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ENTRE O PERMITIDO (HALAL) E O PROIBIDO (HARAM): A ADMINISTRAÇÃO

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

2.6 ENTRE O PERMITIDO (HALAL) E O PROIBIDO (HARAM): A ADMINISTRAÇÃO

As linhas anteriores deste capítulo evidenciam que os processos de interpretação e aplicação da Shari’ah estão muito longe de serem considerados como simples, notadamente quando o que se busca é extrair o fiqh, isto é, o conjunto de regras aplicáveis às situações práticas e às controvérsias vivenciadas pelos muçulmanos em seu cotidiano. Aos olhos ocidentais, costuma soar especialmente crítico (e até virtualmente infrutífero) o esforço hermenêutico voltado para se aplicar textos estáticos, concebidos ou compilados há muitos séculos, a atos ou fatos atuais, como por exemplo as operações com cartão de crédito feitas pelos muçulmanos.

Todavia, como se expôs até aqui, o pensamento islâmico tratou de conceber um robusto arcabouço teórico-metodológico justamente para fazer frente a esses desafios. Consubstanciadas em diferentes vertentes do usul al-fiqh, as formulações dos grandes estudiosos da religião e da lei islâmica tem por fito oferecer aos muçulmanos as bases ou referências normativas para que, a despeito do passar dos séculos e de tantas mudanças, os crentes encontrem soluções ou respostas

para suas dúvidas quanto à melhor aplicação da Shari’ah. Em outros termos, busca-se prover meios para que eles possam conhecer ou inferir, dentre as alternativas conhecidas, aquela que melhor se coaduna com o sistema doutrinal do Islã, a despeito da imutabilidade dos seus textos.

O problema é que, comumente, não há uma, talvez nem apenas duas, mas várias interpretações possíveis para temas ou tópicos da Shari’ah, dando origem assim a variadas respostas, soluções ou alternativas possíveis de serem adotadas diante de situações concretas. Isso decorre especialmente do fato de há pelo menos cinco grandes escolas jurídicas islâmicas, cada qual com suas próprias concepções sobre a classificação e a aceitação das fontes e, também, sobre aspectos substantivos da lei islâmica. Embora existam muitos pontos de convergência e até de consenso entre os estudiosos de várias escolas, é inegável que há outros tantos aspectos divergentes – e que, inclusive, justificam a existência de escolas separadas.

Diante dessas divergências, uma questão importante então se coloca: como o muçulmano afere a conformidade de sua conduta às prescrições da religião diante dessa diversidade de escolas e interpretações? Ou seja, se há tantas escolas jurídicas, e se, como se expôs anteriormente, nem mesmo entre os seguidores de uma mesma escola há garantia de plena concordância, como saber de determinado ato ou contrato está ou não de acordo com a Shari’ah? Um olhar mais detido sobre a teoria jurídica islâmica oferece bases consistentes para as respostas a serem dadas essas perguntas.

Inicialmente, é digno de nota que, tanto os líderes e estudiosos da religião quanto os juristas que se lançam ao esforço de reflexão e derivação do fiqh veem com naturalidade o fenômeno da divergência de interpretação da lei islâmica. É comum, inclusive, fazer menção ao pluralismo da

Shari’ah (HALLAQ, 2005; HAGAZY, 2005; SCHACHT, 1982), sustentando-se que ela é marcada

pela “diversidade na unidade” (COULSON, 1978; KAMALI, 2008). No Islã, esse fenômeno da diferença de opiniões é não apenas reconhecido como também devidamente nominado e estudado: trata-se do instituto ou princípio do ikhtilaf.165

Segundo os estudiosos, não é qualquer diferença de opinião, tampouco a interpretação pessoal de cada muçulmano, baseada em um juízo individual e casuístico, que autoriza ou valida uma suposta solução ou regra a ser aplicada a um caso concreto. De acordo com a teoria jurídica

165 Em sentido literal, ikhtilaf poderia ser traduzido como “divergência”. Em seu sentido mais técnico, designa a existência de diferentes opiniões de estudiosos sobre a aplicação da Shari’ah a casos concretos.

islâmica, o princípio do ikhtilaf está subordinado a um princípio ou preceito maior, qual seja, o da unicidade de Deus (tawhid) – o qual, como já se estudou, constitui a base de toda a dogmática teológica islâmica. Desse modo, se é certo que há um só Deus, então só pode haver um Islã, uma escritura e, portanto, uma única Shari’ah (KAMALI, 2008).

A articulação teórica entre ikhtilaf e a tawhid se dá então por meio da limitação dos temas sobre os quais se admite a divergência e, ainda, por meio do estabelecimento de algumas condições mínimas de validade. Em primeiro lugar, não se admitem divergências acerca dos temas tido como centrais da fé islâmica: os pilares da fé e os deveres do crente para com Deus e a religião, por exemplo, não estão abertos à discussão ou ao debate. Assim, o ikhtilaf, em princípio, é aceito apenas sobre os assuntos mais propriamente jurídicos.

Observada essa regra fundamental, tem-se como necessário ainda que as posições ou opiniões em conflito sobre um tema não vedado ao ikhtilaf observem duas condições essenciais: (i) que estejam baseadas em fontes, evidências ou provas da legitimidade ou validade – como a indicação de consenso (ijma) já externado sobre o tema ou de um hadith que sustentaria a posição defendida pela parte; e (ii) que nenhuma delas seja considerada irreal ou flagrantemente contrária aos preceitos ou ao espírito da Shari’ah (AL-ALWANI, 1993; KAMALI, 2008).

Se o atendimento a ambas as condições não restar demonstrado de forma objetiva, considera-se que não se está, tecnicamente, diante de uma diferença de opinião, mas sim de uma mera discórdia, fundada na insurgência ou resistência de uma das partes a algo que lhe pareça contrário aos seus interesses.166 Por outro lado, se o ikhtilaf ficar efetivamente configurado, pelo atendimento a tais condições, qualquer das opiniões é considerada válida e, assim, plenamente respaldada na Shari’ah. Não obstante, muitos autores muçulmanos reconhecem como perfeitamente possível que se formem juízos de valor quanto às opiniões mais ou menos abalizadas, distinguindo assim as “mais fortes” das “mais fracas” acerca de cada tema, tanto em razão da autoridade ou reconhecimento de quem as emite, quanto em razão da própria natureza ou consistência da solução ou resposta encontrada (HALLAQ, 2009).

166 Afirma-se aí a diferença pontuada por vários autores, a exemplo dos já citados Al-Alwani (1993) e Kamali (2008), entre ikhtilaf e khilaf. O primeiro seria a divergência razoável ou a diferença de opinião baseada em um esforço intelectual sincero de elaboração. Já o segundo seria a divergência não-razoável, tida como mera discórdia e considerada como um esforço meramente retórico, sem objetividade e consistência, que não legitima a conduta do crente, podendo levá-lo, inclusive, ao estado de pecado, por importar descumprimento dos preceitos da Shari’ah.

Na prática, o que se observa é que o divisor de águas entre a diferença de opiniões e a mera insurgência ou discórdia é determinado pelo grau de razoabilidade e de consistência da argumentação – que deve, assim, estar apoiada em elementos mínimos do usul al-fiqh. Nesse quadro, um personagem exerce há séculos uma crucial importância na administração desses dissensos no âmbito da comunidade: o mufti, que é o jurisconsulto a quem os muçulmanos costumeiramente recorrem quanto possuem dúvida ou quando se coloca alguma controvérsia a respeito da regra do fiqh efetivamente aplicável a determinado ato ou fato.

O mufti é um grande especialista nos assuntos da religião e da lei islâmica. Não é um agente estatal, mas um jurisconsulto privado. Sua autoridade não decorre de qualquer investidura formal, nem depende de qualquer procedimento de habilitação ou licenciamento, mas sim do reconhecimento que goza na comunidade por sua erudição, sua capacidade de oferecer soluções consistentes para os problemas que lhe são apresentados e por suas contribuições para o desenvolvimento teórico dos assuntos relacionados à religião (HALLAQ, 2009; KESHAVJEE, 2013).

Em resposta às consultas formuladas,167 o mufti emite um parecer ou opinião, chamado de

fatwa. Trata-se de uma manifestação de cunho jurídico-religioso, semelhante a um parecer jurídico,

na qual o jurisconsulto responde às perguntas ou quesitos formulados pelos consulentes e declina seu entendimento acerca do caso concreto. Nele, o mufti indica, de maneira fundamentada, como a

Shari’ah deve ser aplicada ou, ainda, se determinado ato ou fato está de acordo com a lei islâmica.

Enquanto produto da atividade de alguém que goza de grande respeito na comunidade, o fatwa tem uma relevância muito grande para os muçulmanos. A ele se atribui, inclusive, grande crédito pelo desenvolvimento do próprio fiqh, sobretudo em seus primórdios (COUSON, 1978; HALLAQ, 2009).

Tamanha importância se deve ao fato de que, embora não tenha origem ou legitimação divina, nem seja considerado vinculante (mesmo para a parte que solicita a manifestação), um

fatwa, em geral, é considerado uma das mais lídimas expressões da reflexão humana acerca da

aplicação da Shari’ah a casos concretos, por ser fruto da erudição dos jurisconsultos. Seu prestígio e sua autoridade são tão grandes que, não raro, costumam dar ensejo ao encerramento de muitas

167 Embora essas consultas podem ser formuladas individualmente, Keshavjee (2013), dentre outros, destaca que são mais frequentes as consultas formuladas por ambas as partes envolvidas em uma controvérsia.

controvérsias, antes mesmo que se transformem em disputas institucionalizadas, seja perante os

qadi (juízes), seja perante cortes seculares.168

Além disso, os fatwa são muito utilizados ou até solicitados pelos próprios qadi, em seu processo decisório,169 a fim de auxiliar na formação de sua convicção nos casos que lhe são postos.170 Os fatwas mais importantes costumam ser compilados na forma de livros ou coletâneas temáticas, de modo a servir de guia ou orientação para casos futuros que guardem alguma semelhança com aqueles já enfrentados.171 Assim, essas manifestações possuem grande repercussão e grande valor social, doutrinário e jurisprudencial (GLENN, 2007).

Nada disso, no entanto, elide a possibilidade de que, sobre um mesmo tema ou caso específico, sejam proferidos dois ou mais fatwas, em sentidos diversos ou até mesmo diametralmente opostos – no caso de um banco, por exemplo, um deles considerando determinada operação como proibida e outro atestando sua conformidade à Shari’ah. Isso, mais uma vez, costuma ter origem nas diferentes concepções esposadas pelas diferentes escolas jurídicas – embora, como já se expôs, seja possível conceber divergências pontuais mesmo dentro de cada escola.

Para evitar ou minimizar esse problema, os muçulmanos tomam como referência ou dão preferência às orientações de uma ou outra madhhab. A teoria jurídica islâmica permite que os muçulmanos se filiem ou se alinhem livremente a qualquer das escolas conhecidas. Dentro do princípio do ikhtilaf, se o crente pauta sua conduta pelas opiniões dos jurisconsultos de uma escola, aquele ato ou fato específico, ainda que sujeito a juízos jurídicos diferentes de outras escolas, é

168 Com alguma frequência, as partes que recebem um fatwa em sentido contrário aos seus interesses desistem de disputas e se ajustam aos termos, condições ou preceitos constantes da opinião externada pelo mufti ou, ao menos, buscam alguma forma de mediação (KESHAVJEE, 2013). É preciso anotar, contudo, que nada impede que, irresignada, a parte solicite a um outro mufti que profira outro fatwa, sobre a mesma questão.

169 O processo decisório do qadi é bastante singular, não tendo um caréter adversarial. Embora as partes obviamente tenham interesses e visões diferentes, elas estão obrigadas a servir a Deus levando ao qadi as circunstâncias do caso e os princípios da Shari’a que entendem que são aplicáveis à situação em exame (GLENN, 2007). Atuam elas, portanto, como parceiras do Juízo, instruindo o feito de modo a possibilitar ao qadi conhecer os fatos e aplicar o direito. Há grande ênfase à prova testemunhal e quase nenhuma relevância para as provas escritas – afinal, o muçulmano que prestar falso testemunho sabe que deverá acertar suas contas com Deus.

170 Diante do caráter diferenciado do processo decisório do qadi, o fatwa acaba funcionando como fonte da fundamentação (ou da ratio decidendi) para as decisões. De acordo com Hallaq (2009), são raros os casos em que um juiz ignora a manifestação de um mufti e dá preferência às suas próprias razões.

171 Um bom exemplo de coletânea temática de fatwas é o da Academia Internacional de Pesquisa Shari’ah em Finanças Islâmicas, disponível em: <http://ifikr.isra.my/web/guest/fatwa>. Acesso em: 5 set. 2015.

considerado em princípio válido. É usual, assim, que os muçulmanos submetam suas dúvidas e controvérsias aos jurisconsultos que atuam em determinadas mesquitas ou círculos acadêmicos.

Contudo, a mesma teoria islâmica também permite que os muçulmanos mudem de escola, sem maiores formalidades, ainda que essa mudança implique a migração de uma linha de pensamento de orientação sunita para outra, de orientação xiita, e vice-versa. É possível, ainda, que o muçulmano não adote oficialmente esta ou aquela escola, e, a partir de várias consultas, siga a interpretação que lhe pareça mais favorável. Há, inclusive, um instituto próprio concebido para validar isso, conhecido como takhayyur.172 De acordo com os estudiosos, o muçulmano pode escolher adotar, dentre as várias interpretações possíveis da lei islâmica dadas pelos seguidores de uma mesma escola, aquela que é considerada mais adequada (COULSON, 1978; KAMALI, 2008). Esse procedimento é reconhecido há muitos séculos pelas principais escolas como aceito pela

Shari’ah, já tendo sido muito usado por países de origem muçulmana na concepção e na reforma

de suas leis seculares, sobretudo em temas como estatuto pessoal, que culminaram com a elaboração de normas sob a influência de posições específicas adotadas em determinada escola (KAMALI, 2008).

Há, ainda, um outro instituto ou procedimento, denominado talfiq,173 segundo o qual o

jurista poderia combinar as posições ou os fatwa de uma escola jurídica com os de outras escolas jurídicas (COULSON, 1978; KRAWIETZ, 2002). Considerado por alguns como uma variação do

takhayyur, o talfiq é, no entanto, objeto de grande controvérsia, sendo rechaçado por boa parte das

principais escolas, que não reconhecem sua validade. O principal argumento de seus opositores é que seu resultado, via de regra, consiste na combinação de duas ou mais posições aceitas por suas respectivas escolas de origem, que geram uma orientação que, no final das contas, acaba não sendo aceita por qualquer das escolas cujas posições foram combinadas (KRAWIETZ, 2002).

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