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Base jusfilosófica: a teoria dos objetivos da lei islâmica (maqasid al-Shari’ah) e

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.4 A “ÉTICA ECONÔMICA” DO ISLÃ

3.4.1 Base jusfilosófica: a teoria dos objetivos da lei islâmica (maqasid al-Shari’ah) e

Como já exposto no capítulo anterior, desde os primórdios do Islã (marcadamente desde a morte de Muhammad) os estudiosos se debruçam sobre os textos do Corão e da Suna com o objetivo de compreender o sentido de suas prescrições. Ocorre que, além da teoria clássica do usul

al-fiqh – que trouxe um importante suporte metodológico para se chegar a comandos práticos sobre

202 Esse movimento, é preciso dizer, não foi unânime: Rodinson (1966) relata que uma parte da comunidade muçulmana, inclusive de clérigos, era mais receptiva ou tolerante com as práticas financeiras ocidentais. Há, inclusive, registros da alguns fatwa do início do século que buscavam validar religiosamente essas operações, propondo formas ou subterfúgios com o objetivo de minimizar seu contraste com os preceitos da Shari’ah.

os mais diversos temas do cotidiano –, os estudiosos muçulmanos desenvolveram, ao longo dos séculos, importantes formulações com o intuito de compreender também as bases axiológicas ou valorativas da lei islâmica. Com isso, esperavam não apenas derivar e especificar as regras do fiqh, como também investigar sua dimensão valorativa, encontrando explicações para suas prescrições.

Por meio de reflexões de natureza filosófica, os estudiosos buscavam compreender, por exemplo, porque a Shari’ah prescreve a necessidade de tantas orações ao longo do dia; porque institui a caridade obrigatória (zakat); porque proíbe a cobrança de juros, a especulação e a aposta; ou, ainda, porque certos crimes, como o estupro, devem ser punidos com a pena de morte, enquanto outros podem ser objeto de perdão pelo ofendido ou por sua família.

A busca de tantas explicações deu origem a um campo específico do pensamento muçulmano, cujas contribuições se materializaram na teoria denominada maqasid al-Shari’ah – que se poderia traduzir como “objetivos (ou finalidades) da Shari’ah”.203 Trata-se, na verdade, de um arcabouço teórico-filosófico desenvolvido com o fito de identificar a racionalidade, a justificativa, ou, ainda, a “sabedoria por trás das regras” da lei islâmica (AUDA, 2007, p. 5).

Embora tome por base as prescrições do Corão e da Suna, a teoria do maqasid al-Shari’ah não as aborda sob o prisma puramente textual ou linguístico, dentro da linha tradicional da metodologia proposta pelo usul al-fiqh.204 O fim último buscado por seus autores não é precisar o que a lei islâmica prescreve sobre determinado assunto, mas sim explicar porque e com que finalidade o faz. O que se busca, por conseguinte, é extrair a filosofia geral e a teleologia das passagens dos livros sagrados (KAMALI, 2008, p. 18), de modo a identificar, ao final, o que justifica e a que propósitos servem aqueles comandos normativos. Ao fim e ao cabo, o que se tem é uma verdadeira filosofia jurídica islâmica.

Em se tratando de um campo teórico bastante fértil e aberto, é possível encontrar diferentes construções ou formas de classificação dos objetivos dos quais estaria imbuída a Shari’ah (AUDA, 2007; KAMALI, 2008). No entanto, é unânime entre os autores a convicção de que o objetivo fundamental ou precípuo da lei islâmica é o de promover o bem-estar (ou bem comum) da raça

203 Em árabe, a palavra maqasid é a forma plural de maqsid, que pode ser traduzida como propósito, objetivo, intenção ou fim (AUDA, 2007, p. 2).

204 Para alguns autores, a maqasid al-Shari’ah é um componente ou ramo específico da teoria do usul al-fiqh. Autores mais recentes, contudo, sustentam que, por seu grande desenvolvimento teórico, experimentado sobretudo a partir do século XX, a maqasid al-Shari’ah se afirma hoje como um campo distinto do pensamento islâmico, que fornece uma abordagem filosófica para uma compreensão mais aprofundada do Islã e de seu sistema doutrinal em geral (AUDA, 2007, p. 5).

humana (CHAPRA, 1979). Essa conclusão, há muito consolidada na obra de diversos pensadores muçulmanos, toma por base passagens do Corão e da Suna nas quais se sustenta que Deus enviou o ser humano ao mundo para que ele fosse feliz,205 prescrevendo-lhe as regras de conduta apenas para sua retidão e não para lhe causar qualquer sacrifício.206 Sob esse prisma, o Islã e seu sistema doutrinal teriam sido concebidos para ser uma benção para a humanidade (CHAPRA, 1979), orientando-a no sentido da felicidade e da realização.207

É preciso observar, outrossim, que, na filosofia islâmica, o conceito de bem-estar apresenta contornos bastantes específicos, que podem ser condensados em três pontos-chave:

(i) o bem-estar não constitui um fim em si mesmo. Não há, portanto, um enfoque hedonista da questão. Ele é o objetivo geral da lei islâmica porque é visto uma condição para a felicidade do ser humano. Está associado ao conceito de falah – que, em sentido literal poderia ser traduzido como sucesso, realização ou felicidade, mas, que, na filosofia islâmica, é empregado para designar um estágio de felicidade ou realização plena;

(ii) o bem-estar não deve ser tomado ou avaliado apenas na vida terrena, mas também naquela que terá lugar após a morte. O falah é um conceito complexo, cuja concretização requer a satisfação de necessidades materiais e o desenvolvimento espiritual, concomitantemente (BAROM, 2013, p. 66). Matéria e espírito, assim, constituem um mesmo todo indivisível da vida humana. Destarte, ele não é função apenas de posses ou de possibilidades de consumo, isto é, de riquezas mundanas, mas sim de um nível adequado e equilibrado de satisfação das necessidades materiais e espirituais; e

(iii) o bem-estar preconizado pela filosofia islâmica congrega duas dimensões: a individual e a coletiva ou social. Ambas devem ser articuladas de modo a se manterem em equilíbrio. Se, por um lado, isso impõe limites morais às ações individuais em

205 A passagem mais citada para ilustrar isso é a que está no Corão (21:107): “E não te enviamos senão como misericórdia para a humanidade”.

206 Uma evidente demonstração disso, para os estudiosos, estaria no seguinte trecho do Corão (5:6): “[...] Allah vos deseja a comodidade e não a dificuldade”.

207 “Ó humanos, já vos chegou uma exortação do vosso Senhor, a qual é um bálsamo para a enfermidade que há em vossos corações, e é orientação e misericórdia para os crentes” (Corão, 10:57)

busca da satisfação de interesses,208 por outro evita a supremacia apriorística do interesse coletivo sobre a felicidade de cada muçulmano.209

À vista desse conceito complexo de bem-estar, a vertente teórica clássica da maqasid al-

Shari’ah preconiza que a lei islâmica se justifica e se orienta filosoficamente pela busca do

atendimento a diferentes níveis de demandas humanas. Proposta e articulada por dois grandes pensadores, Muhammad Al-Ghazali e Ibrahim Al-Shatibi, essa formulação preconiza, mais exatamente, a existência de três níveis de demandas, concebidas em ordem decrescente de importância, a partir das quais se justificariam as prescrições da lei islâmica (ZARQA, 1980; AUDA, 2007; KAMALI, 2008). São elas: as necessidades (daruriyyat); as conveniências (hajiyyat); e os refinamentos ou caprichos (tahsiniyyat).

Segundo essa formulação clássica, o primeiro grupo, das necessidades, compreende os requisitos ou elementos considerados mínimos para o bem-estar de qualquer ser humano e, portanto, são tidos como imprescindíveis para a normalidade ou a paz em qualquer sociedade (KAMALI, 2008). Para os estudiosos, qualquer abalo ou comprometimento das necessidades comprometeria o bem-estar individual dos seres humanos e tende a colocar uns contra os outros, pondo em risco a ordem social (AUDA, 2007). Isso então justifica as diversas passagens do Corão e da Suna relacionadas à fé, à vida e à propriedade, dentre outras.

O segundo grupo, das conveniências, alberga as demandas que não são consideradas vitais para o ser humano, mas proporcionam comodidades, facilidades e utilidades, ou, ainda, contribuem para o alívio ou a superação de dificuldades por parte do muçulmano (ZARQA, 1980). De acordo com a teoria islâmica, as prescrições da Shari’ah nesse plano estariam voltadas a tornar mais fácil (ou menos difícil) a vida dos muçulmanos, o que justificaria a existência de regras especiais sobre

208 Uma importante advertência nesse sentido é feita pelos estudiosos a partir de uma passagem do próprio Corão (26:183): “Não diminuais os bens das pessoas”. Para Chapra (1979, p. 14), trata-se de uma clara alusão à necessidade de que os muçulmanos devem buscar o que é seu por direito apenas, abstendo-se de agir no sentido de tomar ou macular o que é de direito de outro muçulmano.

209 No esteio do que já se expôs na seção 2.2.6, uma das características mais importantes da Shari’ah é justamente a busca do equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos, o que, por certo, repercute de forma determinante sobre o próprio conceito de bem-estar.

tema como casamento,210 divórcio211 e, também, comércio,212 evitando, assim, um engessamento desnecessário da vida humana.

Por fim, o terceiro grupo trata dos refinamentos ou caprichos, e encerra as demandas que não são nem vitais nem tão relevantes para a introdução de facilidades aos homens, mas que, ainda assim, podem e devem ser satisfeitas para lhe proporcionar o bem-estar. Elas abarcam demandas associadas ao acréscimo de qualidade, ao aformoseamento ou ao aperfeiçoamento da vida humana. Seria isso, por exemplo, que justificaria as prescrições da Shari’ah relativas à higiene corporal, à etiqueta à cordialidade no trato com os demais muçulmanos; à restrição ao consumo de certos alimentos crus, como o alho; mas também à prática da caridade além do pagamento do zakat (ZARQA, 1980).

Toda essa formulação da maqasid al-Shari’ah consubstancia o que alguns autores chamam de “arquitetura de bem-estar socioeconômico” do pensamento islâmico (ISRA, 2012),213 que tem se baseia em cinco elementos, usualmente apontados como os pilares do conceito de bem-estar: (i) a religião; (ii) a vida; (iii) a mente ou intelecto; (iv) a descendência ou linhagem; e (v) a riqueza ou a propriedade.214 Essas, portanto, são as necessidades cuja satisfação é essencial ao fim último da

Shari’ah, o falah, e que, nessa condição, justificam filosoficamente não apenas as prescrições da

210 Visto sob essa ótica, o casamento, embora seja um instituto importante, sobretudo por sua condição de apoio para a constituição da família, não é considerado como algo absolutamente essencial ao bem-estar do ser humano. Nesse sentido, Auda (2007) pontua que a vida humana não ficará em perigo se a pessoa não casar, embora, por outro lado, se reconheça que o casamento pode ser fonte de felicidade para os seres humanos.

211 A admissão do divórcio é vista pelos autores como um dos exemplos típicos de prescrições da Shari’ah voltados a remover obstáculos importantes ao bem-estar humano. Segundo a teoria islâmica, a admissão de hipóteses excepcionais de dissolução do casamento se justifica diante da necessidade de evitar que marido e mulher sejam obrigados a uma convivência insurportável, que poderia levá-los a um estado de intolerância e violência mútuos, colocando em perigo o seu bem-estar.

212 Um exemplo importante em relação ao comércio, apontado por Kamali (2008), é a admissão de várias figuras contratuais além da simples compra e venda. Embora toda a lógica do Corão esteja voltada para evitar a especulação, exigindo que os negócios se dêem preferencialmente por meio da tradição de ativos já existentes e sobre os quais o vendedor tenha a propriedade, a admissão de exceções pontuais (como a da compra a pagamento futuro) se justificaria, segundo o autor, em termos da necessidade de permitir o atendimento de necessidades específicas e plausíveis dos seres humanos.

213 Recorrendo a uma interessante metáfora, há quem sustente que essa formulação se assemelha à estrutura de um prédio de vários andares, dentro da qual as necessidades seriam a estrutura de alvenaria; as conveniências seriam as estruturas hidráulica e elétrica e os sistemas de refrigeração e aquecimento; e os refinamentos ou caprichos equivaleriam à pintura e à decoração (ISRA, 2012). Nessa metáfora, a existência da estrutura de alvenaria viabilizaria que se vivesse no prédio, mas a um custo de frustração e dificuldades grandes para o ser humano. Sob esse prisma é que se justificaria o fato de a Shari’ah não se limitar apenas à satisfação das necessidades, contendo também prescrições sobre os demais níveis de demandas humanas, a fim de assegurar o mais abrangente nível de bem-estar possível (ISRA, 2012).

214 Alguns juristas consideram ainda a existência de uma sexta necessidade essencial, relacionada à preservação da honra. A justificativa maior é a importância da excelência do caráter moral no Islã, e o especial valor que se dá ao reconhecimento dessa condição no âmbito da comunidade muçulmana.

lei islâmica, como também a atuação do Estado e de suas autoridades, sempre que isso for necessário para assegurar a sua preservação.215

Nesse modelo, a religião é o primeiro e mais importante dos cinco pilares porque é por meio de seu sistema doutrinal que se estabelece a imagem de mundo do Islã, delineando, a partir do dogma da unicidade divina, os valores que conformarão a conduta dos muçulmanos em todas as suas sendas e, assim, o próprio conceito de bem-estar. É isso que justifica a natureza multidisciplinar da Shari’ah, que reúne uma mistura de normas religiosas, morais e jurídicas.

O segundo pilar, a vida, é a condição física ou material necessária para que o homem possa aproveitar tudo o que Deus colocou no mundo. Por isso, a vida humana deve ser preservada a todo custo, de tal modo que a nenhum muçulmano é dado o direito de atentar contra a vida de seu semelhante, até porque todos são iguais obras da criação de Deus. Um aspecto importante, contudo, é que, na teoria da maqasid, o conceito de vida, enquanto requisito essencial para o bem-estar, não se restringe à mera existência ou sobrevivência; engloba, mais propriamente, o direito a uma vida digna, o que passa pela garantia de condições materiais mínimas, tanto na esfera da saúde física e mental, quanto na esfera econômica. Isso, segundo os estudiosos, justifica a existência do direito, assegurado a todo muçulmano, de ter acesso a uma fonte de renda que lhe satisfaça as necessidades materiais mínimas (ISRA, 2012). Além disso, justifica a exigência da caridade obrigatória, sempre que, por algum motivo, o acesso à renda mínima por parte de algum muçulmano não se puder concretizar.

Por sua vez, o terceiro pilar, relacionado à mente ou ao intelecto, é considerado uma necessidade essencial do ser humano porque, segundo se entende, é por meio do recurso à inteligência e ao raciocínio que o homem tem condições de produzir e gerenciar os bens ou meios necessários para a prover seu próprio bem-estar.216 Não obstante, o conceito de mente ou intelecto aqui também é bastante abrangente, e compreende inclusive o direito de todo muçulmano de ter acesso à educação, a fim de que lhe sejam providos níveis adequados de instrução. O que busca a

Shari’ah, nesse âmbito, é criar meios para a formação de indivíduos socialmente responsáveis e

215 Ao destacar a centralidade desses elementos, Al-Ghazali (1937, apud CHAPRA, 1992, p. 15) sustenta que “tudo o que assegurar a proteção desses cinco componentes serve ao interesse da coletividade e é desejável, e tudo o que maculá-los é contrário ao interesse da coletividade, sendo desejável a sua eliminação”

216 Nesse contexto é que se justificaria, por exemplo, a proibição do consumo de álcool, que afeta, ainda que transitoriamente, as faculdades mentais, prejudicando o discernimento do ser humano e compromete sua capacidade de tomar decisões.

economicamente produtivos (ISRA, 2012), que sejam capazes de atuar no sentido de seu próprio bem-estar e do de sua comunidade.

O quarto pilar do bem-estar, a descendência ou linhagem, afirma-se como a condição necessária para que a satisfação das necessidades humanas seja permanente. Na perspectiva da filosofia islâmica, a previsão da descendência como necessidade essencial introduz um conceito de bem-estar intergeracional. Assim, é tida como justificativa, por exemplo, para as previsões da

Shari’ah sobre as relações familiares, tanto no tocante às regras de respeito mútuo entre seus

membros, quanto em matéria de patrimônio e de herança, evitando que as riquezas se percam ou que deem ensejo a disputas (ISRA, 2012).

Por fim, o quinto, mas não menos importante pilar, diz respeito à riqueza ou à propriedade. Ela é consagrada como uma necessidade essencial ao bem-estar humano porque, na filosofia islâmica, os bens materiais são vistos como instrumentos imprescindíveis para que o ser humano tenha condições de prover sua subsistência e satisfazer outras aspirações suas. Desse modo, a falta de meios materiais mínimos, ou do acesso aos fatores de produção, tende a colocar em risco a vida humana, na medida em que a busca da satisfação dessas necessidades pode ensejar disputas entre os membros da comunidade (AUDA, 2007).

É importante frisar, contudo, que, no pensamento muçulmano, a riqueza ou propriedade tem um caráter meramente instrumental. Ela não é um fim em si mesmo, mas um meio de propiciar o alcance do falah aos muçulmanos e, assim, não pode ser obtida a qualquer custo, nem ser objeto de adoração ou ostentação, tampouco de desperdício. Ao mesmo tempo em que isso justifica diversas prescrições da Shari’ah que protegem o direito de propriedade, também justificam filosoficamente a proibição da usura, da exploração da fragilidade ou da necessidade alheia e da fraude, que são tidas como meios ilícitos de se auferir ou aumentar riquezas.

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