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Como produzir: a visão sobre os fatores de produção e as formas de exploração da

2 SISTEMA JURÍDICO ISLÂMICO: A SHARI’AH, SUA ESTRUTURA E SEUS

3.4 A “ÉTICA ECONÔMICA” DO ISLÃ

3.4.4 Os problemas econômicos fundamentais na teoria econômica islâmica

3.4.4.2 Como produzir: a visão sobre os fatores de produção e as formas de exploração da

No tocante ao segundo problema econômico fundamental, as atenções se voltam para as concepções e considerações acerca da organização dos fatores de produção e da propriedade. A partir da articulação especialmente dos princípios fundamentais da tawhid, da khilafah e da

rububiyyah, a economia islâmica propõe que, como destinatário e administrador das coisas que

Deus colocou no mundo, o homem aplique seus conhecimentos e suas habilidades sobre as riquezas que há na Terra para lhes aperfeiçoar e fazer frutificar, provendo o seu sustento e, assim, satisfazendo seus desejos, a fim de alcançar o falah.

Nesse sentido, os economistas muçulmanos firmam posições teóricas importantes sobre as formas de exploração da atividade econômica e sobre o próprio acesso ao seu instrumento ou suporte material, qual seja, o conjunto de fatores de produção. Tais posições, naturalmente, são também fruto da concepção e da aplicação dos filtros morais consagrados nas fontes primárias da

Shari’ah.

Uma primeira especificidade do pensamento econômico islâmico nesse âmbito em particular é a centralidade da atuação da iniciativa privada. Exatamente por reconhecer a

224 Afirma-se aí a presença de um importante instituto ou conceito importante no pensamento islâmico, a hisbah, que consagra o dever do governante de agir para garantir que a conduta dos muçulmanos se ajuste aos preceitos da Shari’ah. Seu fundamento, para os muçulmanos está, dentre outros, no seguinte trecho do Corão (3:104): “E que surja de vós um grupo que recomende o bem, dite a retidão e proíba o ilícito. Este será (um grupo) bem-aventurado”.

importância do trabalho humano no aperfeiçoamento da obra de Deus e na busca de elementos para prover seu próprio sustento, a teoria econômica islâmica considera a empresa como o “centro da vida econômica” (ASUTAY, 2013, p. 62). Tal preceito marca uma diferença profunda em relação às teorias socialistas, na medida em que coloca o Estado como um agente absolutamente subsidiário, que, em regra, não deve atuar ou intervir diretamente na economia. A exploração direta de atividade econômica deve caber precipuamente aos agentes privados,225 devendo-lhe ser assegurada a liberdade necessária para que o façam com eficiência, desde que, por certo, obedecidos os filtros morais colocados pela Shari’ah. Ao Estado caberiam apenas algumas funções básicas, mas essenciais, voltadas à garantia da ordem, da estabilidade econômica e da concretização da justiça social.226

Outro aspecto marcante na teoria econômica islâmica – e que, por outro lado, a distingue bastante das teorias capitalistas clássicas – é que, em lugar dos quatro fatores tradicionalmente considerados – quais sejam, terra (ou recursos naturais), trabalho (ou recursos humanos), capital (ou recursos financeiros e materiais) e organização empresarial –a teoria islâmica considera apenas três. Para grande parte dos autores, capital e organização empresarial não podem ser considerados como fatores de produção separados (USMANI, 2002).

Na realidade, os autores muçulmanos promovem uma redefinição do próprio conceito de organização empresarial, que é usado no Islã em sentido bem mais amplo do que nas formulações econômicas clássicas para abranger os recursos materiais necessários à produção, consubstanciados no capital, como mera parte integrante sua. Objetivamente, portanto, o capital, para grande parte dos autores, não é um fator de produção distinto, mas sim o suporte material da organização empresarial (UZAIR, 1980).

Em termos filosófico-econômicos, essa relação de continência se explica, em primeiro lugar, pela visão do Islã acerca das fontes de riqueza: para o pensamento muçulmano, o capital é, ele próprio, um mero resultado da produção. Seria ele, portanto, um “meio de produção produzido” (UZAIR, 1980, p. 43). Em segundo lugar, isso se explica porque, embora admita que a riqueza

225 Uma evidência importante e bastante peculiar ao sistema financeiro dessa atuação residual do Estado, que é ressaltada por Usmani (2002) é que, na grande maioria dos casos, os bancos e demais instituições financeiras islâmicas não são criados ou mantidos pelos governos de seus países, mas sim pela iniciativa privada.

226 De forma mais analítica, Chapra (1980, p. 149-150) sustenta que as funções econômicas essenciais que caberiam ao Estado seriam basicamente seis, a saber: (i) erradicar a pobreza e criar condições para o pleno emprego e para altas taxas de crescimento; (ii) promover a estabilidade da moeda; (iii) manter a ordem; (iv) assegurar a justiça social e econômica; (v) promover a seguridade social e a distribuição equitativa de renda e riqueza; e (vi) cuidar das relação internacionais e assegurar a defesa nacional.

possa ser adquirida por meio de herança, de indenizações ou da valorização de bens anteriormente comprados, a economia islâmica considera que a fonte de riqueza ou renda por excelência é o trabalho.227

A fim de resguardar então os interesses daqueles que trabalham e se esforçam, o sistema doutrinal islâmico – e, por conseguinte, a teoria econômica dele derivada – é contrário a qualquer ganho que não envolva trabalho ou esforço humano (BEHISHTI E BAHONAR, 1990).228 Por isso, não se concebe o capital como algo isolado, mas necessariamente vinculado a uma atividade relacionada a uma organização empresarial.

É importante destacar, contudo, que nem toda ocupação ou atividade econômica humana atende a esse requisito. A partir dos filtros morais estabelecidos pela Shari’ah, autores como Behishti e Bahonar (1990, p. 439) propõem uma dicotomia entre o “trabalho verdadeiro” e o “trabalho falso”.

Segundo esses autores, no primeiro grupo estão contidas apenas as atividades úteis ou geradoras de valor. É preciso então que elas estejam a serviço da satisfação das necessidades humanas, de modo a tornar mais fácil e prazerosa a vida dos muçulmanos. Ao mesmo tempo em que estabelece uma relação necessária entre o conceito de trabalho e o alcance do falah, nos termos propostos pela teoria do maqasid al-Shari’ah, isso restringe o universo de “trabalho verdadeiro” à produção e à distribuição de bens e à oferta de serviços.

Por oposição, há os “trabalhos falsos”, categoria na qual estão incluídas todas as formas de ganho originárias de exploração ou expropriação por meios considerados ilegítimos. Isso abrange, portanto (KAHF, 1998, p. 245-246):

(i) as formas ilícitas de apropriação de bens de terceiros, como roubo, furto, saques, pilhagem, coerção ou fraude;

(ii) os negócios e trocas econômicas em geral que não contem com o expresso e mútuo consentimento das partes; e

227 Trata-se, aqui, por certo, do trabalho em sua acepção mais ampla, que abange também aquele empreendido na condição de empregador ou de gestor de seu próprio negócio.

228 A preguiça e o ócio são fortemente condenados no sistema doutrinal islâmico, ao argumento de que representam um perigo para o indivíduo e para a sociedade, não apenas porque importam em subaproveitamento do potencial produtivo, como também porque permite que alguns vivam às custas do trabalho dos outros (BEHISHTI E BAHONAR, 1990).

(iii) os negócios que envolvam ou estejam associados a objetos expressamente vedados pela Shari’ah como o mútuo feneratício; os jogos e as apostas; a corrupção; as bebidas alcoólicas; as drogas; prostituição etc.

O que se observa, especialmente no tocante ao rol de atividades cujo objeto é vedado, é uma forte preocupação com a forma como os ganhos e as riquezas são gerados na economia islâmica. Em linha com o conceito transindividual de falah, os filtros morais concebidos pela teoria islâmica, se por um lado em nada afetam a legitimidade do lucro como motivação para a ação econômica humana, por outro buscam claramente garantir que o sistema econômico prime pela retidão de suas fontes de ganhos e riquezas, evitando que o proveito econômico de uns se dê à custa de danos ou da restrição de direitos de outros (SIDDIQI, 1980). Busca-se, portanto, conformar relações de produção a partir dos valores morais consagrados pela religião.

Por fim, outro traço marcante do sistema econômico islâmico é a centralidade do tratamento dado à propriedade, sobretudo aquela que recai sobre os meios de produção. Por meio da articulação dos princípios da tawhid e da khilafah, a teoria islâmica – não apenas no campo econômico, mas também no jurídico – concebe basicamente três tipos de propriedade, a saber (BEHISHTI E BAHONAR, 1990):

(i) Propriedade absoluta – segundo prescrito no Corão, como já se expôs anteriormente, tudo o que há na Terra pertence a Deus. Ele é o único titular dos direitos de propriedade sobre tudo o que existe, e, portanto, somente Ele tem plena liberdade para dispor sobre os bens e riquezas em geral;

(ii) Propriedade pública – é aquela que é atribuída em caráter fiduciário à sociedade, que a exerce coletivamente por meio do Estado. Compreende tudo aquilo que deve beneficiar a toda a comunidade, e que, portanto, não pode ser objeto de monopólio ou de restrição de acesso. Estão aqui abrangidos todos os recursos naturais – estejam eles na terra, no mar ou no ar – e as redes de infraestrutura, como estradas, portos e aeroportos, que devem estar à disposição de toda a coletividade, a fim de criar iguais condições de sobrevivência e de desenvolvimento de projetos ou empreendimentos produtivos (KAHF, 1998); e

(iii) Propriedade privada – é aquela atribuída em caráter fiduciário a cada membro da sociedade, em caráter individual. Compreendem os bens sujeitos à fruição de cada

muçulmano, como casa, carro, terras, comércio e bens pessoais. Na teoria islâmica, o ser humano é visto como um mero trustee desses bens, visto que, em última instância, eles também pertencem a Deus, mas são confiados aos homens para que possam empregá-los em atividades produtivas e, assim, prover a satisfação de seus desejos. Uma implicação importante dessa visão é que, no sistema doutrinal islâmico, a propriedade é considerada um direito ou conjunto de direitos concedidos aos seres humanos por Deus e não pela sociedade ou pelo Poder Público. Nesse sentido, os direitos de propriedade são considerados como direitos naturais dados por Deus (KAHF, 1998, p. 245), que pode então perfeitamente lhes colocar limites para que seu uso se dê conforme a Sua vontade.

Em sintonia com a centralidade que dá à iniciativa privada, a Shari’ah confere grande proteção à propriedade privada. Isso, mais uma vez, se justifica em termos da necessidade de assegurar condições para que o homem possa agir no sentido de aprimorar e fazer frutificar as coisas que Deus colocou na Terra, produzindo o que precisa para atender aos seus desejos. Essa proteção recai sobre todos os fatores de produção e é instituída em face do próprio Estado e de suas autoridades, de modo a preservar a esfera patrimonial individual contra qualquer forma de confisco ou expropriação de bens pelo Poder Público.

De todo modo, assim como ocorre com a iniciativa, a propriedade privada também não é absoluta e está sujeita a filtros morais. Não pode, por exemplo, ser empregada a serviço da exploração ou subjugação de outros indivíduos (CHAPRA, 1980), tampouco ser empregada em atividades vedadas pela Shari’ah.

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