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Normas religiosas: as relações do homem com Deus e a religião (fiqh al-ibadat)

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

2.4 RAMOS OU CAMPOS TEMÁTICOS DA JURISPRUDÊNCIA ISLÂMICA

2.4.1 Normas religiosas: as relações do homem com Deus e a religião (fiqh al-ibadat)

Esse primeiro componente ou grupo de normas da Shari’ah estabelece os deveres que um muçulmano deve cumprir para com Deus e a religião. Estão ali estabelecidos: (i) o dever de profissão de fé (shahadah); (ii) o dever da oração (salat); (iii) o dever da caridade obrigatória (zakat); (iv) o dever de jejum (siam) no mês do ramadã; e (v) o dever da peregrinação a Meca (hajj).123 Por seu caráter fundante para a religião, esse conjunto de prescrições é conhecido como “os cinco pilares do Islã”.

O primeiro e mais importante pilar, atinente à profissão ou testemunho de fé (shahadah), consubstancia a obrigação do muçulmano ou daquele que deseja se converter ao Islã de proclamar sua fé na unicidade de Deus e na condição de Muhammad enquanto Profeta e Mensageiro. Para serem válidos, esses testemunhos de fé devem ser prestados sob a forma de duas declarações padronizadas,124 e somente por aqueles que efetivamente concordam em se submeter aos preceitos do Islã e tem pleno conhecimento de suas implicações, sob pena de nulidade (JOMIER, 1993).

O segundo pilar, pertinente à oração (salat), impõe ao muçulmano que realize cinco orações diárias, em períodos pré-estabelecidos do dia.125 Tratam-se de autênticos ritos de adoração, que exigem uma prévia ablução e preveem a genuflexão, a recitação de trechos do Corão e a prostração perante Deus, devendo o muçulmano estar com o corpo voltado para a direção de Meca.126 Dentro do sistema doutrinal islâmico, a frequência dessas orações cumpre um importante papel, que não se restringe à gratidão: evidenciar a submissão dos fiéis a Deus, que é seu único e legítimo soberano.

123 Para Doi (1998), todo muçulmano é chamado a cumprir com essas obrigações perante Deus, razão pela qual elas são consideradas “direitos de Allah” (huquq Allah).

124 A primeira é “Testemunho que não há outra divindade digna de adoração que não Deus”, por meio da qual o crente renuncia a qualquer forma de politeísmo. A segunda é “Testemunho que Muhammad é o Mensageiro de Deus”, por meio da qual ele reconhece que o Profeta foi escolhido por Deus para transmitir Sua Mensagem aos homens, aceitando seguir seu exemplo e suas orientações (JOMIER, 1993).

125 São elas: Salatul Al-fajr (oração da aurora); Salatul Al-Dhuhr (oração do meio-dia); Salatul Al-Asr (oração pós- meridiana, realizada após a metade da tarde); Salatul Al-Maghrib (oração do por do sol); e Salatul Al-Isha (oração da noite escura, realizada uma hora e meia após o por do sol).

126 Essa orientação, chamada de quibla, é mais exatamente na direção da Kaaba, considerada como um dos três lugares sagrados do Islã. Trata-se de um pequeno local em forma de cubo construído por Abraão para adorar a Deus, sendo por isso tida como “a primeira Casa de Allah”. A quibla está expressamente prevista, dentre outras, nessa passagem do Corão (2:144): “Orienta teu rosto (ao cumprires a oração) para a Sagrada Mesquita (de Makka)! E vós (crentes), onde quer que vos encontreis, orientai vossos rostos até ela. Aqueles que receberam o Livro, bem sabem que isto é a verdade de seu Senhor; e Allah não está desatento a quanto fazem”.

Por sua vez, o terceiro pilar trata do dever da caridade (zakat), também apresentada como o dever de pagar o “tributo social” ou “tributo anual”. Trata-se de outra obrigação expressamente prevista no Corão, que envolve a destinação anual de parte do patrimônio do muçulmano para a caridade. O zakat é devido anualmente na base de 2,5% sobre o patrimônio de cada muçulmano, calculado sobre o que exceder a uma base considerada mínima para se viver dignamente (chamada de nisab).127 Sua exigibilidade se funda na premissa de que todos os bens pertencem a Deus, sendo o homem um mero administrador ou posseiro dos bens e das coisas na Terra. Seu propósito maior, portanto, é o de promover a redistribuição da riqueza, destinando parte dela aos menos afortunados, aí compreendidos os pobres, os viajantes sem recursos e os órfãos.

O quarto pilar é o do jejum (siam) no mês do ramadã, que é o nono do calendário lunar adotado pelos muçulmanos, no qual a revelação do Corão a Muhammad teria se iniciado. Ele consiste na obrigação de que todo muçulmano que já tenha chegado à puberdade e esteja no pleno gozo de sua saúde física e mental se abstenha, ao longo daquele mês, de ingerir quaisquer alimentos ou bebidas e de ter relações sexuais, no período compreendido entre o nascer e o pôr do sol. Além de se traduzir em uma forma de adorar a Deus, o jejum no mês sagrado tem por propósito levar o muçulmano à reflexão e ao exercício do autocontrole, aprimorando o domínio sobre seus desejos e impulsos durante o mês considerado sagrado pelo Islã (GALWASH, 1973; HALLAQ, 2005).

Por fim, o quinto e último pilar do Islã estabelece o dever de realizar a peregrinação (hajj) a Meca, ao menos uma vez na vida. Trata-se, na verdade, de um ritual que remonta às práticas de Abraão, que tem por objetivo levar todos muçulmano dotados de saúde física e mental e de condições a adorar a Deus na Sagrada Mesquita de Meca, onde se situa a Kaaba, construída pelo citado profeta a mando de Allah. Também previsto expressamente no Corão,128 o ritual se realiza em períodos determinados e deve observar algumas regras e condições, pertinentes à vestimenta e

127 Embora prescreva o dever de pagar o zakat, o Corão não estabelece sua forma de cálculo. A partir da Suna é que os muçulmanos extraem a regra de cálculo. O nisab equivale a três onças de ouro (cerca de 85g) ou 21 onças de prata (cerca de 595g).

128 Eis o que prescreve o Corão (22:26-28): “E (recorda-te) de quando indicamos a Abraão o local da Casa, dizendo: Não Me atribuas parceiros, mas consagra a Minha Casa para os circungirantes, para os que permanecem em pé, ou inclinados e prostrados./E proclama a peregrinação às pessoas; elas virão a ti a pé, e montando toda espécie de camelos, de todo o longínquo lugar,/Para testemunharem os benefícios que lhes foram dados e invocarem o nome de Allah, nos dias mencionados, (agradecidos) pelo gado com que Ele os agraciou (para o sacrifício). Comei, pois, dele, e alimentai o indigente e o pobre”.

a outras questões específicas.129 No sistema doutrinal islâmico, o propósito básico da peregrinação é intensificar a devoção do fiel a Deus. Smith (1991) registra, contudo, que ela traz dois efeitos importantes: primeiro, o reforço da noção de que todos são iguais perantes Deus – o que se afirma a partir da exigência de que os peregrinos vistam uma túnica padronizada, de cor branca, independentemente de sua condição social; segundo, o reforço de que o Islã é único, uma vez que a peregrinação reúne muçulmanos vindos de todas as partes do mundo.

Por seu caráter fundante para a própria fé islâmica, os estudiosos conferem às normas do

fiqh al-ibadat um tratamento bastante restritivo. De modo geral, entende-se que seus preceitos estão

detalhadamente contidos e especificados no Corão e na Suna, razão pela qual não estão abertos a exceções ou flexibilizações. Nesse âmbito de normas, os estudiosos consideram que, em princípio, tudo o que não estiver baseado em norma expressa das fontes primárias da Shari’ah é proibido. A regra, portanto, é que a interpretação das normas do fiqh al-ibadat deve ser absolutamente restritiva (RAHMAN, 1979; GALWASH, 1973; HALLAQ, 2009).

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