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2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.4 A “ÉTICA ECONÔMICA” DO ISLÃ

3.4.3 O sistema econômico islâmico e seus princípios fundamentais

Dentro da perspectiva normativa que buscam imprimir ao funcionamento da economia, os autores muçulmanos propõem os alicerces para o que consideram ser um sistema econômico de

219 Embora desde o século XVIII já seja possível encontrar estudos que advogavam a separação entre economia e moral, o conceito de economia moral se tornou mais conhecido nos trabalhos do historiador inglês Edward Palmer Thompson, a partir da década de 1960, que utilizou-o para explicar o comportamento de certos mercados a partir de valores adotados ou incorporados pelos agentes. Em síntese, portanto, a economia moral seria aquela orientada por valores como justiça e equidade. Para uma minudente explicação sobre a origem e as implicações do conceito, confira- se, dentre outros, Gotz (2015) e Neves (1998).

feições bastante específicas, e que, para alguns, seria distinto tanto do capitalismo quanto do socialismo. Com base nas prescrições da Shari’ah e nos valores que entendem que estão previstos na lex divina, eles propõem então alguns pressupostos ou “princípios axiomáticos” (ASUTAY, 2013) que norteariam um sistema econômico conforme aos preceitos da fé islâmica.

Na concepção proposta pela teoria islâmica, uma característica é marcante nesse modelo de sistema econômico: o antropocentrismo (ASUTAY, 2013; CHAPRA, 1992). Sem ignorar que os recursos disponíveis são escassos para satisfazer a todos os desejos humanos e que é preciso alocá- los de forma eficiente, e tomando por base as premissas filosóficas da maqasid al-Shari’ah, a teoria islâmica preconiza que o sistema deve estar sempre orientado para propiciar o falah ao homem. A ênfase de suas preocupações, portanto, não é o mercado em si, nem o Estado, mas em como seu funcionamento repercute em termos da capacidade de satisfação dos desejos humanos e da fruição de direitos por cada membro da ummah. Isso implica uma nítida tentativa de compatibilizar equidade e eficiência (CHAPRA, 1992).

Nesse sentido, todos os princípios a seguir apresentados, bem como as variadas derivações teóricas que se encontram na literatura especializada, gravitam em torno desse ideal de dar, a cada um, condições de satisfazer as demandas ínsitas a qualquer ser humano tal como antes apresentadas, o que propicia o estado de bem-estar pleno que leva o homem à falah. Firme nessa linha de convicção, a teoria islâmica consagra, de um lado, a necessidade do aperfeiçoamento das coisas que Deus colocou no mundo e, de outro, a justiça econômica, a beneficência e a introdução de filtros morais para o comportamento humano. Assim faz na crença de que essas providências elevam a qualidade de vida dos homens, individualmente considerados, e da própria ummah, em perspectiva coletiva, criando um ambiente de desenvolvimento e cooperação propício para a concretização da falah (ASUTAY, 2013).

Nas linhas que seguem, far-se-á então a exposição desses “princípios axiomáticos”, que fornecem as bases valorativas que conformam o sistema econômico islâmico halal, isto é, em conformidade com os preceitos da Shari’ah.

3.4.3.1 Unicidade do Criador (tawhid)

O primeiro e mais importante princípio fundamental do sistema econômico preconizado pela teoria islâmica preconiza que tudo o que há na Terra foi criado por Deus e a Ele pertence.

Nesse sentido, os homens devem prestar contas de tudo o que fazem nessa vida, não apenas em relação ao que lhes foi dado, como também ao modo como tratam os seus irmãos muçulmanos, e com base nesses atos serão julgados por Deus.

Em termos de funcionamento do sistema econômico, isso possui traz duas implicações importantes. Em primeiro lugar, consagra uma concepção vertical de igualdade, dentro da qual todos os homens são iguais em sua relação com o Criador, e, nessa condição, possuem os mesmos direitos de fruição das riquezas e das oportunidades de trabalho e de renda que Deus criou ou permitiu aos homens.220 Em segundo lugar, consagra a titularidade divina sobre tudo o que há no mundo, introduzindo uma concepção de “accountability espiritual” (AZID, 2009, p. 167; ASUTAY, 2013, p. 58), sob a qual se considera que todos devem prestar contas de seus atos a Deus. Portanto, todos, indistintamente, devem agir com correção e probidade, evitando a corrupção da vida na Terra.

3.4.3.2 Justiça econômica (adalah)

A justiça econômica é o segundo mais importante princípio fundamental prescrito pela teoria islâmica para o funcionamento da economia. Esse princípio, juntamente com o da unicidade divina, antes apresentado, conformam uma espécie de núcleo duro ou essencial da principiologia consagrada pelos autores islâmicos para a economia. É em torno de ambas que gravitam todos os demais princípios e, até mesmo, toda e qualquer conformação funcional de um sistema econômico verdadeiramente alinhado com os preceitos da religião.

O princípio da adalah consagra uma dimensão horizontal da igualdade em termos que podem ser assim resumidos: se todos são iguais perante Deus, e se a Shari’ah de fato busca proporcionar a falah aos homens, então todos possuem igual direito de ter suas demandas satisfeitas. E, se isso de algum modo não se revelar possível para alguns, todos os demais devem cooperar, agindo com benevolência ou beneficência (ihsan) para com seus irmãos, a fim de que seja assegurado a cada um o que lhe é de direito.221

220 Para alguns autores, como ASUTAY (2013), trata-se aqui da “eticalidade vertical” do sistema econômico. 221 Trata-se aqui, por oposição, daquilo que os economistas muçulmanos chamam de “eticalidade horizontal” (ASUTAY, 2013).

A adoção da justiça econômica como princípio fundamental da economia islâmica traz implicações importantes para o funcionamento do sistema econômico islâmico. Inicialmente, porque firma o compromisso do sistema com a erradicação da pobreza. A explicação é bastante lógica: não há como alcançar o falah (nos termos propostos pela teoria do maqasid al-Shari’ah) se as necessidades essenciais do ser humano não são satisfeitas (CHAPRA, 1979). Na visão de mundo islâmica – que não é, a rigor, verdadeiramente inovadora –, a pobreza leva à privação de capacidades e oportunidades, à dependência de outros e à infelicidade, tendendo inclusive a levar à perda da fé. Nesse sentido, ela compromete seriamente as chances do homem de alcançar a falah e por isso deve ser combatida.

Sob essa perspectiva, o princípio da adalah também consagra o compromisso da comunidade do Islã com a efetivação da justiça social, com vistas a uma espécie de equalização de oportunidades para se alcançar a felicidade. Para os muçulmanos, a ummah é como uma grande irmandade ou fraternidade, que é orientada por uma perspectiva distributiva, segundo a qual aqueles que possuem melhores condições devem agir com beneficência de modo a proporcionar um mínimo de bem-estar aos menos favorecidos (ASUTAY, 2013).222

Sob a ótica weberiana, isso autoriza a concluir que o Islã coloca no ápice o bem comum e estigmatiza as ações econômicas que visam a proveitos egoísticos. A racionalidade econômica muçulmana consagra como critério geral “a regra segundo a qual toda forma de acumulação privada equivale a uma subtração destes recursos à coletividade e à privatização dos benefícios econômicos em detrimento do bem comum” (PACE, 2005, p. 205-206).

3.4.3.3 Representação (khilafah)

O terceiro princípio, conhecido como khilafah, é o que confere ao ser humano a condição de representante de Deus na Terra. De acordo com esse princípio, o homem é mero depositário e

222 É importante frisar, que, embora o sistema doutrinal do Islã confira muita ênfase ao combate às desigualdades sociais, isso não é levado ao extremo de exigir a absoluta igualdade entre todos os muçulmanos. O Islã tolera certos níveis de desigualdade porque reconhece que os seres humanos são diferentes e possuem diferentes níveis de conhecimento, habilidades e atitudes. Nesse sentido confira-se o que prescreve o Corão (43:32): “[...] Nós distribuímos entre eles [os homens] o seu sustento, na vida terrena, e exaltamos uns sobre outros, em graus, para que uns submetam os outros; porém, a misericórdia do teu Senhor será preferível a tudo quanto entesourarem”. Portanto, a desigualdade de que aqui se trata é aquela gerada por distorções geradas pelo próprio (e, nesse sentido, injusto) funcionamento do sistema econômico.

gestor de tudo o que há no mundo; a ele foram dados os recursos, as habilidades, os conhecimentos e o discernimento para viver na Terra e alcançar a felicidade.

Esse princípio reflete uma visão bastante própria do Islã acerca da propriedade, que é vista como algo de origem e titularidade exclusivamente divinas. É Deus, e não o ser humano, o dono de tudo que existe no mundo.223 Embora não implique a rejeição da ideia de propriedade privada, o princípio confere a esta um caráter meramente fiduciário, de tal modo que a propriedade que cabe a cada indivíduo lhe é concedida por Deus na condição de mero depositário ou trustee, para que ele possa empregá-la em prol da satisfação de suas necessidades. Em sendo assim, toda forma de propriedade deve estar sujeita às regras estabelecidas por Ele, principalmente no que se refere à sua distribuição ou repartição. Sob a luz da teoria de Weber, pode-se afirmar que o racionalismo orientado pelo ascetismo intramundano islâmico projeta, assim, um padrão de ação social econômica orientada pelos valores da religião.

Os recursos naturais e materiais, contudo, não são infinitos, e por isso o homem deve bem administrá-los e empregá-los bem. Por associação com os princípios anteriores, isso importa o reconhecimento que ninguém é único na Terra e, por isso, ninguém pode monopolizar ou concentrar as riquezas que Deus colocou no mundo. Há vários outros seres humanos que também precisam daqueles recursos, o que impõe que eles sejam geridos de forma eficiente e equitativa (CHAPRA, 1992).

3.4.3.4 Aperfeiçoamento (rububiyyah)

Segundo a teoria islâmica, o sistema econômico não existe para gerar a riqueza pela riqueza; ele cumpre uma finalidade instrumental, que é propiciar o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das coisas que Deus colocou no mundo, de modo a que alcancem a perfeição – criando, com isso, condições materiais para que se alcance a falah.

Disso decorre que o homem deve trabalhar para aprimorar e fazer frutificar o que Deus proveu. É por meio do trabalho, do esforço empreendido sobre os recursos providos por Deus, que o homem extrai o proveito do que lhe foi confiado. E, com isso, aufere os meios necessários para prover o seu sustento e o de sua família.

223 Assim prescreve o Corão (53:31): “A Allah pertence tudo quanto existe nos céus e na terra, com isso Ele castiga os malévolos, segundo o que tenham cometido e recompensa os benfeitores com o melhor”.

Contudo, essa ação humana não pode ser empreendida de qualquer forma. Até por sua condição de mero gestor das coisas dadas por Deus, o homem deve abster-se de qualquer ação que possa prejudicar ou destruir as coisas por Ele criadas. Desse princípio, portanto, a teoria econômica deriva uma noção de responsabilidade socioambiental que deve permear o funcionamento do sistema econômico islâmico (ASUTAY, 2013; AZID, 2009).

3.4.3.5 Livre vontade (ikhtiyar)

De modo geral, o Islã considera a liberdade como algo essencial para o desenvolvimento da personalidade humana (CHAPRA, 2007). É por meio dela que o homem tem asseguradas as condições para empreender, criar, inovar, extraindo seu sustento e gerando riquezas a partir da associação de seus talentos e virtudes às coisas que Deus colocou no mundo.

Na concepção econômica islâmica, o homem é livre para tomar suas decisões e empreender suas atividades, desde que elas estejam em plena consonância com a Shari’ah (CHOUDHURY, 2011). Nesse contexto, o princípio da livre vontade sinaliza a importância de se preservar a liberdade dos agentes econômicos de tomarem suas próprias decisões – o que, portanto, o aproxima bastante do princípio da livre iniciativa. Não deve então o Estado se imiscuir ou estabelecer limites ao exercício da atividade econômica, a menos que isso seja necessário para conferir uma maior eficiência ao funcionamento do sistema ou para evitar a burla ou o descumprimento dos preceitos da religião.

3.4.3.6 Purificação (tazkiyah)

De acordo com esse sexto princípio, a busca da falah, mesmo dentro dos limites propostos pelo princípio anterior, não pode se dar a qualquer preço – operando-se, por exemplo, às custas da necessidade, da fragilidade ou da exploração alheia.

Além de preservarem a ordem divina das coisas, as atividades econômicas humanas devem estar sempre orientadas pela necessidade de contribuir para o alcance do falah. Embora o ser humano seja livre para tomar sus decisões, essa liberdade encontra limites na medida em que a busca da felicidade por alguns se dê em franco prejuízo da capacidade de outros alcançarem esse mesmo objetivo. No campo econômico, isso enseja a necessidade de relativizar a liberdade de ação

econômica do homem, condicionando o funcionamento do sistema econômico à observância dos preceitos morais da religião.

Assim sendo, entende-se que, muitas vezes, os mercados precisam ser purificados, para que operem dentro dos parâmetros determinados por Deus. Em termos weberianos, esse princípio talvez seja um dos que melhor evidencia o direcionamento da ação social econômica a partir de uma racionalidade orientada por valores. Isso porque essa purificação do mercado, na teoria econômica islâmica, se alcança mediante sua sujeição a filtros morais, que impõem certos limites às atividades econômicas e financeiras (AHMAD, 1994; AZID, 2009). Esses filtros morais são dados por Deus em sua Mensagem, e estão consubstanciados no Corão e na Suna.

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