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Os mercados financeiros enquanto instrumentos para a concretização do ideal

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.5 A “ÉTICA FINANCEIRA” DO ISLÃ: A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DAS FINANÇAS

3.5.2 Os mercados financeiros enquanto instrumentos para a concretização do ideal

Em termos funcionais, a visão islâmica acerca dos mercados financeiros não difere daquela adotada no pensamento econômico ocidental. Com efeito, não se discute que a função precípua de

241 Para Abu Saud (1980, p. 77), “é sempre recomendável, no Islã, trocar bens por dinheiro e então comprar o que é necessário com o mesmo dinheiro. Compra e venda são duas faces da mesma moeda: a operação de troca. Os dois processos que a palavra ba’a – vendido – significa também comprado. Qualquer um que retiver o dinheiro estará cometendo um crime contra si e sua comunidade”.

242 Esse consenso da teoria econômica islâmica em relação à visão sobre o capital contrasta com a ausência de uma visão incontroversa na teoria econômica ocidental. Pelo menos desde a década de 1960, a partir do confronto de ideias entre Joan Robinson e Piero Sraffa, ambos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, os economistas ocidentais travam um intenso debate sobre o significado do capital e a possibilidade de sua mensuração, debate esse que se notabilizou como a “controvérsia do capital”. Até hoje, no entanto, não foi possível chegar a um nível de consenso comparável ao que se verifica na teoria islâmica.

tais mercados é viabilizar a transferência ou a canalização de recursos das unidades ou agentes superavitários – ou seja, aqueles que conseguem acumular recursos que podem ser investidos – para as unidades ou agentes deficitários – isto é, aqueles que necessitam de recursos para atender às suas necessidades.

Não obstante, os influxos dos princípios da teoria da maqasid al-Shari’ah, de modo geral, bem como dos princípios fundamentais da economia islâmica, de modo especial, dão ensejo a uma visão bastante peculiar acerca do modus operandi dos mercados financeiros. Isso porque, conquanto prestigie a liberdade de ação econômica dos agentes – formalmente consagrada, como já se expôs, no princípio da livre vontade (ikhtiyar) –, a teoria islâmica considera que essa liberdade não é absoluta, haja vista que o funcionamento de toda a economia deve observar outros princípios fundamentais.

Na medida em que tudo o que há no mundo foi criado por Deus, e que o homem é seu mero representante na Terra, os mercados financeiros, assim como todos os demais segmentos de atividade econômica, devem seguir os preceitos dados pelo Criador, consubstanciados na Shari’ah (ISRA, 2012). Assim sendo, o funcionamento dos mercados deve convergir para a concretização do falah, não apenas em sua dimensão individual, mas também em sua dimensão coletiva, sujeitando os agentes operadores e os instrumentos financeiros aos filtros morais consagrados pela lei islâmica, a fim de evitar que a busca pelo bem-estar se opere a qualquer preço.

A partir de um exame sistemático e mais detido dos preceitos da Shari’ah, é possível afirmar que esses filtros morais impostos pela dogmática islâmica recaem basicamente sobre o objeto e sobre as condições dos contratos e das operações financeiras. El-Hawary, Grais e Iqbal (2004) e Khan (2010), dentre outros, sustentam que, para se adequarem aos preceitos islâmicos, os mercados financeiros devem observar basicamente quatro princípios, a saber: (i) materialidade; (ii) divisão de riscos; (iii) vedação à exploração; (iv) vedação ao financiamento de atividades proibidas.

O princípio da materialidade se consubstancia na obrigatoriedade de que todas as operações cursadas nos mercados financeiros estejam relacionadas a ativos da economia real (KHAN, 2010). Em linha com a concepção de que todo o sistema econômico deve estar voltado para a satisfação das demandas humanas, com vistas ao seu bem-estar, e com a visão de que o dinheiro é mero intermediário de troca, sendo ele próprio incapaz de satisfazer diretamente (mas apenas indiretamente), a teoria islâmica considera que somente são legítimas as formas e modos de

financiamento lastreados ou garantidos por ativos da economia real (asset-backed ou asset-based). Não são, portanto, consideradas legítimas as formas e modos de financiamento exclusivamente lastreadas em instrumentos de dívida (debt-based), por se entender que elas não estão diretamente relacionadas a ativos da economia real e, como tais, tomam a moeda como objeto e não como instrumento do negócio.243

Por sua vez, o princípio da divisão de riscos consubstancia a imposição de que todas as operações financeiras reflitam uma distribuição equitativa de risco e de retorno para cada parte (KHAN, 2010). Desse modo, não se admite a estipulação de retornos fixos e pré-determinados, que independam do resultado dos negócios subjacentes – isto é, daqueles aos quais se destinam os recursos que constituem objeto das respectivas operações financeiras. Na prática, isso transforma o intermediário financeiro em um parceiro ou sócio do negócio, na medida em que ele também assume os riscos do empreendimento ou atividade financiada.244

O terceiro princípio, da vedação à exploração, se baseia fundamentalmente no ideal de justiça econômica que imbui a Shari’ah – e que é considerado, por isso, um princípio fundamental da própria economia islâmica, como já se expôs. Em linhas gerais, esse princípio se reflete tanto em termos da necessária observância das regras de capacidade e da coibição dos vícios de vontade – consagrando algo próximo à figura do estado de necessidade e da lesão, por exemplo –, como também em termos da coibição de cláusulas ou condições que importem incerteza ou risco demasiado, a ponto de colocar uma das partes sob condições que não tem de antemão como prever ou prevenir.

Por fim, o quarto e último princípio é o da vedação ao financiamento de atividades proibidas, que estabelece os filtros morais relacionados à destinação dos recursos que são objeto

243 Tal circunstância, contudo, não implica necessariamente a rejeição de toda e qualquer operação que envolva dívidas. A rejeição se aplica às dívidas exclusivamente financeiras, decorrentes de operações clássicas de mútuo, não se aplicando a dívidas de natureza comercial. Tudo depende, portanto, da origem e da natureza do débito, de tal modo que as operações de financiamento baseadas em vendas de ativos reais (mercadorias em geral, por exemplo), não só são aceitas como amplamente difundidas. Como se verá no capítulo seguinte, a diferença é que, em lugar de emprestar os recursos tendo como contrapartida um título de dívida, a instituição financeira atua como parte do negócio, comprando e em seguida vendendo ou alugando os bens ou mercadorias de que necessita seu cliente.

244 Isso não equivale a dizer que as operações financeiras Shari’ah compliant tenham que ser sempre e exclusivamente baseadas em divisão de lucros e prejuízos. Como se exporá no capítulo seguinte, embora boa parte dessas operações siga essa lógica, há outras em que isso não ocorre – a exemplo do ijara, figura bastante assemelhada à do leasing, na qual não há divisão de lucros, mas sim pagamento pelo uso da coisa financiada, no qual o risco com o perecimento do bem é da instituição financeira. O que preconiza esse princípio, portanto, é apenas a vedação a que qualquer das partes tenha assegurado seu retorno independentemente de correr os riscos relacionados ao negócio.

das operações financeiras. Ao contrário do que ocorre nos mercados financeiros tradicionais, nos quais não se verificam restrições éticas ou morais ao uso dos recursos que neles circulam, a teoria islâmica considera que, para se adequarem plenamente aos ditames da Shari’ah, as instituições que operam nos mercados financeiros devem dispor de mecanismos para garantir que seus recursos não sejam utilizados em atividades vedadas pela lei islâmica.245

A razão para isso é bastante simples dentro da lógica do pensamento islâmico: se o sistema financeiro, enquanto segmento especializado da atividade econômica, deve servir ao propósito maior de proporcionar o bem-estar dos muçulmanos, nos termos concebidos pela teoria do maqasid

al-Shari’ah, seus recursos não podem servir de fonte de financiamento de produtos ou atividades

que, na visão islâmica, depõem contra o bem-estar da comunidade.

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