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Ação econômica como ação social: conceitos fundamentais da sociologia

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.2 A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO SOBRE A RACIONALIDADE ECONÔMICA:

3.2.1 Ação econômica como ação social: conceitos fundamentais da sociologia

Até o final do século XIX, o pensamento hegemônico, amplamente sustentado e difundido na teoria econômica, era no sentido de que a ação econômica dos indivíduos era motivada exclusivamente pelo conceito de utilidade. Advogava-se, naquele quadro, que o estudo da economia, e da ação econômica dos indivíduos de modo particular, deveria partir da premissa de que os indivíduos possuem interesses materiais e agem de forma egoísta, tomando suas decisões econômicas pautados exclusivamente pelo objetivo de maximizar seus próprios interesses.

Weber, que era professor de economia política, tinha uma visão bastante original. Para ele, o estudo da economia deveria ser mais abrangente, de modo a compreender uma série de outros conhecimentos: deveria, também, contemplar a história e a sociologia econômicas. Mais do que isso, o estudo da economia deveria considerar suas relações com outras esferas da vida, principalmente a política, o direito e a religião.

Weber sustentava que a ação econômica deveria ser vista sob um prisma mais amplo: era preciso enxergá-la no contexto das relações sociais do indivíduo. Em sua visão, a procura de bens escassos faz com que o agente não se paute apenas por considerações de utilidade, mas leve em conta também os comportamentos dos outros agentes econômicos e o sentido que eles conferem à sua ação (STEINER, 2006, p. 13). A rigor, portanto, seu pensamento não chegava a refutar a teoria econômica, mas sim a considerá-la insuficiente, o que leva muitos a afirmar que suas formulações na verdade a suplementavam (SWEDBERG, 2005).

Partindo dessas premissas, Weber concebeu o que chamou de “sociologia compreensiva”, voltando-se para a investigação e interpretação dos motivos que determinam as ações dos

indivíduos em sociedade.181 Em sua visão, a especificidade do estudo social é justamente a existência de ações às quais o indivíduo dá sentido, levando em conta o comportamento dos outros. Seu ponto de partida, descrito no capítulo de abertura de sua obra “Economia e Sociedade”, é o conceito de ação social, definida como “uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros, orientando-se por esse em seu curso” (WEBER, 2012, p. 3).182 Ao explicar o conceito, ele esclarece, no entanto, que nem todo tipo de ação é social. Seja ela interna ou externa, seu caráter social somente se afirma se a atitude do agente é pautada por um juízo de valor acerca das ações de outros indivíduos.

Para ilustrar seu raciocínio, Weber fornece alguns exemplos. Para ele, um comportamento interno religioso de um indivíduo, determinado unicamente por motivos de contemplação ou oração solitária, não constitui ação social. Porém, quando a decisão de consumo desse mesmo indivíduo leva em consideração os futuros desejos de terceiros, orientando por estes as próprias medidas para poupar, o caráter de ação social é plenamente afirmado. De forma didática, Weber destaca, do mesmo modo, que nem toda ação externa (isto é, que envolva contato entre as pessoas) é necessariamente social: um choque entre ciclistas, segundo ele, é um ato externo, mas é um simples acontecimento, do mesmo caráter de um fenômeno natural, e que, por não envolver considerações sobre a ação de terceiros, jamais poderia ser considerado ação social (WEBER, 2012, p. 14).

Weber se dedica então a analisar os elementos determinantes da ação social. Concebe, em sua formulação teórica, uma tipologia que ficou posteriormente consagrada como clássica na sociologia econômica. Para o autor alemão, a ação social, como toda ação, pode ser determinada de quatro formas: (i) de modo racional referente a fins; (ii) de modo racional referente a valores; (iii) de modo afetivo; ou (iv) de modo tradicional.183

Nessa tipologia, o comportamento estritamente tradicional seria aquele que se processa por costume, operando de forma idêntica a “uma imitação puramente reativa” e que não passa, segundo

181 Conforme sua própria definição, “a sociologia é uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e, assim, explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos” (WEBER, 2012, p. 3).

182 Weber esclarece, mais adiante, que esse comportamento pode ser “passado, presente ou esperado como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa contra-ataques presentes ou medidas de defesa para enfrentar ataques futuros” (WEBER, 2012, p. 13) e que os “outros” podem ser “indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completamente desconhecidas” (WEBER, 2012, p. 14).

183 Ele esclarece, contudo, que só raramente a ação, e particularmente a ação social, orienta-se exclusivamente de uma ou de outra forma. Trata-se, como ele mesmo afirma, de meros “tipos conceitualmente puros, criados para fins sociológicos, dos quais a ação real se aproxima mais ou menos ou dos quais – ainda mais frequentemente – ela se compõe” (WEBER, 2012, p. 16).

ele, “de uma reação surda a estímulos habituais que decorre na direção da atitude arraigada” (WEBER, 2012, p. 15). Por sua vez, o comportamento afetivo constitui o que ele chama de sublimação, que se opera quando a ação “aparece como descarga consciente do estado emocional” (WEBER, 2012, p. 15).

Weber considera essas duas espécies de ações como irracionais, porque se baseiam em meros impulsos ou reações. Em sua sociologia como um todo, a racionalidade é uma categoria importante porque constitui uma ferramenta analítica de que o indivíduo dispõe para escolha dos meios adequados para contemplar valores por ele escolhidos ou para atingir determinados fins por ele desejados. Diante disso, Weber separa esses dois critérios ou referenciais de racionalidade. Ele afirma então que, de um lado, age de maneira puramente racional em relação a valores aquele que sem considerar as consequências previsíveis, age a serviço de sua convicção sobre o que parecem ordenar-lhe o dever, a dignidade, a beleza, as diretivas religiosas, a piedade ou a importância de uma ‘causa’ de qualquer natureza (WEBER, 2012, p. 15).

Trata-se, como ele mesmo afirma, de uma ação orientada por mandamentos ou exigências que o agente acredita que são dirigidos a ele (WEBER, 2012, p. 15).184 Por outro lado, age de maneira puramente racional em relação a fins aquele que

orienta sua ação pelos fins, meios e consequências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às consequências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo [...] nem de modo tradicional (WEBER, 2012, p. 16).

Aumentando a complexidade de sua formulação, Weber desenvolve a partir daí o conceito de relação social, que ele define como o comportamento recíproco, pautado em um conteúdo de sentido, que uma pluralidade de agentes toma como referência (WEBER, 2012, p. 16). Ele apresenta em seguida algumas propostas de classificação das relações sociais, que acabaram se tornando relevantes para a sociologia econômica. Uma delas é a distinção entre relações comunitárias e relações associativas.185 Outra, igualmente importante, é dicotomia entre relações

184 Nesse ponto específico, embora reconheça sua grande semelhança com a ação puramente afetiva, Weber sustenta que a ação racional orientada por valores se diferencia dela por sua “elaboração consciente dos alvos últimos da ação e pela orientação consequente e planejada com referência a estes” (WEBER, 2012, p. 15).

185 As relações comunitárias são definidas por Weber como aquelas nas quais a atitude na ação social repousa no sentimento subjetivos dos participantes de pertencer, afetiva ou tradicionalmente, ao mesmo grupo. Por sua vez, as relações associativas são aquelas nas quais a atitude da ação social toma por base um ajuste ou união de interesses racionalmente motivados, com referência a valores ou a fins (WEBER, 2012, p. 25).

sociais abertas e fechadas.186 Mais uma vez, no entanto, ele adverte que esses são apenas “tipos puros”, concebidos para fins metodológicos, de modo que apenas raramente uma relação social apresenta-se exclusivamente sob esta ou aquela forma.

Na sociologia geral weberiana, quando essa relação social tem seu sentido determinado por “máximas indicáveis”, configura-se uma ordem. E essa ordem é considerada legítima sempre que ela considerada vigente pela comunidade ou grupo, seja como obrigação, seja como modelo de comportamento (WEBER, 2012, p. 19). A legitimidade da ordem pode estar garantida unicamente por dois grandes e diferentes fatores, que seriam a vontade interna do próprio agente ou a expectativa de determinadas consequências externas. No primeiro caso, essa ordem pode ser legitimada de modo afetivo; de modo racional referente a valores, associada à crença de sua vigência absoluta, sendo ela a expressão de valores supremos, como os morais e os estéticos; ou de modo religioso, pela crença de que sua observância é condição para a obtenção de “bens de salvação”. Já no segundo caso, a legitimidade pode se dar por medo da reprovação relativamente geral e sensível do círculo de pessoas de determinada que destoe de um determinado padrão (caso em que essa ordem é considerada uma “convenção”) ou, ainda, pela probabilidade de coação exercida por determinado grupo de pessoas que tem por função específica forçar o cumprimento dessa ordem (que Weber considera como o direito).

Os conceitos ou categorias sociológicas gerais desenvolvidas no capítulo inaugural de “Economia e Sociedade” são colocados no capítulo seguinte a serviço da análise que Weber deseja fazer sobre a ação econômica. Fica bastante evidente, sobretudo por conta dos exemplos utilizados, a distinção entre a análise perfilhada pela teoria econômica até então predominante e análise sociológica da ação econômica que Weber buscava empreender. Enquanto a primeira ocupava-se apenas das ações consideradas racionais (fossem elas sociais ou não sociais) e tomava a racionalidade como pressuposto, a sociologia weberiana, conquanto se ocupe apenas das ações sociais, considera a racionalidade como uma variável (SWEDBERG, 2005, p. 62). Assim, ocupa- se tanto das ações sociais racionais quanto daquelas que seriam em princípio consideradas irracionais.187

186 No esquema conceitual weberiano, relações abertas são aquelas que admitem a participação na ação recíproca daqueles que estão dispostos e em condições de fazê-lo. Por oposição, as relações fechadas são aquelas nas quais o conteúdo de seu sentido exclui, limita ou condiciona a participação a determinadas condições (WEBER, 2012, p. 27). 187 Embora assuma que sua sociologia compreensiva é racionalista, Weber ressalva que isso não implica “na crença de uma predominância efetiva do racional sobre a vida”. Por isso, diz ele, sua análise não pode implicar no desprezo das condutas irracionais, a bem de sua consistência científica: “Para a consideração científica que se ocupa com a

Todos esses conceitos, embora de natureza geral, são considerados essenciais por Weber para a compreensão da estrutura e do funcionamento da economia. Para ele, certas formas de ação social, embora voltadas para o interesse individual, tendem a se transformar em formas regulares de comportamento coletivo que são muito comuns na economia, fenômenos que ele chama de “regularidades determinadas pelo interesse” (SWEDBERG, 2005, p. 58), seja esse interesse de natureza material ou ideal.

Ao estudar então o que chama de “relações sociológicas elementares dentro da vida econômica”, Weber estabelece importantes tipologias das ações ali adotadas, com destaque para uma relevante distinção entre ação social econômica (seu tipo ideal) e a ação social economicamente orientada. 188 Para os fins a que se destina a presente tese, importa destacar que, sob o prisma sociológico, há três elementos que, no esquema conceitual weberiano, caracterizam uma ação social econômica: (i) a tentativa pacífica de obter o controle e dispor dos bens; (ii) a direção da ação no sentido da busca da oportunidade de se obter utilidades; e (iii) a orientação da ação pelo comportamento dos outros. É nessa perspectiva que, após formular conceitos mais complexos – como relação econômica, associação econômica, poder econômico e dominação –, ele prossegue na busca da explicação do que seja racional no campo da economia.

Vale frisar que, não apenas nas formulações sobre a ação social em geral, já descritas em linhas anteriores dessa tese, mas também e especialmente no campo econômico, a racionalidade tem uma importância crucial no esforço weberiano de investigar o que leva os agentes a adotar determinadas ações sociais. Como ele próprio destacou em outra obra, o ponto de partida de sua análise é que o desenvolvimento da economia deve ser entendido como parte da racionalização geral da vida (SWEDBERG, 2005, p. 62).

construção de tipos, todas as conexões se sentido irracionais do comportamento e afetivamente condicionadas e que influem sobre a ação são investigadas e expostas, de maneira clara, como desvios de um curso construído dessa ação, no qual ela é orientada de maneira mais puramente racional pelo seu fim. [...] Somente esse procedimento possibilitará a imputação causal dos desvios às irracionalidades que os condicionam” (WEBER, 2012, p. 5).

188 Para o alemão, ação social econômica é toda ação que segue uma orientação subjetiva e primariamente orientada para finalidades econômicas, mas que exerce pacificamente o poder de disposição que o agente tem sobre as coisas (ou seja, que não implica uso da coação física), tendo na troca um exemplo típico. Já ação social economicamente orientada é aquela orientada por finalidades econômicas, mas que faz uso da coação (ex: guerra), ou aquela que, embora não primariamente orientada por finalidades econômicas, leva em conta considerações de natureza econômica (ex: aquisição de armamentos e economia de guerra) (WEBER, 2012, p. 37-38). Explicando essa dicotomia, Swedberg (2005, p. 57) esclarece que, apesar de alguma dificuldade na compreensão desses conceitos, causada pelo uso recorrente do conceito de “orientação”, o que Weber pretende é destacar dois tipos de ação que, a rigor, não se qualificariam como formas integrais do tipo ideal de ação social econômica, mas que são de grande interesse. Com isso, Weber busca incorporar, em sua análise sociológica, uma série de fenômenos importantes para o campo econômico, ainda que não constituam sua essência.

Nessa esteira, outra contribuição muito importante da teoria de Weber em busca dos elementos que determinam as condutas humanas deve ser ressaltada: a distinção entre racionalidade formal e racionalidade material. Para ele, a racionalidade formal toma por base “considerações de caráter numérico e calculável” (WEBER, 2012, p. 52), ou seja, o cálculo puramente econômico e pragmático. De outro lado, a racionalidade material é pautada por “exigências éticas, políticas, utilitaristas, hedonistas, estamentais, igualitárias ou quaisquer outras” (WEBER, 2012, p. 52) – ou seja, em valores considerados superiores ou absolutos pelos agentes. Essa formulação conceitual é importante, sobretudo para os fins a que se destina a presente tese, porque reflete a incorporação, pela metodologia de análise sociológica weberiana, de valores ou interesses ideais, e não meramente materiais, como referenciais da ação econômica.

É justamente nessa trilha de investigação da racionalidade material que, não apenas em capítulos específicos de “Economia e Sociedade”, como também em outras publicações, Weber se dedica a estudar o papel e a influência que outras esferas da vida, especialmente a política e a religião, desempenham na racionalização da economia.

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