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1 ISLÃ, UM MODO DE VIDA: HISTÓRIA E DOUTRINA

1.3 A DOUTRINA ISLÂMICA E SEUS COMPONENTES

1.3.2 Base jurídica (Shari’ah)

Em seu sentido literal, a palavra árabe Shari’ah é comumente associada ao significado de “caminho a seguir”, sendo também apresentada como “caminho que leva à fonte” ou, ainda “caminho para a salvação e a felicidade” (RAHMAN, 1979; KAMALI, 2008).

No âmbito do sistema doutrinal do Islã, contudo, ela é mais propriamente conceituada como o “conjunto de comandos, proibições, orientações e princípios que Deus dirigiu à humanidade para pautar sua conduta neste mundo, com vistas à sua salvação” (KAMALI, 2008, p. 14). Segundo a doutrina islâmica, o “caminho” que os muçulmanos devem trilhar é dado fundamentalmente pelo Corão, o livro sagrado da religião – que, como já se expôs, consubstancia a Mensagem divina revelada a Muhammad para orientar a conduta dos muçulmanos – e pela Suna – que reúne o conjunto de práticas e dizeres do próprio Profeta.

As bases e os contornos desse “caminho”, contudo, são bastante amplos e diversificados. Em termos substantivos ou materiais, o Corão e a Suna reúnem preceitos de natureza bastante plural, abrangendo uma mistura de aspectos tipicamente religiosos – a exemplo da crença em Deus, nos anjos e no próprio livro sagrado –, de aspectos morais, e, ainda, de aspectos relacionados a temas assuntos que se poderia qualificar como mundanos, como casamento, contratos e herança.

Essa amplitude e pluralidade temática servem de base a um grande e antigo debate no Islã, no tocante à própria concepção da Shari’ah. Com efeito, é possível encontrar, nas lições dos estudiosos da religião, quase vinte significados ou concepções diferentes para Shari’ah – havendo desde quem perfilhe uma linha mais teológica, associando-a à ideia de “caminho direto” a Deus e outros que, adotando uma abordagem mais dogmática, associem-na à ideia de “doutrina divina”. Abstraídas as variações de estilo e de redação entre os estudiosos, é possível resumir a controvérsia em termos da contraposição entre as concepções mais amplas (ou gerais) e as concepções mais estritas (ou específicas).

As concepções mais amplas colocam a Shari’ah como o conjunto completo do sistema doutrinal do Islã, espelhado na íntegra dos textos do Corão e da Suna. Sob essa perspectiva, o universo da Shari’ah não se esgotaria na base jurídica do Islã, abrangendo também a base teológica (aqidah) e a base ética e moral (aklaq). Para os estudiosos que defendem essa concepção mais ampla ou geral, a Shari’ah não é apenas um componente ou espécie dentro do sistema doutrinal islâmico, mas corresponde à sua própria integralidade. Em outras palavras, ela não seria a espécie, mas sim o gênero completo das normas de conduta prescritas por Deus.

Por outro lado, as concepções mais estritas circunscrevem a Shari’ah à base tipicamente jurídica do Islã. Segundo esse prisma, ela consiste “apenas” em um dos três componentes ou bases específicas do sistema doutrinal islâmico, figurando ao lado das bases teológica (aqidah) e ético- moral (aklaq). A Shari’ah, assim, corresponde, em termos gerais, a um “direito islâmico”, e, como tal, se expressa por meio da prescrição de condutas e da concepção de tipos, categorias e institutos propriamente jurídicos, disciplinando a vida do muçulmano de forma análoga à dos demais sistemas jurídicos. Essa concepção mais estrita ou específica é a que parece prevalecer entre os jurisconsultos, sendo considerada por grande parte dos estudiosos como mais técnica ou mais precisa – e, por essas razões, é que será perfilhada na presente tese.

Dentro dessa concepção mais estrita, a Shari’ah corresponde ao “conjunto das prescrições, regras e mandamentos que se aplicam a todos os aspectos da vida tanto do muçulmano, individualmente, quanto da comunidade dos fiéis” (NASSER, 2012, p. 726). Esse conjunto abarca não apenas as relações do crente com Deus e a religião, como também os deveres e direitos dos muçulmanos nas relações havidas entre si, no cotidiano das interações sociais, políticas e econômicas.

Vale ressaltar, contudo, que, mesmo os autores que defendem essa visão mais estrita da

Shari’ah, pontuam que seus preceitos extrapolam as fronteiras jurídicas tradicionais, tendo um

conteúdo e uma abordagem moral muito mais acentuados do que aqueles que se observam nos demais sistemas jurídicos. Para esses autores, a lei islâmica, assim, seria muito mais moral do que propriamente jurídica.

Em termos de técnica jurídica, esse posicionamento se apoia no caráter genérico, frequentemente cifrado ou metafórico, de suas prescrições. A partir de uma análise do Corão, muitos sustentam que asseveram que o Livro Sagrado, mesmo quando aborda questões tipicamente mundanas, é predominantemente composto de “preceitos éticos e morais de comportamento enunciados de forma genérica demais para terem a precisão e a especificidade de regras jurídicas” (ZWEIGERT E KOTZ, 1998, p. 305).

Há ainda quem vislumbre um predomínio do conteúdo moral sobre o jurídico em razão da escassez de previsão de sanções no mundo dos homens. René David, por exemplo, defende que “a verdadeira sanção das obrigações que se impõem ao crente é o estado de pecado do que as contraria; o direito muçulmano quase sempre se preocupa muito pouco, por esse motivo, com a sanção das regras que prescreve” (DAVID, 2002, p. 511).

Uma terceira ordem de argumentos ainda pode ser apontada. Ao contrário do que ocorre nos grandes sistemas jurídicos ocidentais, a Shari’ah não se limita às categorias clássicas de lícito e ilícito, mas busca estabelecer uma espécie de gradiente valorativo mesmo dentro das condutas consideradas lícitas. Fato é que, embora baseada em uma dicotomia que separa as condutas proibidas ou pecaminosas (haram) e as condutas lícitas (halal), a Shari’ah consagra uma verdadeira escala ou gradação de juízo de valor, como forma de dar aos muçulmanos uma orientação mais precisa sobre o grau de sua aderência à vontade de Deus.

Sob um prisma mais amplo de análise de suas fontes, é de observar que não há apenas duas, mas cinco categorias ou classes de conduta adotadas pela Shari’ah: obrigatórias (wajib);79

79 Essa é a hipótese típica dos deveres com Deus, a exemplo da obrigação de jejum no mês do Ramadã e a da realização da peregrinação a Meca ao menos uma vez na vida.

recomendadas (mandub);80 permitidas ou neutras (mubah);81 censuráveis (makruh);82 e, finalmente, as proibidas ou pecaminosas (haram). Segundo os estudiosos, somente a primeira e a última são categorias jurídicas – e, portanto, passíveis de apreciação por parte dos tribunais –, embora se reconheça legitimidade ao Poder Público para, à vista do interesse público (chamado de

maslalah), tornar proibidas as condutas censuráveis e tornar obrigatórias as condutas

recomendadas (KAMALI, 2008, p. 47).

Firme nesses argumentos, prevalece, entre os autores especializados, a posição de que a

Shari’ah consiste mais precisamente em um corpo misto de preceitos jurídicos e morais (ISRA,

2012), sendo ela resultado ou expressão de “uma teoria moral e jurídica do comportamento humano, na qual as iniciativas morais são sistemática e conscientemente transformadas em diretrizes obrigatórias e ideais aplicáveis a toda a humanidade” (REINHERT, 2002, p. 199).

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