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2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.5 A “ÉTICA FINANCEIRA” DO ISLÃ: A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DAS FINANÇAS

3.5.1 A moeda e suas funções precipuamente instrumentais

Desde os primórdios do Islã, a moeda é objeto de reflexões por parte dos estudiosos da religião, que possuem uma posição firme e bem definida: na visão de mundo por eles professada,

a moeda cumpre apenas uma função instrumental e não pode, ela própria, ser tratada como uma

commodity (CHAPRA, 1992). A singularidade e os reflexos ou repercussões dessa visão em termos

da concepção de contribuições teóricas no campo das finanças consonantes com os preceitos da

Shari’ah se afirmam mais claramente quanto se contrastam as funções ou propriedades defendidas

pelo pensamento ocidental e no pensamento muçulmano.

Classicamente, a teoria ocidental preconiza três funções ou propriedades para a moeda,233 a saber:

(i) unidade de conta ou de valor, segundo a qual a moeda tem a capacidade de representação abstrata de valor econômico, servindo assim de referência para exprimir o valor de produtos e serviços em termos de uma unidade comum, chamada de padrão monetário;234

(ii) meio ou intermediário de trocas, segundo a qual a moeda é aceita como alternativa às trocas diretas de mercadorias e serviços,235 e, como tal, pode também ser usada como

meio de pagamento, por sua capacidade para liquidar dívidas e obrigações;236 e

(iii) reserva de valor, que permite que a moeda não seja utilizada imediatamente, sendo guardada para utilização futura.237

Nesse contexto, é assente, no pensamento ocidental, a convicção de que, por suas peculiaridades, a moeda, além de cumprir funções instrumentais – viabilizando a manutenção de

233 A moeda é objeto de farta e diversificada bibliografia, que a estuda sob os prismas político, jurídico, econômico, sociológico e até antropológico. Um bom panorama do pensamento econômico e jurídico pode ser encontrado em Cozer (2006), em dissertação elaborada no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasilia e integralmente dedicada ao estudo da natureza e das propriedades da moeda.

234 Na visão de Weber (2000) mesmo, a moeda serve como um índice abstrato de valor econômico, que viabiliza a estimação do valor, em uma base monetária comum, de todos os bens e serviços passíveis de troca.

235 A função de intermediário de trocas é considerada pela maioria dos autores como a mais elementar e importante da moeda. Nessa perspectiva, Weber (2000, p. 46), por exemplo, conceitua o dinheiro como “um meio de pagamento cartal que serve de meio de troca”. Há, no entanto, parte importante da literatura que observa, com absoluta propriedade, que essa função, além de não ser exclusiva da moeda, tem como pressuposto a função de unidade de conta, ao argumento de que “para atuarem como moeda, os meios de troca devem ser necessariamente referenciados a uma unidade de conta, ou seja, [a] um símbolo abstrato de valor econômico” (COZER, 2006, p. 28).

236 No pensamento econômico, a função de meio de pagamento costuma ser mais abordada dentro do contexto da função de meios de troca. Contudo, entre os juristas costuma ser mais comum a dissociação dessas funções, tratando- se a de meio de troca e a de meio de pagamento como funções distintas, embora reconhecidamente inter-relacionadas. 237 Abordando o tema de maneira precisa, Oliveira (2009, p. 136) sustenta que essa função implica uma descontextualização do valor dos bens, uma vez que a estimativa de seu valor “deixa de ser feita exclusivamente pela sua utilidade atual, em um momento determinado e por pessos específicas, para considerar todas as futuras probabilidades de utilização e estimação, por pessoas e em lugares e tempos intedeterminados”, o que transforma a moeda em “uma ponte entre o presente e o futuro”.

um sistema de trocas indiretas, em substituição às trocas diretas ou escambo de mercadorias –, acaba, ela própria, sendo objeto de negociação, estando imersa em ciclos negociais e movimentos autônomos (SIMMEL, 2004) e afirmando-se como uma autêntica commodity nos mercados financeiros.

Isso fica bastante evidente tanto no campo teórico – no qual se encontram formulações que explicam a demanda específica por moeda238 –, quanto na própria realidade dos mercados financeiros – que revela a existência de segmentos específicos e bastante pujantes de negociação de disponibilidades monetárias.239 Em face de tanto, Simmel (2004), dentre outros, reconhece um duplo papel para a moeda, sustentando que “ela é, simultaneamente, parâmetro de valor e coisa valorada; é unidade abstrata de conta e meio concreto de troca, reserva e transporte de valor” (COZER, 2006, p. 81).

É precisamente nesse ponto que se afirma a especificidade e a distinção do pensamento muçulmano: no Islã, a função de reserva de valor é veementemente rejeitada. Os autores em geral (e não apenas os economistas) há muito sustentam que a moeda possui apenas duas funções básicas, que seriam as de servir de unidade de conta e de meio de troca. Seu papel, portanto, restringe-se a dar suporte ou viabilizar e incrementar as trocas econômicas – com especial ênfase às relações comerciais (ISRA, 2012).

Segundo a teoria islâmica, o dinheiro, em si, não pode ser considerado uma commodity, objeto de transação ou fonte de renda ou de lucro, porque ele não possui uma utilidade intrínseca direta (USMANI, 2002). Em outros termos, a moeda não pode ser usada para satisfazer diretamente as demandas humanas, nos termos propostos pela teoria filosófica da maqasid al-Shari’ah. A satisfação que ela proporciona deriva exclusivamente de sua propriedade artificial, convencionada entre os seres humanos, de servir de intermediário das trocas e, com isso, viabilizar a aquisição de bens ou serviços. Disso decorre que, para os pensadores muçulmanos, a utilidade ou proveito da moeda somente se afirma quando ela é trocada por um ativo real ou usado para a contratação de um serviço, razão pela qual ele não pode ser vendido ou comprado (AHMAD E HASSAN, 2006).

238 Um dos mais notórios expoentes é “Teoria Geral do Emprego, da Moeda e do Juro”, de John Maynard Keynes, na qual o financista inglês reconhece a moeda como um bem econômico diferente dos demais, dotada de uma característica especial: a liquidez, ou seja, a sua aptidão para ser trocada imediatamente por qualquer outro bem. Keynes sustenta a existência de uma procura por moeda como ativo e argumenta que, de modo geral, essa demanda se justifica em termos de uma preferência que os indivíduos possuem pela liquidez que a moeda proporciona.

239 Trata-se, aqui, do chamado mercado monetário, segmento específico dos mercados financeiros também conhecido como mercado interbancário, no qual as instituições operadoras negociam entre si suas disponibilidades de moeda.

Em linhas gerais, a visão islâmica acerca da moeda pode ser sintetizada nos seguintes pontos (ABU SAUD, 1980):

(i) a moeda tem a propriedade de gerar ao seu titular uma renda real simplesmente por sua detenção, ou seja, sem ser trocada por outros bens, mas essa propriedade é absolutamente artificial;

(ii) a moeda é dotada de máxima liquidez, que suplanta a de qualquer outro bem, e, em princípio, não possui custos de produção e carregamento, o que também evidencia seu caráter artificial;

(iii) a demanda de moeda é irreal, sendo, mais propriamente, derivada de demandas por bens que ela pode comprar ou pelos quais pode ser trocada;

(iv) a moeda não está sujeita à depreciação ou deterioração, tal como ocorre com todos os demais bens, contrariando a visão islâmica sobre a efêmera existência de tudo o que há no mundo. Se isso, por um lado, não chega a levá-la a ser algo contrário aos preceitos divinos, por outro impõe que ela não seja objeto de adoração;240 e

(v) a moeda é, na verdade, produto de uma convenção social, possuindo poder de compra que resulta de sua supremacia sobre o valor intrínseco dos demais bens.

A articulação dessas convicções com aquelas pertinentes ao funcionamento do sistema econômico em geral – e aos fatores de produção em especial – tem implicações cruciais e bastante peculiares na determinação das formas e do modus operandi das práticas financeiras. Com efeito, se o trabalho ou esforço humano é o elemento central do sistema econômico professado pelo Islã, afirmando-se como a fonte de riqueza por excelência, e se a moeda não deve cumprir outras funções além das de unidade de conta e intermediário de trocas, não possuindo valor intrínseco, então qualquer ganho financeiro que não esteja associado a uma atividade produtiva, com a assunção dos riscos a ela pertinentes, deve ser considerado ilegítimo.

240 Esse ponto de vista se baseia no dogma de que tudo o que há na Terra está sujeito à lei natural da depreciação e só Deus é eterno. Esse dogma é explicitado de forma clara e direta no Corão (55:26-27): “Tudo quanto existe na terra perecerá/E só subsistirá o Rosto do teu Senhor, o Majestoso, o Honorabilíssimo”. O que se preconiza, portanto, é que o dinheiro fique em seu devido lugar, como mero meio de troca, a fim de que não se constitua objeto de adoração.

Para os muçulmanos, o esforço humano, a iniciativa e o risco associados aos empreendimentos produtivos são mais importantes do que o dinheiro usado para financiá-los (AHMAD E HASSAN, 2006). Aqueles é que estão associados à geração de riqueza e não este último, que nada mais é do que um meio de viabilizá-las. Nesse quadro, não se admite como legítimo o ganho puramente financeiro, isto é, aquele decorrente da rentabilidade de depósitos bancários ou do acréscimo cobrado como contrapartida à realização de um mútuo com outras pessoas.

Em geral, entende-se que, enquanto convenção humana, a moeda não foi feita para ser acumulada, mas sim para instrumentalizar um poder de compra. E este, segundo os autores islâmicos, não pode ser usado para gerar mais poder de compra sem que, antes, cumpra sua finalidade precípua de servir à troca por bens e serviços que possam satisfazer diretamente às demandas humanas (AHMAD E HASSAN, 2006).241

Na prática, isso promove uma importante dissociação entre os conceitos de capital e dinheiro. Segundo a teoria islâmica, o dinheiro só é considerado como capital se estiver associado a outros recursos e se for empregado a uma atividade produtiva (AHMAD E HASSAN, 2006). Desse modo, enquanto estiver guardado, seja fisicamente com o próprio detentor, seja escrituralmente em um banco, por exemplo, não se apresenta senão como capital em sua forma potencial e, nessa condição, é insuscetível de gerar qualquer ganho ou renda legítima.242

3.5.2 Os mercados financeiros enquanto instrumentos para a concretização do ideal

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