

n

ssa

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berdade de d

.vida, e�c

,ntra

artre a recordação da brox� est01ca, ,--;- essa suspensao

o_ JUlga­ mento que liberta a alma d� sab10 do tumulto das paiXo<;s - e 0 anúncio da brox0 husserhana, pela qual o eu que medita se retira do todo natural, do todo feito. Êsse gesto de retirada, de arrancamento, de extração, êsse "remo q�e leva ao nada", Sartre volta a encontrá-la em todo ato autêntJCamente humano; retoma suas antigas análises da imaginação que o aniqüila todo o real em proveito da ausência e do irreal; reinterpreta o tempo para reencontrar, entre o passado e o presente, �ssa censur� que não é um obstáculo mas nada na verdade; esse nada e precisamente minha liberdade; quer dizer que nada em meu passado me obriga nem me justifica: "a l

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berdade é o ser hu­ mano que põe seu passado fora de questao ao secretar o seu próprio não-ser" (pág. 66).

Tendo dêsse modo centrado sôbre o nada enquanto liber­ dade todos os atos que ao nada conduzem, êle reconhece na angústia a consciência de ser assim o nada de seu próprio pas­ sado enquanto liberdade: "é precisamente a consciência de ser seu próprio futuro segundo o modo do não ser que cha_mamos angústia" (pág. 69) . Conhecemos o belo exemplo do Jogador

que a si mesmo prometera não mais jogar e que, em face do pano verde, descobre a inanidad_e de u�a decisão passa�a e superada; que nada o impeça de Jogar, msso consiste sua l!ber­ dade· é êsse nada que o angustia, dêsse modo recupera-se para a co

sciência do nada como liberdade e angústia que Kierhe­ gaard vinculava ao pecado e que Heidegger descobria na senda do ser enquanto ser.

Enfim, o conceito de não-ser aclara a tese famosa da ante­ rioridade da essência sôbre a existência; se minha essência é aquilo que "sou sido" - conforme expressivo barbarismo que traduz a expressão de Hegel - Wesenist, was gewsen ist - o

nada que separa a liberdade de todo passado, de todo adquirido, é também o nada que situa a existência além de tôda essência; "a essência é tudo aquilo que a realidade humana apreende por si mesma como tendo sido" e a angústia é a "apreensão da sua natureza enquanto ela existe como modo perpétuo de liberta­ ção daquilo que é".

Não temos a opor a Sartre objeções de ordem especulativa mas, se possível, uma descrição melhor, - reservando-nos 0 direito de oportunamente verificar que pressupostos vêm inter­ ferir com a descrição e impedir o aflorar de seu verdadeiro sentido, para nós.

A questão que se me apresenta é esta: uma recusa é para

si mesma sua própria origem? Uma negação poderá começar em si mesma? Vamos fazer incidir a descrição sôbre dois pon­ tos: sôbre a relação da decisão aos respectivos motivos de certo modo para trás dela, e sôbre o movimento do projeto para a frente dela.

Reflitamos sôbre êsse nada que assinala a insuficiência de

todo motivo que me vincula, isto é, que me livra de minha res­ ponsabilidade, e que me fornece uma desculpa, um alibi. l;;sse "nada" sempre foi reconhecido: os clássicos o introduziam na própria definição dos motivos, quando diziam que êles incluí­

ram sem compelir. Que quer isso dizer? De modo algum, pa­

rece-me, que a decisão "extrai-se" no decorrer da motivação; não encontro em parte alguma ato que rompa com a totalidade das incitações e das solicitações da consciência; não rompo com o poder de solicitação de um grupo de motivos senão por­ que concordo com outros motivos; a relação da decisão dos motivos não é uma relação de ruptura mas de apoio; não rompe aqm senão porque se apóia lá; decidir-se é sempre decidir-se porque. . . A idéia de recusa não é, portanto, a chave dêsse

"nada", que dá origem à insuficiência dos motivos. E então? l;;sse nada só aparece se eu projetar meus motivos sôbre o fundo

das coisas e os interpretar em linguagem de coisa, isto é, em têrmos de causalidade física; digo então: um motivo não é uma

causa. Mas então o não-ser não está em meu ato, entre mo­ tivo e decisão, mas em minha reflexão entre causa e motivo. E

a motivação que decide sem hesitar a causalidade das coisas, mas não a decisão que se livra da motivação psicológica, quando pois insisto no aspecto negativo da liberdade, quero simples­ mente dizer que a determinação própria por si mesmo é deter­ minação por motivos e não por causas; é o sentido do: "incli­

nar sem compelir", a negação acha-se apenas na definição e não no ato.

Objetar-se-á que as decisões autênticas não se ap01am em . . . , que elas são ao contrário brotar de ato, inovação que "reduz a nada" o passado enquanto dado. Tentar-se-á portanto

fazer das decisões subversivas no sentido próprio, decisões-mo­ dêlo decisões canônicas. Admitamo-lo e verifiquemos em que condições poderemos aniquilar nosso passado enquanto dado. Tomemos o caso mais extremo, o da conversão que aos olhos de meus amigos assumirá figura de abjuração em face de

tudo que havia até então crido e afirmado. Em que condições as negações que oponho às minhas antigas convicções e ao con­ junto de razões em que repousavam, poderão elas surgir aos meus próprios olhos como denegação, como ato de me dejulgar,

mas não pràpriamente de me renegar? Se não penso ter-me

renegado, é que minha decisão não é a universal redução a nada de meu passado; uma conversão; por mais radical que a possamos imaginar, não poderia reduzir a nada um passado morto, a não ser para encontrar-se e suscitar para trás de si um passado vivo que a "crise" pôs em evidência; a inovação opera uma como que mutação de figura em meu passado, fa­ zendo da forma o fundo, do fundo a forma; e assim só denego uma parte de mim mesmo pelo fato de assumir uma outra. Nem essa expressão "assumir" é estranha ao vocabulário existencia­ lista; assinala a volta à plenitude da afirmação em uma filoso­ fia da negação; por essa assunção, eu próprio me continuo atra­ vés das "crises" mais radicais da existência; uma conversão não é uma consciência de amputação; ao contrário, tendo consciên­ cia de liberar em mim aquilo que permanecia inibido, renegado, impedido; só me recusei a certos obstáculos, neguei-me apenas às negações; assim, à fôrça de negações e mais profundamente que tôdas as minhas recusas, eu julguei, ao converter-me, que estava a firmar uma melhor continuidade de mim mesmo, uma seqüência mais plenamente afirmativa.

Aquilo que acabamos de dizer da denegação em relação com o passado, nos conduz a um voltar-nos para o futuro e a considerar a decisão como projeto. É aqui que a primazia da negação na liberdade parece tirar tôda a sua fôrça. Pois que é um projeto? não é acaso um evento que falta às coisas? Como

ser de projeto, uão sou eu aquêle que, conforme a percuciente imagem de Sartre, procede a nma sorte de expansão no cerne das coisas? Não é o valor essa falta, êsse buraco, que escavo para diante de mim mesmo, para preenchê-lo por meio de atos, no sentido em que se diz que se cumpre um voto, que se cum­

pre um programa, que se cumpre uma promessa?

330

Que o projeto tenha êsse sentido negativo que v 1 ·

f lt d d . . . , o a ar seJa

� que a. a ao a o, e:_s cmsa perfeitamente verdadeira e a aná-

lise sartnana postula nao uma refutação mas um t d

d 't' · . . ' a sor e e reto-

ma a cn 1ca que a JUstifica superando-a.

Parece-me ser possível mostrar que, em tôda contestação do real pelo _qual surge no mundo um valor, acha-se envolvida uma af1rmaç�': de ser. �arece-me que isto pode ser mostrado por um� anahse .da.� alltD:des q�e valorizam e que aparente­ mente sao as ma�s . an�quilantes ', por exemplo, a indignação, o protesto, a recnmmaçao, a revolta.

Q�e é .revo�ar-se? É dizer não, sem dúvida: não, não

tolerarei mais, nao posso mais suportar. Mas o escravo que se revolta contra o senhor não se nega apenas ao senhor afmn'

t �r razao; como. JUSt�men!e ? dizia Camus; sem poder perceber .... . ' a todas as respectivas mferenc1as metafísicas: "Ao mesmo tempo �ue. a re�ulsa f�ce ao intruso, há em tôda revolta uma adesão mtena e mstantanea do homem a uma certa parte de si mesmo"

t " d '

e ac;escen ava: nem to o valor acarreta a revolta mas todo �ov1me!llo de ,revolta invoca tàcitamente um valor;,. Adesão, m�ocaçao, voc�bul?s sup.remamente p.ositivos. Dir-se-á que 0

objeto da adesao e precisamente aqmlo que não é pois que aguela parte de si mesmo que o escravo ergue peran

t

e o senhor nao tem lugar neste mundo? Essa parte não tem lugar no dado, no ser fora de mnn, mas a adesão que fomenta a revolta é a satisfação de um "eu sou" para além do ser-dado um "eu sou" estritamente igual a um "eu valho". A adesão

;

ai diretamente à existência-valor, à dignidade, a qual não é só ausência face ao mu�do, mas tensão d? ser; o voto que "outrem seja" aí se acha simplesmente abreviado em um "isto deve ser feito"· as­ sim1 o "deve ser feito" do valor e o "que êle seja" da exist

ê

ncia de outrem são estritamente recíprocos.

Parece�me, por conseguinte, que não podemos mais ter o valor por snnples falha, se êle é a formulação ativa de exis­ tência alheia, enquanto correlativa da minha. Pelo valor eu m,e sup�ro no outro . . Ac:ito que êle seja, a fim de que eu

i

am­

bem seja, que. e� seja nao apenas como um querer-viver, mas �orno uma eXIstencm-�alor_: Não direi, portanto, que o valor e falha, mas que a s1tnaçao, enquanto escandalosa, é carente de valor, falta ao valor. São as coisas que não têm valor e não

ai- '

os v ores que carecem de ser.

Esta discussão não foi vã: se o existencialismo confere pri­ vilégio ao momento da recusa, do desafio, do ato de arrancar ao dado, é que de um lado o momento de redução do dado ao

nada é sempre obscurecido por uma vontade culposa de ani­

quilação de outrem; mas a reflexão filosófica é purificadora na

medida em que discerue o núcleo da afirmação atrás da cólera, e a generosidade atrás da vontade implícita de assassinar; por outro lado, o momento de existência-valor de outrem, que é a alma do respeito, é sempre obscurecido por uma tendência mis­ tificadora a ocultar essa afirmação sob o manto das solenes abstrações: justiça, liberdade . . . Mas, a posição da existência pela existência, da existência do outro como condição de minha existência plena e inteira, não me condena a uma filosofia das essências mas orienta-me a uma filosofia do ato de existir. A ilusão do existencialismo é dupla: infunde a denegação umas paixões que a têm encerrada no negativo, crê que a alternativa face à liberdade-nada é o ser petrificado na essência.

Detenhamo-nos, nesta fase de nossa reflexão recuperadora de afirmação, no próprio cerne da reflexão aniquilante. Disse­ mos de início: o poder de denegação da consciência é uma ne­ gação de segunda linha; é uma negação de negação, pois que o não-ser de limitação é o não-ser de primeiro grau. A possi­

bilidade de tornar a encontrar uma afirmação na denegação

achava-se dêsse modo aberta por essa análise. Dissemos depois: pode-se de fato tornar a encontrar sempre uma afirmação im­

plícita às negações mais virulentas da consciência: ruptura com o passado, ingresso no futuro pela revolta. Será preciso ir mais longe? Poder-se-á mostrar a necessária subordinação da nega­

ção à afirmação? Em outras palavras terá a afirmação valor de fundamento?

5 . A AFIRMAÇÃO "ORIGINÁRIA"

., É, p�is, o caráter originário da afirmação que está em

Jogo. Creio que se esta via parece tantas vêzes bloqueada, é porqu.e de início se atribui ao ser uma idéia pobre e estreita, reduzido ao estatuto de ' . coisa, de dado bruto - ou de ' es-

sencza, que por sua vez é grosseiramente identificada a certo

paradigma imutável e sem relações, como a Idéia platônica in­ terpretada pelos "Amigos das Formas" que Platão precisamente

332

i

combate no Sofista. 1lste ponto é claro em Sartre: é sua noção

de ser en: si que s�':"e de base à su_a. noção de não-ser, que é por demais _pobre, Ja se ac�ando reificada; a partir dêsse mo­ mento, o nao-ser que a realidade humana é em si mesma, não é não-ser de todo ser, mas da reificação que invade meu corpo, meu pa�sado, graças a um.a espécie de vazio, de sedimentação,

de recaJ

a. no s�n� do mmeral; �e Sartre pôde assim praticar uma especJe de h1potese do ato amqmlante em um não-ser atual é que êle previamente rebateu o ser sôbre o dado, sôbre o mun: dano fora de mim e em mim; desde então tudo quanto êle de­ monstrou é que para ser-se livre, é preciso que nos tornemos não-coisa; mas não-coisa não é não-ser; nothing is not not­

-being; é aqui, ao meu ver, o ponto difícil de sua filosofia; sua

filosofia do nada é a conseqüência de uma insuficiente filosofia do ser; em particular, tôda a sua teoria do valor é onerada por essa deficiente concepção do ser; se o ser é o dado bruto, o valor que de certo modo areja o dado, que introduz no ser um

dever-ser, não pode mais senão lacuna e falha; exclui-se tôda possibilidade de fundamentar numa afirmação superior os atos que conduzem ao nada, sob pena de recair-se na cilada inicial; o ser não pode mais constituir recurso; é armadilha; é visgo, e não impulso e fundamento; o valor deve extrair o ser de sua exigência, e não a exigência de seu ser e só lhe fica o recurso de reportar-se ao não-ser da liberdade para fazer existir o va­ lor como valor, "pelo simples fato de reconhecê-lo como tal"

(pág. 76) ; "na qualidade de ser pelo qual os valôres existem, sou

injustificável" e minha liberdade se angustia de ser "o funda­ mento sem fundamento dos valôres" (ibidem) .

Por conseguinte, não seria conveniente caminhar em senti­ do contrário? Em lugar de obstruir de início nossa idéia do ser, de fechá-la em tôrno de uma noção do em-si construída por inteiro pelo modêlo da coisa, perguntemo-nos ao contrário aquilo que deve ser o ente para constituir a alma da denegação, da dúvida e da revolta, da interrogação e da contestação.

O benefício de uma meditação sôbre o negativo não é

construir uma filosofia do não-ser, mas de referir nossa idéia do ser para além de uma fenomenologia da coisa ou uma me­ tafísica da essência, até êsse ato de existir do qual indiferen­ temente se pode dizer que é sem essência, ou que tôda sua essência está no existir. Mas tal afirmação é acaso necessária?

Nasceu a filosofia com os pré-socráticos, com aquela imen­ sa descoberta de que pensar é pensar o ser, e que pensar o ser,

é pensar a &px� segundo o duplo sentido de comêço e de fun­ damento de tudo quanto podemos estabelecer e deixar de es­ tabelecer crer e duvidar. Foi o Anaximandro, a acreditar nos

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