• Nenhum resultado encontrado

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.3 O ISLÃ NA PERSPECTIVA WEBERIANA: ASCETISMO E ORIENTAÇÃO

Apesar de seu propósito declarado de estudar as religiões mundiais por ele identificadas, Weber não viveu o suficiente para que sua investigação chegasse especificamente à ética econômica do Islã.195 É bem verdade que, em diversas passagens de seus escritos de sociologia geral, econômica e religiosa, há menções e passagens consistentes que permitem extrair, sem grande dificuldade, os aspectos definidores de seu posicionamento diante do Islã. Uma visão panorâmica de sua obra, contudo, aponta a existência de dois fatores importantes que precisam ser devidamente consideradas por quem queira enveredar por uma análise weberiana minimamente

195 Seus estudos comparativos sobre a ética econômica das religiões, além do protestantismo, acabaram alcançando apenas o judaísmo, as religiões chinesas (taoísmo e confucionismo) e as religiões indianas (budismo e hinduísmo). Além do islamismo, portanto, também deixou de abarcar em trabalho específico a ética econômica cristã.

criteriosa do islamismo: o caráter assistemático, difuso e até incompleto de sua abordagem; e o recorte histórico limitado a um período específico, qual seja, a fase inicial do Islã.

Essas ressalvas são importantes porque, até a morte de Weber, ocorrida em 1920, não havia uma teoria econômica consistente e sistematizada no âmbito do Islã. Embora desde os primórdios do Islã os pensadores muçulmanos discutissem temas econômicos, durante muito tempo as reflexões ou formulações teóricas foram empreendidas de maneira difusa, estando imersas em um contexto mais propriamente teológico e jurídico, que tinha como preocupação central a interpretação da Shari’ah com vistas à derivação das regras do fiqh al-muamalat. Sua determinação, assim, acabava se dando a partir de necessidades ou razões de natureza prática, histórica ou cultural.

Weber certamente não ignorava isso, mas as profundas transformações pelas quais passou o Islã a partir da década seguinte à sua morte, descritas no capítulo inaugural dessa tese – a envolver não apenas a reconformação política, mas também o desenvolvimento das economias dos países de tradição muçulmana das décadas seguintes – parecem reduzir a validade atual da análise (e da evidente reticência) weberiana, feita de forma tão circunstancial, acerca da ética econômica do Islã e das restrições que geraria ao desenvolvimento do capitalismo.196 Vários autores, a exemplo de

Rodinson (1966) e Naqvi (1981), inclusive, criticam essa posição do sociólogo alemão, valendo- se justamente de evidências posteriores à sua morte, que infirmam sua tese de que os preceitos da doutrina islâmica seriam incompatíveis com o capitalismo moderno.

Diante disso, o que importa para os fins da presente tese é menos a posição de Weber em si e mais as categorias, conceitos e metodologia sociológicos que se podem extrair de sua obra para a análise da ética dessa religião – e que podem, talvez, permitir uma extrapolação ou atualização de sua própria posição, à vista dos fatos e da própria teoria econômica desenvolvida pelo pensamento islâmico a partir da década seguinte à morte do autor alemão. O que interessa, portanto, é recorrer à sua teoria para investigar que tipo de prescrição o Islã busca transmitir, principalmente em termos da posição que o crente deve ter diante do mundo (rejeição ou fuga?), e da forma que

196 Vale destacar aqui a posição de Weber no sentido de que, no início, o islamismo era uma “religião de guerreiros que queriam conquistar o mundo, uma ordem cavalheiresca de cruzados disciplinados” (WEBER, 1982a, p. 311) e, embora tivesse se reconformado posteriormente, já na fase medinense da vida de Muhammad, ainda sim não era dotado de uma racionalidade tão aprimorada quanto a dos cidadãos europeus. Isso, para ele, explica porque a religião islâmica não criava estímulos para que o mundo muçulmano trilhasse o caminho do capitalismo moderno (RODINSON, 1966, p. 131).

essa religião prescreve que eles articulem os interesses materiais e ideais, principalmente à vista das tensões que a vida mundana impõe a esse crente.

Nessa linha de perspectiva, um primeiro aspecto que sobressai é o caráter marcadamente ético da profecia que constitui a base da doutrina islâmica. A Mensagem anunciada por Muhammad, fruto da revelação que lhe foi oportunizada por Deus e cujo conteúdo já foi devidamente apresentado no capítulo dois, tem um nítido propósito de estabelecer padrões mínimos de conduta necessários à própria estabilidade do corpo social ao qual se destina.197 Do ponto de vista weberiano, Muhammad é um profeta típico, que legitima sua condição auto anunciada e se afirma como autoridade religiosa com base em seu grande carisma. Mas há, na profecia islâmica, um caráter exemplar que também se soma ao ético, com a posterior elevação das práticas do próprio Muhammad à condição de referência (ou, termos jurídico-positivos, de fonte do direito) para as ações dos muçulmanos, consubstanciada na Suna.198 O direito, portanto, vem de Deus.

Isso leva a outro aspecto importante, que é a imagem de mundo que o Islã projeta para seus fiéis. Em típica expressão de transcendência, a dogmática da religião parte do pressuposto da dualidade do mundo, consubstanciado na dicotomia entre “este mundo” e o além. O primeiro foi criado por Deus, e a Ele pertence, mas foi dado aos homens para que sejam felizes e cuidem dele. Mas o segundo é obra da salvação como uma graça que é obtida apenas por aquele que trilha o caminho prescrito por Deus. É então a observância desses padrões de conduta (e pensamento) que assegura ao crente o caminho da salvação. Na doutrina islâmica, a figura de Deus é tão superior, tão suprema, que não pode sequer ganhar representação antropomórfica. Nenhuma imagem e nenhuma palavra é bastante para refletir Seu poder e Sua graça.199 Por isso, é incompatível com a dogmática dominante do Islã qualquer ideia em torno de “possessão” do divino, tal como pregam os místicos. O crente não é recipiente ou vaso, mas verdadeiro instrumento de Deus nesse mundo. Sob a perspectiva das categorias weberianas, portanto, é nítido o caráter ascético do Islã.

A questão seguinte é a postura que a doutrina islâmica prega para seus adeptos. Isso fica claro inclusive textualmente em passagens do Corão e da Suna: o muçulmano é convocado por

197 Como bem destaca Enzo Pace, a Revelação pode ser entendida em termos sociológicos como “a gramática gerativa de pensamentos, emoções, regras de conduta, estilos de vida, diretrizes sociais e políticas que aos poucos se vão sedimentando nos comportamentos individuais e coletivos” (PACE, 2005, p. 160-161).

198 Embora, naturalmente, isso não a coloque no patamar inconteste e supremo de autoridade que goza o Corão, a Suna, como já se expôs, muitas vezes acaba sendo fonte de referências de conduta, quando não se encontra, no Livro Sagrado, referência expressa ou específica a respeito de determinado tema.

199 Isso se reflete de modo bastante evidente em um fato já abordado na seção 1.3.1: na doutrina islâmica, existem nada menos do que 99 nomes diferentes para se referir a Deus.

Deus a ter uma postura de rejeição do mundo. Deve ele, portanto, não apenas seguir o que Deus determina, como também engajar-se ativamente para que os preceitos divinos se cumpram.200 Ou seja, o que o Islã prega é uma atitude transformadora do mundo, o que evidencia seu ascetismo marcadamente intramundano.

Uma análise da história do Islã, amparada nos fatos narrados no capítulo inaugural dessa tese, indica que a profecia ética proclamada por Muhammad experimentou inclusive as agruras típicas das profecias religiosas que pregam modificações na ordem social. Como já se demonstrou, a Mensagem propagada pelo Profeta desafiou o status quo da época, não apenas porque contrariava os interesses políticos das elites locais, ofuscando-lhes ou reduzindo-lhes o poder de liderança, como também porque propunha uma paradigmática mudança na ação social e na própria ação econômica dos recém-convertidos, norteada principalmente por ideais de justiça econômica.

Uma atenta leitura do Corão e da Suna, que considere como pano de fundo as práticas da época, autoriza, sem grande dificuldade, a conclusão de que esses textos buscaram romper as barreiras das castas econômicas e reduzir as injustiças cometidas por determinados grupos com interesses materiais (SMITH, 1991, p. 241). Os registros e relatos históricos são provas contundentes de que esse ascetismo intramundano trouxe efeitos concretos, gerando mudanças substanciais na Arábia pós-islâmica.201

Para qualquer um que vivencie um pouco do Islã – frequentando mesquitas ou mesmo círculos acadêmicos e profissionais muçulmanos – é relativamente fácil perceber os efeitos transformadores que esse ascetismo da dogmática religiosa islâmica projeta sobre a mentalidade dos muçulmanos.

200 Se necessário, deve até mesmo lançar-se à guerra, para proteger sua fé. Essa é, como se sabe, a essência da jihad, o dever religioso que, por força do Corão, cabe a todo muçulmano de defender o Islã até mesmo com a espada.

201 É bastante ilustrativa a posição de Huston Smith a respeito dessa mudança: “Analisando a diferença entre a Arábia pré-islâmica e a pós-islâmica, somos forçados a indagar se a História alguma vez testemunhou um avanço moral comparável, entre tantas pessoas num tempo tão curto”. Ele cita a violência disseminada entre as tribos, as chocantes disparidades na distribuição da riqueza, a desvalorização da mulher (que era tratada como posse e não ser humano), as práticas de infanticídio feminino, a embriaguez e a difusão dos jogos de azar o jogo de larga escala como exemplo de aspectos da vida pré-islâmica que, “no curto período de meio século [...] passariam por uma mudança extraordinária” (SMITH, 1991, p. 240).

Outline

Documentos relacionados