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1 ISLÃ, UM MODO DE VIDA: HISTÓRIA E DOUTRINA

1.3 A DOUTRINA ISLÂMICA E SEUS COMPONENTES

1.3.3 Base ética e moral (akhlaq)

Em árabe, akhlaq significa literalmente “disposição”, refletindo os fatores que inspiram a ação humana. No Islã, a palavra é mais propriamente utilizada para se referir à virtude e à moral, tidos como elementos que devem guiar a vida do homem.

Tratando-se de uma religião que se propõe a disciplinar todos os aspectos da vida do muçulmano em prol do bem-estar de toda a coletividade, o Islã não se limita a dispor sobre os pilares de sua fé e sobre a conduta externa dos membros da comunidade. Por isso, tanto o Corão quanto a Suna afirmam expressamente a importância de se manter a excelência do caráter e prescrevem que o muçulmano paute sua conduta não apenas pelas leis, mas também por certas virtudes tidas como essenciais à boa convivência entre os homens, como a humidade, a honestidade, a castidade, o perdão e a serenidade, dentre outros.

A excelência do caráter é um dos aspectos centrais de todo o sistema moral que se busca instituir porque, para o Islã, tudo o que há na Terra é obra de Deus, e, como tal, deve ser cuidado e

80 Esse seria o caso das condutas para as quais a Shari’ah, embora prescreva o dever, não pune a omissão do muçulmano.

81 Estariam abrangidas aqui as situações nas quais os crentes têm uma ampla liberdade de escolha, que se traduziria, por exemplo, na possibilidade de celebrar ou não determinados tipos de contrato, segundo sua conveniência. 82 Nesse caso, a Shari’ah prescreve um comando para que determinada conduta não seja realizada, mas não chega a atribuir a condição de pecador ao que a transgride. Um exemplo seria o de realizar o contrair um débito sem documentá- lo ou levá-lo a algum tipo de registro por escrito.

preservado pela humanidade – incluindo aí o próprio homem. Considera-se que o propósito maior da vida é adorar a Deus, o que se faz não apenas por meio de rituais ou do cumprimento de deveres religiosos, mas também por meio da adequação de ações e intenções à vontade divina.

Segundo a teologia e a filosofia islâmicas, a excelência do caráter é a base para o bem-estar da comunidade, criando condições para a boa convivência e, assim, evitando danos ou malefícios às criaturas de Deus. No Islã, o homem só alcança a salvação se agir com retidão moral, praticando o bem83 e evitando causar o mal a seus semelhantes, e, para tanto, deve aprender a controlar suas paixões e seus desejos, a fim de não se desviar do caminho prescrito por Deus.84

Uma consistente abordagem dos aspectos morais do Islã é desenvolvida por Galwash (1973), e merece ser referenciada. O autor frisa que um aspecto marcante no sistema moral do Islã é que ele não se limita a enumerar os predicados encorajados por Deus. O Corão, em especial, busca ensinar esse caminho aos muçulmanos, como forma de estabelecer o caminho ou a direção para que o homem reforme sua vida e suas condutas, de modo a alcançar a excelência moral que Deus espera dele. Galwash vislumbra então dois estágios ou níveis de prescrições morais do Islã: um primeiro, mais básico, destinado a tirar o homem das trevas e da ignorância, prescreve regras básicas de moralidade, visando afastá-lo da condição de um animal selvagem e tirando de sua vida tudo o que possa prejudicar sua saúde e seu discernimento; e um segundo, mais elaborado ou sofisticado, que busca levar o muçulmano a uma condição de excelência moral (GALWASH, 1973).

Segundo essa abordagem, o primeiro estágio reúne prescrições consideradas básicas, que buscam tirar o homem do estado primitivo em que ele se encontrava ao tempo em que o Corão foi revelado. Galwash considera como exemplos as prescrições do Corão que proíbem o canibalismo, o incesto, o infanticídio e o suicídio, além daquelas que prescrevem a necessidade de ser educado com outros muçulmanos, saudando-os sempre que encontrá-los, ainda que não lhe sejam íntimos,85

83 No Corão (4: 127-128) faz-se uma clara vinculação entre a prática do bem e a salvação: “Aqueles que praticarem o bem, sejam homens ou mulheres, e forem crentes, entrarão no Paraíso e não serão prejudicados, no mínimo que seja./ E quem melhor professa a religião do que quem se submete a Allah, é praticante do bem e segue a crença de Abraão, o monoteísta?”.

84 No Corão (4:27) há expressa previsão nesse sentido: “Allah deseja absolver-vos; porém, os que seguem os desejos vãos anseiam por vos desviar profundamente”.

85 Essa saudação pública entre os muçulmanos, por sinal, é um traço bastante marcante na comunidade. Retira seu fundamento no Corão (4:86) que prescreve: “Quando fordes saudados cortesmente, respondei com cortesia maior ou, pelo menos, igual, porque Allah leva em conta todas as circunstâncias”. Por isso, ao encontrar outro muçulmano costuma-se saudá-lo com a expressão “As-salamu alaikum”, que significa “que a paz esteja convosco”. Essa expressão é respondida com outra, “wa-alaikum salam”, que significa “e com você a paz”.

e a necessidade de permissão para entrar na casa de outrem. Contudo, também estão reunidas aqui as prescrições de moderação nas refeições e na bebida, bem como as proibições aos jogos, ao álcool e a determinadas espécies de comidas, como as de origem suína86 (GALWASH, 1973).

Por sua vez, o segundo estágio ou nível de prescrições abrange virtudes ou valores voltados a garantir um padrão ético-moral mais elevado na convivência entre os membros da comunidade. Galwash sustenta que todas as virtudes ou qualidades preconizadas no Islã estariam compreendidas em dois grupos de preceitos, sendo um voltado para encorajar a abstenção de condutas que causem o mal e outro voltado para estimular que se faça o bem aos demais irmão muçulmanos (GALWASH, 1973).

Para o autor, ao primeiro grupo pertencem os preceitos diretamente relacionados a intenções e ações que não possam prejudicar a vida, a propriedade e a honra de outros muçulmanos por qualquer meio. Nesse contexto estão as prescrições do Corão que abordam a castidade, a honestidade, a serenidade, a polidez e a humildade. Ao segundo grupo pertencem os preceitos islâmicos relacionados a intenções e ações destinadas a fazer o bem ao próximo, estimulando a convivência harmoniosa entre os irmãos muçulmanos. Estão aí compreendidas as prescrições do Islã que tratam de perdão, bondade, coragem, verdade, paciência e simpatia (GALWASH, 1973).

86 Tais restrições decorrem de uma associação que o Islã faz entre as dimensões física, moral e religiosa da vida do homem. Considera-se que tudo aquilo que prejudica a saúde física ou mental do homem tende a afetar sua conduta e seus desejos, repercutindo, assim, sobre a moral e a vida espiritual. Por isso, deve ser evitado.

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

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