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2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.5 A “ÉTICA FINANCEIRA” DO ISLÃ: A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DAS FINANÇAS

3.5.3 Princípios fundamentais das finanças islâmicas

3.5.3.2 Proibição da incerteza ou do risco excessivo (gharar)

O segundo princípio jurídico que norteia as finanças islâmicas é o que preconiza a vedação à incerteza ou risco excessivo, designado na língua árabe pela palavra gharar.255 Embora o verbete seja traduzido e genericamente empregado no sentido de risco, incerteza ou, ainda, perigo (ISRA, 2012; BALALA, 2011), no âmbito jurídico-financeiro ele é empregado de forma mais precisa e específica, para designar apenas um nível extremado de incerteza ou indeterminação a respeito de um ou mais elementos de um negócio jurídico, da qual possa decorrer um risco não previsto ou mesmo imprevisível de perda para qualquer das partes envolvidas naquele negócio.

Na prática financeira, portanto, a vedação ao gharar não implica a eliminação de todo e qualquer risco do negócio. À vista de tudo o quanto já se expôs acerca do estreito vínculo entre risco e retorno – que embasa, inclusive, a proibição de negócios nos quais ele não esteja devidamente configurado –, é preciso frisar que a teoria islâmica nem de longe busca expurgar o fator de risco do mundo dos negócios. O que se busca, na verdade, é coibir a incerteza causada por defeitos de informação nos contratos firmados. Por isso, não é qualquer risco que inquina de nulidade um negócio – no caso, uma operação financeira – mas apenas aquele que se apresenta de forma injustificada, excessiva ou desarrazoada.

A fim de estabelecer um divisor de águas, a teoria islâmica identifica basicamente duas espécies de gharar, quais sejam (ISRA, 2012):

(i) Gharar fahish (também chamado de gharar major), que designa a ausência, desconhecimento ou omissão de informações consideradas essenciais, o que impede a(s) parte(s) de conhecer(em), com um mínimo de segurança, suas possibilidades de perda;

(ii) Gharar yasir (também chamado de gharar minor ou inevitável), que recai sobre a natureza do próprio negócio256 e que, apesar de importar risco para a(s) parte(s), não

255 Caprio Jr. (2013) registra que a palavra deriva do verbo gharra, que pode ser traduzido como decepcionar, iludir ou enganar.

256 Esse seria o caso do risco intrínseco carregado em cada atividade comercial, como por exemplo aquele associado à possibilidade de que o empreendimento não gere lucro ou o gere em quantidade menor do que a esperada pelo dono do negócio.

afeta a validade do negócio, uma vez que todos os elementos essenciais estão devidamente minudenciados no contrato ou acordo firmado.

Nessa sistemática de classificação, apenas o primeiro é alcançado pela vedação aqui tratada, porque está relacionado a elementos ou variáveis essenciais do negócio, cuja omissão coloca a parte em um estado de desconhecimento tão extremado sobre o empreendimento que torna o processo de decisão puramente especulativo. Segundo os autores, o gharar fahish pode se configurar (ISRA, 2012; BALALA, 2011) basicamente em três hipóteses:

(i) em caso de dúvidas quanto à capacidade da contraparte de cumprir com suas obrigações, entregando o objeto do negócio, seja porque não está na posse dele, seja porque ele ainda não existe no momento da celebração da avença;

(ii) em caso de inadequação ou falta de precisão de informações sobre o objeto em si, a exemplo da determinação de sua espécie, de suas características, de sua quantidade e qualidade, de sua data de entrega ou o retorno (em termos absolutos ou percentuais) previsto para aquele negócio, dentre outras;

(iii) diante da complexidade do próprio objeto do contrato, tal como ocorre com instrumentos financeiros sofisticados, cuja compreensão se revele difícil para qualquer das partes.

A rigor, a vedação ao gharar não toma por base referência explícita e direta do Corão. Contudo, a teoria islâmica vislumbra, em variados trechos do Livro Sagrado, uma restrição bastante ampla e contundente a toda e qualquer forma de negócio que leve à apropriação de bens e direitos alheios por meios considerados iníquos ou injustos.257 Entende-se que, por carrear incerteza capaz de turvar a compreensão da contraparte, o gharar constitui um subterfúgio para ludibriá-la, às custas de sua ignorância ou de sua boa-fé, razão pela qual é alcançado pela proibição genérica veiculada pelo Corão.

Por outro lado, os autores apontam diversas passagens da Suna nas quais o gharar é condenado. Com pequenas diferenças, todas as grandes compilações apresentam relatos de falas de Muhammad nas quais Ele teria repudiado de forma clara, direta e expressa a prática do gharar

257 Merece destaque a seguinte passagem do Corão (4:29): “Ó Vós que credes, não devoreis ilicitamente vossas riquezas [...]; realizai o comércio entre Vós, por mútuo consentimento”.

– pregando, por exemplo, que ninguém pode prometer a venda de algo que não possui, bem como exigindo que os negócios se operem por meio da tradição, isto é, nas quais a entrega do bem ou produto comercializado seja feita da mão do vendedor para a mão do comprador (SALEH, 1986; VOGEL E HAYES, 1998).

Em face de tanto, há consenso entre os autores quanto à convicção de que a razão maior por trás da proibição ao gharar é, ao fim e ao cabo, prevenir desavenças e litígios entre os muçulmanos, atuando de modo a evitar perdas causadas por ação ilegítima de qualquer das partes envolvidas no negócio (SALEH, 1986). Entende-se que, proibindo o gharar, fecham-se importantes brechas que poderiam dar ensejo a fraudes à exploração da boa-fé alheia.

Na prática, essa vedação traz para as finanças islâmicas algumas importantes restrições, que podem ser resumidas em três pontos:

(i) o bem negociado deverá existir no momento do contrato – o que, para muitos autores, inibe a celebração de contratos futuros (MARTINS, 2004);

(ii) o bem deve estar na posse do vendedor, não se considerado válidos os negócios que tomem por base as coisas cujo domínio não esteja sob a titularidade daquele; e (iii) o retorno do negócio deve ser devidamente especificado e pré-determinado – na forma

de percentual sobre os lucros do negócio ou de valor fixo pelo aluguel da coisa –, a fim de que não paire qualquer dúvida acerca do quanto deve caber a cada parte envolvida na empreitada.

Caso qualquer desses preceitos não seja observado, configura-se o gharar fahish e o negócio é considerado nulo de pleno direito.

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