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Consolidação e expansão: o surgimento do Império Islâmico e o regime dos

1 ISLÃ, UM MODO DE VIDA: HISTÓRIA E DOUTRINA

1.2 ORIGENS E EVOLUÇÃO

1.2.2 Consolidação e expansão: o surgimento do Império Islâmico e o regime dos

Com a morte do Profeta, a comunidade islâmica vivenciou uma intensa discussão sobre qual deveria ser o novo líder. Para os sunitas (que hoje representam cerca de 85% a 90% da comunidade), o comando do Islã deveria pertencer a um descendente da tribo de Maomé, escolhido por seus seguidores; para os xiitas48 (em torno de 10 a 15%), a função de líder da comunidade tinha

legitimidade divina e, por isso, o comando deveria caber a um descendente direto do Profeta – que, no caso, deveria ser Ali ibn Abu Talib, seu primo, a quem Muhammad, segundo eles, já teria indicado como sucessor (JOMIER, 1993; AL-TABATABAÍ, 1997). Estes ficaram então conhecidos como shi’at Ali, ou seja, os partidários ou seguidores de Ali, dando origem ao xiismo.

47 Em 627, um ano após a batalha das trincheiras, Muhammad conseguiu negociar um acordo com os líderes de Meca com o objetivo de permitir a viagem do Profeta e de seus seguidores à cidade sagrada. O acordo permitiria que Muhammad transmitisse também a mensagem de Deus durante sua visita e previa uma trégua de dez anos. Contudo, esta acabou não durando mais de dois anos, uma vez que um dos aliados de Meca matou aliados de Muhammad, retomando então os conflitos.

Os xiitas, no entanto, acabaram não conseguindo seu intento. Prevaleceu a posição da maioria sunita, de que o líder deveria ser um califa49 escolhido entre os membros da tribo coraixita. Nesse sentido, Abdullah ibn Abi Qhuhafah, mais conhecido como Abu Bakr, foi aclamado como o primeiro califa (AL-TABATABAÍ, 1997). Ali seria mais tarde escolhido como o quarto califa, mas essa cisão marcaria para sempre a comunidade do Islã.

Foi Abu Bakr quem mandou que fossem consolidadas, pela primeira vez, todas as revelações do Profeta, com o objetivo de consolidá-las em um livro único que reunisse, de maneira organizada e devidamente ordenada, as diferentes passagens da Mensagem. O objetivo era preservar-lhe o texto, evitando sua corrupção, e, ao mesmo tempo, facilitando sua difusão junto à comunidade que crescia notadamente. O resultado desse trabalho de compilação50 foi consubstanciado no suhuf, a primeira versão escrita do Corão,51 o livro sagrado dos muçulmanos, a qual foi inicialmente guardada pelo próprio Abu Bakr em seus arquivos e confiada a seus sucessores (AL-AZAMI, 2003).

Ao longo desses primeiros califados, especialmente a partir do suporte escrito, as fronteiras do Islã se alargaram imensamente.52 Nascia então o Império Islâmico, que, em cerca de vinte anos,

já dominava toda a península arábica e o norte da África. Apesar da grande tolerância religiosa que marcava o império, o Islã propagou-se muito fortemente pelos territórios, o que, em parte, é explicado pela grande simplicidade do procedimento de conversão. Outro aspecto considerado importante para a difusão da religião foi a produção e distribuição de diversas cópias do Corão, a mando do terceiro califa, Uthman Ibn Affan (AL AZIM, 2013).

Com a morte de Ali, o quarto califa, que foi assassinado em 661, o Islã tornaria a se ver envolto em outro grande debate sobre quem deveria ser o novo líder da comunidade. Para os xiitas,

49 Califa é a transliteração de khalifa, palavra árabe usualmente traduzida como sucessor, representante ou líder. A despeito de sua importância política, contudo, o califa era o líder da comunidade, mas jamais foi considerado em condição igual à do Profeta. Não era, portanto, um mensageiro de Deus (RAHMAN, 1979; HOURANI, 2013). 50 Segundo Al Azami (2003), o trabalho de compilação foi conduzido na mesquita construída pelo Profeta e teve Zaid bin Thabit, considerado como um dos principais seguidores de Muhammad. Nesse trabalho, foram considerados tantos os manuscritos produzidos por seguidores ou escribas do Profeta quanto relatos orais de pessoas consideradas confiáveis.

51 É comum transliterar o nome do livro sagrado muçulmano em árabe, Al-Qur’an como Alcorão. Contudo, de acordo com as regras linguísticas árabes, o verbete al, exerce a função de artigo definido. Diante disso, muitos autores optam por adotar a forma transliterada “o Corão”. Os dicionários de língua portuguesa, contudo, preveem ambas as formas. Na presente tese, adotar-se-á a segunda forma de transliteração.

52 Em razão da forte expansão territorial e política experimentada na época, e por sua dedicação em manter-se fiéis às práticas de Muhammad, esses primeiros califas costumam ser chamados de rashidun (em árabe: “bem guiados”).

o posto caberia a Al-Hassan, primogênito de Ali. Contudo, os sunitas, que já eram maioria, reassumiram o comando da comunidade, liderados Abu Abd Ar-Rahman Muawiya, cunhado do Profeta. Teve início, então a dinastia ou califado omíada,53 com sede política em Damasco, e que perdurou até 750.

Nesse período, o Islã experimentou uma forte expansão, tanto em termos políticos quanto religiosos, tendo o contingente de fiéis aumentado substancialmente. Os limites territoriais do império muçulmano também se ampliaram bastante, estendendo-se até a península Ibérica. Para fazer frente à forte expansão administrativa do Islã, e, ao mesmo tempo, garantir o cumprimento da lei islâmica, os califas omíadas deram grande importância a uma antiga figura, o qadi (juiz), que era um membro da comunidade escolhido para resolver as disputas submetidas pelas partes segundo os preceitos da lei islâmica.54

Embora o qadi já fosse uma figura há muito conhecida no Islã – e que, aliás, existe até hoje no âmbito da religião – sua atuação tornou-se especialmente importante nesse período em face da grande expansão do império. Isso porque o qadi era um agente ao qual se atribuía competência para a administração da justiça,55 fazendo-o à luz dos preceitos da Shari’ah e, assim, assegurava a

conformidade da conduta dos habitantes das terras do império à lei islâmica. O que buscavam os omíadas, portanto, era criar uma estrutura burocrática judicial para resolver os conflitos locais (MENSKI, 2006).

A despeito de seus esforços nessa área, contudo, os omíadas enfrentaram muitas críticas e dificuldades políticas pelo fato de terem empreendido reformas legislativas que buscaram transplantar, para a comunidade islâmica, regras de outros sistemas.56 O pragmatismo dos omíadas – que admitiam, por exemplo, a aplicação da ra’y, ou seja, da opinião pessoal, na interpretação do

53 O nome da família deriva do nome de seu ancestral, Ummahyya.

54 A origem do qadi é objeto de alguma controvérsia. Para Hallaq (2005), há indícios de que o próprio Muhammad teria designado qadi para algumas regiões próximas a Medina. Para outros autores, como Menski (2006), essa figura só teria sido implantada depois de sua morte, durante o governo dos primeiros califas. Dado o caráter rudimentar e desprovido de qualquer metodologia, no entanto, essas primeiras figuras costumam ser chamadas de “proto-qadis” (HALLAQ, 2005).

55 A autoridade do qadi era e ainda é tão grande que suas decisões são simplesmente comunicadas às partes. Segundo Glenn (2007), não há necessidade de indicação de razões ou fundamentos que levaram o julgador àquele desfecho. Contudo, ao contrário do que costuma ocorrer em cortes ocidentais, suas decisões não constituem precedentes – cada caso é único e como tal precisa ser analisado. As deliberações do qadi são definitivas, não havendo previsão de qualquer espécie de recurso ou outro meio de insurgência em face dela. Por isso, não se conhece, no Islã, a figura de Cortes de Apelação.

Corão – causou grande impacto nos conservadores. Para seus opositores, os omíadas afastavam o Estado e a lei dos homens das prescrições do Corão, relegando-o assim a um papel apenas secundário no campo jurídico (MENSKI, 2006).

Em 750, teve início o califado Abássida,57 com sede em Bagdá, cidade que foi planejada e construída para ser a sede do Império. A partir de então, o Islã passou a contar com progressiva penetração na Europa, exercendo sobre o continente uma forte influência artística, cultural e até arquitetônica. No campo jurídico, os abássidas, mais dogmáticos que seus antecessores, imprimiram uma completa reaproximação com o Corão, que retornou à centralidade do ordenamento. Para esses califas, o Corão e a Suna (o conjunto de dizeres, práticas e reações do Profeta diante de situações concretas) eram as únicas fontes da lei, e o papel do homem era então extrair delas a regra aplicável ao caso concreto.

Como consequência, durante o califado abássida a figura do qadi ganhou ainda mais importância, sobretudo por conta da grande extensão territorial do Islã. Todavia, à medida em que aumentava o número de qadis, via-se como cada vez mais necessário chegar a consensos sobre padrões mais objetivos e uniformes de conduta. Em outros termos, afirmava-se cada vez mais importante a concepção de um arcabouço teórico-metodológico que, articulando as diferentes fontes da lei islâmica, fornecesse bases para um juízo menos subjetivo acerca da conformidade das condutas humanas a ela. Ou seja, era necessária a construção de uma teoria do direito para o Islã. Um aspecto relevante nesse processo é o que o período abássida foi marcado por uma grande efervescência intelectual e cultural, que se deu especialmente em função de intensos trabalhos de tradução, que permitiram que textos gregos fossem vertidos para o idioma árabe. Com isso, os muçulmanos tomaram contato com a ciência e a filosofia gregas, que exerceram sobre eles forte influência. Seus intelectuais consideravam Aristóteles como o primeiro grande filósofo e vislumbravam grande convergência de suas formulações com as prescrições do Corão relativas à necessidade de o homem buscar o conhecimento como meio de chegar à vontade de Deus (BÍSSIO, 2013).58

57 A denominação desse califado deriva do nome de Abu´l Abbas, que foi o primeiro dos califas dessa fase do Islã (KIRK, 1967; HOURANI, 2013).

58 Para Hourani (2013, p. 92), “não apenas a tradição dos convertidos letrados, mas a natureza essencial do próprio Islã – a revelação de palavras, e, portanto, de ideias e conhecimento – tornavam imperativo que os que desejavam submeter- se à vontade de Deus buscassem o conhecimento e refletissem a respeito”.

Essa confluência de fatores deu grande impulso à produção dos sábios religiosos, que se dedicaram à elucidação do Corão, sobretudo mediante a articulação de seu texto com a Suna. Assim, no século VIII, surgiram diferentes escolas de pensamento jurídico (chamadas de madhhab) que buscaram estabelecer técnicas e métodos para orientar o esforço hermenêutico em prol da descoberta da vontade de Deus – conhecido como ijtihad. Segundo os sábios, por meio desse esforço é que se chegaria ao fiqh, isto é, a regra jurídica aplicável aos casos concretos. Basicamente, o que essas escolas buscavam era definir as bases teórico-metodológicas para a interpretação da

Shari’ah, de modo a extrair, dos textos sagrados as regras práticas aplicáveis à vida dos

muçulmanos.59

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