• Nenhum resultado encontrado

Considerações iniciais: a exegese da Shari’ah (ijtihad) e sua teoria (usul al-fiqh)

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

2.3 FONTES

2.3.2 Fontes secundárias: métodos e técnicas de raciocínio jurídico

2.3.2.1 Considerações iniciais: a exegese da Shari’ah (ijtihad) e sua teoria (usul al-fiqh)

Como explicado anteriormente, toda a dogmática jurídica islâmica está assentada nas premissas fundamentais de que as normas da Shari’ah são de origem divina – eis que transmitidas por Deus a Muhammad – e de que este, na condição de Mensageiro e Profeta, tem legitimidade

para prescrever orientações e padrões de conduta aos muçulmanos. É precisamente desses dogmas que decorre o fundamento de validade para que o Corão e a Suna sejam considerados como as fontes primárias, os textos basilares da Shari’ah.

Contudo, o próprio pensamento islâmico reconhece que a Shari’ah tem como marca a imutabilidade desses textos. Se, por um lado, essa característica é justificada pelo dogma da divindade – tendo como consectário lógico a ideia de que homem algum pode alterar as normas dadas por Deus e por seu Profeta –, por outro ela expõe um importante contraste entre o caráter estático daqueles textos – fruto da recitação da mensagem revelada ou das práticas do próprio Muhammad e, portanto, dados e passados em determinada época – e o dinamismo da vida em sociedade, que traz costumeiramente à baila novas situações não previstas nas fontes primárias da

Shari’ah.

Por conta disso, e dado que a autoridade do Corão e da Suna como fontes primárias sempre foi absolutamente inconteste no Islã, o grande desafio à aplicação da lei islâmica sempre envolveu saber como extrair dessas fontes os preceitos aplicáveis a situações não previstas. Se, ao tempo de Muhammad, essa questão não se apresentava problemática – visto que o próprio Profeta era costumeiramente procurado para esclarecer o texto do livro sagrado ou dar solução aos casos concretos –, já no primeiro século após a sua morte (marcadamente após a passagem de seus companheiros próximos) afirmou-se a necessidade de se promover uma espécie de integração da

Shari’ah.

Em termos teológicos, isso se colocava na forma de um esforço do muçulmano voltado a investigar qual seria a vontade de Deus para aquele caso ou situação peculiar. Em termos mais propriamente jurídicos, isso significava empreender um processo hermenêutico, no qual, por meio da razão humana, se buscariam os meios para derivar, do texto das fontes fundamentais da

Shari’ah, a norma efetivamente aplicável àquele tema ou àquele caso concreto. Operou-se, assim,

uma importante distinção entre a Shari’ah, o corpo de normas, e o fiqh,106 o subconjunto de regras

106 Em sentido literal, a palavra fiqh significa compreensão ou entendimento. Em sentido técnico, é empregada para designar a compreensão das regras da Shari’ah aplicáveis a aspectos práticos específicos, derivadas a partir de suas fontes.

práticas específicas aplicáveis a determinados temas ou matérias, deduzidos a partir da análise do Corão e da Suna.107

Esse esforço do ser humano em busca da descoberta da vontade de Deus, ou da identificação das normas jurídicas aplicáveis a situações ou temas práticos específicos, é conhecido na teoria jurídica islâmica como ijtihad.108 Trata-se, em verdade, de um processo intelectual e racional,

promovido por intérpretes renomados (chamados de mujtahid) com o propósito de inferir ou derivar, da literalidade, do sentido ou dos objetivos fundamentais refletidos nas fontes primárias da Shari’ah, as regras aplicáveis a questões particulares, que não foram abordadas naquelas de forma expressa (KAMALI, 1991) ou que, a despeito de terem sido abordadas, o foram em linguagem metafórica ou genérica demais, a ponto de suscitar ambiguidades ou dúvidas que precisam ser devidamente esclarecidas para que se chegue ao fiqh (HALLAQ, 2009). Nessa linha, embora empregue a racionalidade humana, o ijtihad preserva a autoridade e a divindade das fontes primárias, uma vez que é sobre elas que o esforço intelectual recai.

Conquanto esse esforço interpretativo conte com respaldo do próprio Corão e de vários

hadith, a amplitude dessa atividade hermenêutica é alvo de antigo e intenso debate entre os juristas

islâmicos. Os primeiros cem anos do Islã (ou seja, aqueles compreendidos entre os séculos VII e VIII) são considerados como um período em que se permitiu uma substancial margem de liberdade para a criação humana em matéria de interpretação da Shari’ah, a ponto de alguns autores se referirem a esta época como o período liberal do Islã (HALLAQ, 2009). Ao que parece, no entanto, isso se devia muito mais à ausência, até então, de uma teoria do direito (que estabelecesse, por exemplo, os métodos ou técnicas de interpretação) do que propriamente a uma flexibilidade concedida ou tolerada pelos religiosos para que o Corão fosse elucidado.

Com o desenvolvimento das grandes escolas jurídicas islâmicas no século VIII e IX, houve um forte impulso no campo jurídico, que em muito contribuiu em termos de desenvolvimento de técnicas de interpretação e aplicação da Shari’ah. Desde então, o ijtihad deixou de ser feito segundo

107 É comum encontrar autores que usam os termos Shari’ah e fiqh de maneira indistinta e, portanto, intercambiável. Contudo, a maior parte dos estudiosos islâmicos considera que as expressões não são sinônimas, justamente pelas razões aqui apresentadas.

108 Em seu sentido literal, a palavra ijtihad, derivada de jahada, significa esforço, designando uma ação humana física empregada para uma tarefa difícil. Em uma acepção técnico-jurídica, no entanto, é empregada no sentido de esforço intelectual ou de interpretação (KAMALI, 2008).

uma perspectiva individual de cada mujtahid e passou a contar com elaborado suporte teórico- metodológico, segundo as linhas concebidas e desenvolvidas por cada uma das escolas.

Dessas contribuições surgiu então o usul al-fiqh (em sentido literal: as “raízes do direito”), referenciado por muitos autores como a “Teoria do Direito Islâmico” (NASSER, 2012), como “a ciência das fontes e da metodologia da lei islâmica” ou, ainda, como o “conjunto de princípios gerais da jurisprudência islâmica” (KAMALI, 1991, p. 12). Na prática, trata-se do conjunto de métodos, técnicas e princípios utilizados para interpretar e integrar o texto do Corão e da Suna, de modo a inferir ou derivar delas a solução para determinada questão controvertida que não está expressa e precisamente disciplinada nas fontes primárias.

Assim é que, por meio da racionalidade jurídica, orientada pelos preceitos do usul al-fiqh, promove-se a exegese das fontes primárias da Shari’ah, chegando-se então ao fiqh, ou seja, o conjunto de normas jurídicas específicas que tratam daquele instituto ou tema. Em uma aproximação com a terminologia jurídica tradicionalmente adotada no Ocidente, isso equivaleria a dizer que: (i) a Shari’ah é o ordenamento jurídico, ou seja, o conjunto global de normas, sobre a qual recai o processo hermenêutico; (ii) o usul al-fiqh corresponde à teoria do direito ou aos princípios da jurisprudência islâmica, que fornece o suporte teórico-metodológico para o processo hermenêutico (o ijtihad), evitando que este se processe de maneira arbitrária; e (iii) o fiqh é o resultado desse processo, correspondendo, assim, a subconjuntos específicos de normas derivadas das fontes da Shari’ah que tratam de determinados assuntos ou temas.109

Em termos substantivos, o usul al-fiqh reúne, inicialmente, um vasto manancial de técnicas de linguística para que as palavras e expressões do Corão e a Suna sejam corretamente interpretadas. Segundo Kamali (2008), estão aí abrangidas técnicas para classificação das palavras e expressões, de modo a se fazer uma distinção entre aquelas que devem ser tomadas em seu sentido literal (haqiqi) e aquelas que devem ser tomadas em seu sentido metafórico (majazi), promovendo- se uma interpretação alegórica (ta’wil); entre as claras e as obscuras ou ambíguas; entre as manifestas (zahir) e as explícitas (nass); entre as genéricas (amm) e as específicas (khass). Em adição, há também a prescrição de técnicas voltadas para investigar as implicações semânticas dos

109 Consoante se exporá mais adiante, as regras da Shari’ah que tratam das atividades comerciais (aí incluídos os contratos financeiros e bancários), por exemplo, estão compreendidas no chamado fiqh al-muamalat.

textos dessas fontes, de modo a contribuir para a inferência de seu verdadeiro sentido e alcance, especialmente no que se refere aos comandos e proibições previstos.

Contudo, além das técnicas de linguística, a teoria do usul al-fiqh reúne também métodos, procedimentos ou mecanismos a serem utilizados no processo de identificação e aplicação das normas da Shari’ah às situações concretas (NASSER, 2012). Busca-se, com isso, derivar do Corão e da Suna os preceitos objetivos voltados a contribuir para a formação de um juízo acerca da conformação de determinado ato ou conduta do muçulmano (ex: uma operação financeira) à “verdade revelada”.

Sua exata condição dentro da Teoria do Direito Islâmico é objeto de grande controvérsia. Isso porque, para alguns autores, esses instrumentos não seriam propriamente fontes, mas sim meros métodos de interpretação e integração do Corão e da Suna. Não obstante, o que se observa, na literatura especializada, é que, de fato, grande parte dos autores os considera como as fontes secundárias da Shari’ah.

Diante de sua relevância, especialmente para a avaliação da licitude de atividades comerciais e econômicas, as seções seguintes serão dedicadas à apresentação das linhas gerais das principais fontes secundárias.

Outline

Documentos relacionados