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Para quem produzir: a visão sobre a distribuição da renda e da riqueza gerada

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.4 A “ÉTICA ECONÔMICA” DO ISLÃ

3.4.4 Os problemas econômicos fundamentais na teoria econômica islâmica

3.4.4.3 Para quem produzir: a visão sobre a distribuição da renda e da riqueza gerada

Em busca da concretização do princípio justiça socioeconômica (adalah), há, no Islã, grande preocupação com a forma como a riqueza gerada ou produzida pelo sistema econômico é alocada. Seu sistema doutrinal, inclusive, expressa de maneira clara a ideia de que a riqueza não deve circular apenas entre os ricos.229

229 Uma evidência textual desse preceito está no Corão (59:7): “Tudo quanto Allah concedeu ao Seu Mensageiro, (tomado) dos moradores das cidades, corresponde a Allah, ao Seu Mensageiro e aos seus parentes, aos órfãos, aos necessitados e aos viajantes; isso, para que (as riquezas) não sejam monopolizadas pelos opulentos, dentre vós [...]”.

Embora assegure a liberdade de atuação dos agentes econômicos e vislumbre no mercado a sede apropriada para a formação e o encontro de vontade desses agentes, a economia islâmica considera que a alocação das riquezas produzidas na sociedade não pode se dar exclusivamente segundo a lógica da economia de mercado. Tal se explica em razão da convicção de que, embora as estruturas de mercado não induzam necessariamente à injustiça, a alocação das riquezas produzidas ou geradas é fundamentalmente ditada pelo critério da eficiência.

Ocorre que, como já se expôs, a teoria islâmica considera que o critério da eficiência não pode ser o único guia ou parâmetro de funcionamento de um sistema econômico. Para atender aos preceitos da Shari’ah e cumprir com seu objetivo primeiro, que é a promoção do falah, e observar os seus princípios fundamentais, é importante que, além da eficiência, o sistema econômico seja guiado pelo critério de equidade (CHAPRA, 1992). Nessa linha de argumentação é que se sustenta que o mercado não é o veículo adequado para o estabelecimento de padrões justos de renda e de distribuição de riquezas (ISRA, 2012).

Sob essa perspectiva, ao abordar o tema da alocação da riqueza produzida, a teoria econômica islâmica, baseada nos preceitos éticos e morais previstos no Corão e na Suna, trata da questão da distribuição da renda e da riqueza em duas frentes: em uma primeira, preconiza a necessidade do justo e igualitário acesso às fontes de renda; em uma segunda, prega a necessidade de atuação do Estado e da sociedade para a correção ou mitigação das desigualdades existentes.

Na primeira frente, o pensamento muçulmano concebe uma verdadeira teoria moral das fontes de renda. Sob esse prisma, e alinhados com a perspectiva antes referida, no sentido de que todo ganho deve estar necessariamente associado a uma atividade econômica produtiva, os economistas muçulmanos consideram a existência de apenas três categorias de renda: (i) o salário, como retribuição pelo trabalho; (ii) o aluguel, devido em razão do uso da terra; e (iii) o lucro, auferido no exercício da atividade empresarial (ISRA, 2012).

Na segunda frente, a teoria islâmica preconiza a necessidade de mecanismos para corrigir as distorções na alocação de recursos e, assim, tornar efetiva a justiça socioeconômica (CHAPRA, 1992). É um dever do Estado, enquanto instrumento de consecução, afirmação e efetivação dos preceitos da religião, agir no sentido da correção das distorções no funcionamento do sistema econômico (CHAPRA, 1980; ISRA, 2012).

Isoladamente, isso em pouco ou nada diferenciaria o sistema econômico islâmico, a não ser pelo fato de que, em lugar de uma decisão política, as ações voltadas para a redistribuição de renda

se dariam por imperativo de valores religiosos. A grande questão, no entanto, é que, norteado pelo ideal de responsabilidade social, que coloca para todo muçulmano uma parcela de responsabilidade pelo bem-estar da ummah, o Islã consagra um mecanismo diferenciado para essa redistribuição. Além dos instrumentos de política econômica tradicionais, o sistema doutrinal islâmico eleva a caridade ao nível do dever, consubstanciado no instituto do zakat,230 o que estabelece uma concomitância de obrigações do Estado e da própria sociedade civil. Mais do que um dever estatal, o auxílio aos necessitados é uma obrigação coletiva (CHAPRA, 2007).231

Muito embora esteja expressamente previsto no Corão – tanto no que se refere à sua exigibilidade quanto no que concerne à sua destinação –,232 a teoria econômica islâmica considera que a relevância do instituto do zakat não se restringe ao plano do cumprimento de uma obrigação determinada pela fé. Pelo contrário, o instituto desempenha importantes funções econômicas.

A primeira delas, por certo, seria a própria função redistributiva, associada à criação de condições para o provimento de recursos e a subsistência daqueles que não teriam condições de obtê-la por razões circunstanciais. Trata-se, portanto, da função precípua do zakat.

Uma segunda função seria a do estímulo ao investimento – por certo, em atividades produtivas. Segundo Chapra (1992, p. 275), essa função se efetiva porque, cientes da obrigação que são chamados a cumprir pela doutrina da fé que professam, os pagadores do zakat acabam tendo estímulos adicionais para buscar renda, a fim de que possam pagá-lo sem que sua riqueza seja diminuída. Diante disso, tendem a procurar formas de investir os seus recursos, evitando que fiquem ociosos. Há, portanto, um estímulo ao aumento do nível de investimento, proporcionando, também por este ângulo, um aumento no bem-estar de toda a comunidade.

Por fim, o zakat, na visão dos economistas islâmicos, cumpre uma terceira função, de grande repercussão e interesse dos mercados financeiros, que é a da purificação das fontes de renda dos muçulmanos. Isso porque a destinação para a caridade de tudo o que for oriundo de ganhos

230 O zakat, como já se expôs na seção 2.4.1, é um importante instrumento de redistribuição de riquezas – considerado, inclusive, como um dos pilares do Islã – na medida em que importa a obrigação de que todo muçulmano que tenha um patrimônio acima de determinado patamar doe para caridade o equivalente a 2,5% de sua riqueza.

231 Para Chapra (1979, p. 270) o zakat consiste em uma espécie de “programa social de auto-ajuda”.

232 Tais recursos, segundo o Corão, são destinados aos que não possuem renda, aos pobres, aos seriamente endividados, aos viajantes que passam por dificuldades momentâneas de se manter e, ainda, ao financiamento de atividades que contribuem para o bem da comunidade, como escolas islâmicas, hospitais, mesquitas e outras atividades beneficentes (FARID, 1980; KETTEL, 2011). Acerca do tema, assim prescreve o Corão (2:177): “A verdadeira virtude é a de quem crê em Allah, no Dia do Juízo Final, nos anjos, no Livro e nos profetas; de quem distribui seus bens em caridade por amor a Allah, entre parentes, órfãos, necessitados, viajantes, mendigos e em resgate de cativos (escravos)”.

associados a atividades proibidas pelo Corão e pela Suna tem por efeito a expiação do pecado a ela associado. Desse modo, além de os próprios bancos serem obrigados a pagar o zakat sobre seus lucros, tal qual ocorre com outras empresas, se alguma operação em que eles ou seus clientes tomem parte envolver a cobrança de juros, ou mesmo de multa, essa parcela adicional de remuneração também deverá ser doada para a caridade (KETTEL, 2011).

3.5 A “ÉTICA FINANCEIRA” DO ISLÃ: A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DAS FINANÇAS

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