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1 ISLÃ, UM MODO DE VIDA: HISTÓRIA E DOUTRINA

1.2 ORIGENS E EVOLUÇÃO

1.2.4 A dominação otomana e o pré-reformismo islâmico

No século XV, as terras do antigo império mudaram de mãos. Avançando a partir da parte oriental do Mediterrâneo, os otomanos, que pertenciam a uma dinastia muçulmana de origem

60 Essa unidade religiosa, contudo, não era absoluta, mas relativa. Nesse sentido, Mantran (1977, p. 164), por exemplo, registra que “os muçulmanos, por mais que dirigissem suas preces a um mesmo Deus e lessem o mesmo Corão, divergiam quanto à interpretação religiosa”.

61 Analisando esse período, Bíssio (2013, p. 170) pontua que “os alicerces dessa identidade [muçulmana] já não estão mais na unidade política, que pertence ao passado. Se dependesse dela para sobreviver, o Islã estaria ameaçado. Mas se essa identidade de funda na cultura, na língua e no espaço da ummah, esse sim unido em torno da fé comum, o risco de perder a identidade estaria superado”.

62 Em uma síntese bem-feita, Bernard Lewis registra que, naquela época, o Islã se afigurava “a maior potência militar do mundo - seus exércitos estavam ao mesmo tempo Europa e África, Índia e China. Era a potência econômica mais importante do mundo e que tinha alcançado o nível mais alto até agora na história da humanidade nas artes e nas ciências da civilização” (LEWIS, 2001, p. 46).

turca,63 após dominarem a Ásia Ocidental e a Europa Oriental, tomaram Constantinopla em 1453, transformando-a na capital de seu império, Istambul. Com isso, os territórios que outrora integravam o império islâmico, como a península arábica e o norte da África, passaram ao jugo do grande Império Otomano.

Mesmo dominando terras com tradições políticas, grupos étnicos e comunidades religiosas muito diferentes, o novo império muito contribuiu para a preservação e a expansão da ummah. Em razão de sua origem, os sultões otomanos se colocavam como defensores das fronteiras do Islã e como verdadeiros guardiões dos lugares sagrados, bem como das tradições e da cultura muçulmanas. Assim, a Shari’ah foi alçada à condição de lei do império e, para garantir sua correta aplicação, os otomanos prestigiaram instituições tradicionais do Islã: constituíram um corpo oficial de sábios (ulemas); nomearam juízes (os qadis) para resolver as disputas nas diferentes regiões, com amplo espectro de atuação, de temas políticos a assuntos de família, como herança; e escolheram sábios para atuar como jurisconsultos (muftis), com competência para emitir opinião (fatwa) acerca da melhor interpretação ou aplicação a ser dada à Shari’ah (HOURANI, 2013). O Império Otomano, assim, se apresentava como o novo mundo do Islã, e seu poder se manteve praticamente absoluto até o final do século XVIII.

Naquele momento, o Islã iniciaria uma fase reformista, que envolveria a discussão de sua própria identidade. A submissão do Islã a um outro Império e o sentimento de declínio político, econômico, intelectual e moral, bem como as graves crises sociais vivenciadas em diversas partes do território otomano de maioria muçulmana criaram um cenário fértil para um novo acirramento da tensão entre as duas grandes correntes da comunidade, o sufismo e a ortodoxia islâmica, que já datava do século VIII.

O sufismo é uma corrente mística do Islã desenvolvida no século VIII, em reação a um alegado materialismo que teria se disseminado entre os fiéis por ocasião da forte expansão do império em seu primeiro centenário de existência. Para os sufistas, essas riquezas e conquistas afastavam os muçulmanos do verdadeiro Islã, tal como pregado e vivido por Muhammad. Eles valorizam os aspectos exotéricos da religião, dando ênfase à espiritualidade, aos ritos de adoração, à simplicidade e à humildade, em busca de uma maior aproximação com Deus (SILVA FILHO,

63 A dinastia otomana foi assim batizada em homenagem a Uthman, seu fundador, cujo nome em turco era grafado como Osman. Vem daí seu nome islâmico de Osmanli, transliterado como otomano (HOURANI, 2013).

2012).64 Em sua visão, a Shari’ah regula apenas os aspectos exteriores da conduta humana, sendo insuficiente para dar plena aplicação à vontade de Deus (HOLT, LAMBTON E LEWIS, 1970). Por outro lado, os muçulmanos ortodoxos defendiam (e ainda defendem) que o verdadeiro muçulmano deve seguir o Corão e a Suna, que são as verdadeiras fontes do Islã. Consideravam, assim, o sufismo estranho ou contrário aos preceitos da religião, condenando seus rituais e práticas (tidos como heréticos) e associando-o à flexibilização ou deturpação dos preceitos religiosos tradicionais.

Nisso residia então o dissenso entre ambas as correntes: para os ortodoxos, as agruras políticas do Islã se deviam à deterioração da sociedade muçulmana, causada sobretudo pela corrupção da religião promovida pelo domínio das ideias sufistas. Esse movimento inicial de rediscussão da identidade do Islã, que se operou a partir de então, é conhecido como pré- reformismo, e teve grande expressão de suas ideias em Muhammad Ibn Abd al-Wahhab, na região da atual Arábia Saudita. Tido como fortemente conservador e puritano, Wahhab criticava a maioria das escolas jurídicas e religiosas que haviam se desenvolvido e advogava uma purificação da fé, por meio da reafirmação do monoteísmo e do retorno à literalidade do Corão e da Suna, rejeitando o raciocínio analógico (qyias) como método de derivação da lei islâmica (RAHMAN, 1979).

O Wahabismo – como afinal ficou conhecida essa corrente pré-reformista específica – pregava que a Shari’ah é o retrato fiel da vontade de Deus. Seus adeptos sustentavam que o sufismo havia levado a abusos e a um inaceitável laxismo moral, afastando a comunidade de suas origens. Para eles, nisso estava a origem da decadência da sociedade muçulmana ao longo dos últimos séculos.65 Embora tenha sido sufocado no final do século XIX pelo então governador do Egito, por ordem do governo otomano, as ideias do wahabismo deixaram marcas indeléveis na comunidade muçulmana – sendo apontadas, mais tarde, como os embriões do fundamentalismo islâmico no século XX.

64 Essa ênfase na humildade, por sinal, está na própria origem da denominação dessa corrente do Islã. Em árabe, a palavra sufi é derivada de suf, que significa lã. Trata-se de uma referência ao tecido utilizado para confecção das roupas costumeiramente usadas pelos adeptos dessa corrente mística do Islã. Eles assim se vestiam para demonstrar seu protesto contra as sedas e cetins que eram usados pelos califas, pelos sultões e pelos nobres (SMITH, 1991).

65 Na realidade, as ideias de al-Wahhab não foram absolutamente inéditas. Vários autores destacam que suas reflexões foram inspiradas nos escritos de Taqi al-Din ibn Taymiyya, teólogo muçulmano que, no século XIII, vislumbrava na queda do califado de Bagdá diante dos mongóis um sinal da decadência da sociedade muçulmana e pregava um retorno às origens do Islã, por meio da interpretação literal do Corão.

O fato é que, a partir do século XIX, os territórios otomanos (e, por conseguinte, do próprio Islã) passaram a sofrer forte assédio por partes dos países europeus. Motivados pelo progresso econômico e técnico, e amparados em um crescente poderio militar, os países europeus promoveram ações de aproximação e, posteriormente, incursões militares nos países da África e do Oriente Médio. O estreitamento das relações econômicas entre os países europeus e os domínios otomanos tornou evidente o contraste entre a pujança econômica dos primeiros e as dificuldades e limitações dos segundos. Os territórios otomanos se abriram ao comércio e intensificaram suas relações com a Europa, e, na medida em que isso ocorria, cada vez mais os interesses estratégicos e econômicos europeus se afirmavam em domínios otomanos.

Ao longo do tempo, consolidou-se um movimento colonialista da região, permeado por seguidas invasões e ocupações dos territórios otomanos pelas nações europeias.66 Diante disso, autores como Miquel (1971) sustentam que a virada para o século XIX marcou uma reviravolta decisiva na história do Islã, porque a presença crescente dos europeus em seus territórios gerou um verdadeiro choque para os muçulmanos, em razão das profundas disparidades econômicas, técnicas e militares.67

Esse choque ensejou diversas reações por parte da comunidade muçulmana, afetando não apenas sua forma de organização política, jurídica e militar, como também o próprio pensamento religioso. No âmbito estatal, embora a cultura religiosa e jurídica do Islã tivesse sido inicialmente preservada, o Império Otomano se viu forçado a promover algumas reformas. No período conhecido como tanzimat, compreendido entre 1839 e 1876, o império promoveu uma completa reestruturação, com o objetivo de restaurar a força do governo, por meio da ampliação e da modernização das estruturas administrativas e militares (HOURANI, 2013). Era clara a influência da cultura e do modelo europeus de organização: com a reforma, por exemplo, abriu-se caminho para a secularização do direito, apregoando-se que os súditos deveriam viver sob leis derivadas de princípios da justiça, que lhes permitissem buscar livremente seus interesses econômicos (HOURANI, 2013).

66 Holt, Lambton e Lewis (1970) observam que, em praticamente todos os casos, as terras muçulmanas sofreram reveses políticos, econômicos e militares nas mãos do Ocidente, ficando, na prática, subjugadas às potências europeias, notadamente Reino Unido e França.

67 Segundo o autor, para o Islã, iniciou-se ali “o tempo das desorientações, dos exames de consciência, das interrogações acerca de seus destinos” (MIQUEL, 1971, p. 331).

As reformas, além de gerarem um crescente endividamento do governo otomano – fragilizando-o ainda mais perante os governos estrangeiros –, institucionalizaram um dualismo na sociedade muçulmana. Isso porque, a despeito de instituírem um novo sistema legal e jurisdicional, os otomanos não eliminaram as cortes eclesiásticas muçulmanas – e, portanto, não eliminaram a

Shari’ah enquanto fonte do direito. Tais reformas, assim, produziram uma divisão da sociedade

em geral (CLEVELAND E BUNTON, 2009), desencadeando reações também no pensamento religioso, que, atônito, buscava explicações para o que havia ocorrido.

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