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2.1 A ECONOMIA DA REVELAÇÃO CRISTÃ DIANTE DO PLURALISMO RELIGIOSO HODIERNO

2.1.3 A única mediação de Cristo e o valor mediador das religiões

Em Geffré, a partir da economia do Logos encarnado, a única mediação de Cristo se realiza de forma kenótica em Jesus, sem se esgotar nele447, viabilizando uma conciliação desta

mediação com o valor mediador das religiões. A kênosis, segundo Kasper, é a condição de possibilidade para que o Logos possa revelar, na dinâmica da misericórdia, o dom salvífico à humanidade.448 Geffré não pretende dispensar a importância da mediação de Cristo, mas

aprofundar o sentido da única ação salvífica de Deus. Para o Papa Paulo VI, a fé explícita em Cristo, dentro da Igreja, é a via normativa e ordinária de salvação, embora Deus possa salvar por vias extraordinárias (EN 80). Geffré parte do princípio inclusivista de que as religiões são participações na plenitude do Logos, e, por isso, têm também um papel mediador como participação na mediação de Cristo, trazendo à tona aspectos inéditos da economia da salvação, não expressos pelo cristianismo histórico. Em referência ao mistério ontológico de Cristo449, Geffré vê as religiões como mediações derivadas de salvação.A palavra mediação,

em sentido estrito, convém apenas à mediação de Cristo. Por isso, fala-se de mediação derivada, pois as religiões, como quase-sacramentos da presença do mistério de Cristo, são simultaneamente sinais do dom de Deus e disposições existenciais para a acolhida desse dom. A mediação derivada das religiões não diminui em nada o valor e a importância da mediação de Cristo, antes, opera uma ampliação da mesma, dilatando os horizontes conceituais da atual soteriologia cristã. Apesar de suas imperfeições, as religiões não cristãs são possibilidades existenciais que favorecem uma abertura ao mistério de salvação, graças à presença e atuação universal do Logos divino.450

O Documento Diálogo e Missão sustenta que nas religiões não cristãs estão condensados elementos de verdade e graça que iluminam todo ser humano. Sendo assim, as mesmas, merecem atenção e estima dos cristãos (DM 26). O Documento Diálogo e Anúncio, reconhecendo uma espécie de mediação participada das religiões não cristãs na salvação de seus membros, afirma que os membros das outras religiões acolhem o dom da salvação

447 Cf. HAMMES, Érico João; GOMES, Tiago de Fraga. Cristologia e diálogo entre as religiões na busca da paz

em Claude Geffré, p. 723-724.

448 Cf. KASPER, Walter. A misericórdia, p. 120-121.

449 O mistério ontológico de Cristo faz referência não só à economia do Logos encarnado, que adentrou na

contingência da história, mas também à subsistência e atividade de Cristo, Segunda Pessoa da Trindade, que como Filho eterno de Deus, é consubstancial ao Pai, existindo “antes de todas as coisas” (Cl 1,17). Nesse sentido, Cristo é “o Primogênito de toda a criação” (Cl 1,15). Por Ele “foram criadas todas as coisas nos céus e na terra” (Cl 1,16), e para Ele tudo se encaminha, pois “tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1,16). E em virtude de um desígnio misterioso de Deus, por intermédio de Cristo, Deus pretende “reconciliar consigo todas as criaturas” (Cl 1,19), ou seja, através de Cristo, Deus quer alcançar e salvar toda a humanidade.

mediado por Cristo, através da prática daquilo que é bom em suas próprias tradições (DA 29). Libanio afirma que a atuação do Logos na história é responsável pelos elementos de verdadeira revelação e de mediação salvífica em todas as religiões.451 Dupuis confirma essa

perspectiva, afirmando que a ação universal do Espírito se antecipa ao evento Jesus Cristo e se estende para além das fronteiras do cristianismo, se difundindo pelo mundo todo. Todo encontro pessoal entre Deus e o ser humano, ou seja, toda experiência autêntica de Deus, se dá no Espírito.452 A CTI sustenta que, a partir do reconhecimento da presença do Espírito de

Cristo nas religiões, não se pode excluir a possibilidade de que estas exerçam, como tais, certa função salvífica para os seus membros (CTIcr 84). Nesse sentido, Kunnumpuram afirma que o valor salvífico das religiões não cristãs é um dom sobrenatural de Deus que vai além de um substrato natural, pois, no fundo, estas possuem um dinamismo interno, uma dialética intrínseca, que conduz a Cristo. As religiões não cristãs podem servir de vias de salvação para aqueles que não encontraram existencialmente a Cristo.453

Congar fala do Logos e do Espírito como a Palavra e o Sopro divinos454, os quais são

agentes de uma única economia divina na história. A influência cósmica do Espírito e a ação universal do Logos são complementares e inseparáveis. Nesse sentido, pode-se falar em uma cristologia pneumatológica455, que, para Dupuis, ajuda a evitar um cristocentrismo fechado.

Diferente do evento-Cristo, circunscrito a uma particularidade histórica e cultural, a ação do Espírito não conhece limites espaciotemporais: o Espírito age na história, em todas as religiões, assim como age na economia do Logos encarnado, antes dela e além dela. Por meio do Espírito, o evento-Cristo, centro da história da salvação, age em todos os tempos, estando presente e ativo em todas as gerações. A influência do Espírito dá expressão à ação salvífica de Deus na história e atinge seu ápice em Cristo.456 O mesmo Espírito que fala pelos profetas e

inspira as Escrituras, atua na encarnação do Logos (Mt 1,18; Lc 1,35); no início da missão pública de Jesus, o Espírito confirma a comunhão entre Jesus e o Pai (Mt 3,16; Lc 10,21); e no entardecer de sua vida, Jesus relaciona o dom de sua vida com o dom do Espírito (Hb 9,14) aos seus discípulos e à humanidade (Jo 16,7; 20, 22), a fim de que o discernimento da verdade seja ampliado (Jo 14,26; 15,26; 16,13)457 e a sua missão tenha continuidade (VD 15). Sendo

assim, há uma íntima relação entre o Logos e o Espírito.

451 Cf. LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade, p. 282. 452 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 339. 453 Cf. KUNNUMPURAM, Kurien. Ways of salvation, p. 87; Id. Ibid., p. 91.

454 Cf. CONGAR, Yves Marie-Joseph. La Parola e il Soffio.

455 A respeito da cristologia pneumatológica, ver: DEL COLLE, Ralph. Christ and the Spirit; BORDONI,

Marcello. La cristologia nell’orizzonte dello Spirito.

456 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 274-276.

O evento-Cristo é o acontecer do Logos no tempo e no espaço, de forma irreversível e insuperável, mas não o esgota, e nem o Espírito se esgota na economia do Logos encarnado. O evento-Cristo, segundo Moltmann, não começa com Jesus de Nazaré, mas com o Espírito458,

sendo a maior manifestação histórica do Espírito autocomunicativo divino. Pela ressurreição, Jesus e o Espírito relacionam-se em uma dimensão nova. Desde então, o Espírito continua a gerar o Logos no mundo, porém, não como Logos personificado – hipostasiado –, mas nas comunidades crísticas que acolhem a marcha da Palavra divina na história. Para Dupuis, a história da salvação é a história das origens de tudo do Pai – prósodos – por meio do Logos, no Espírito, e do retorno – éxodos – ao Pai, pelo Logos, no Espírito, da criação divinizada pelo ritmo da expansão e concentração trinitária. Todo o caminho do Pai para o Pai pelo

Logos (1Cor 8,6), realiza-se no Espírito (Ef 2,18).459 Portanto, uma cristologia com enfoque

pneumatológico transparece melhor, segundo Kasper, a unicidade e a universalidade do mistério de Cristo, além de enfatizar que o Espírito – presente em toda a sua plenitude em Cristo – age em toda a história humana, com diferentes níveis e intensidades.460

Nesse sentido, segundo Rahner, embora em graus diferentes, as religiões, enquanto tais, podem ser consideradas legítimas, sendo possível às pessoas se salvarem dentro da religião acessível à sua condição histórica. As religiões podem ser consideradas como meios ou vias de salvação enquanto integram a dinâmica abrangente da história geral da salvação. Rahner concebe um endereçamento misterioso das outras religiões à salvação em Cristo, e até mesmo, ao próprio cristianismo.461 Para Küng, apesar dos seus limites, as religiões proclamam

a verdade de Deus. Os seus adeptos não devem renunciar ao que nelas há de bom e edificante, pois Deus não é Senhor apenas da história especial da salvação cristã, mas também da história universal da salvação de toda a humanidade, pois ambas, sujeitas à mesma graça, constituem uma única história que tem origem, significado e meta comuns. Como Deus deseja que todos sejam salvos, cada pessoa pode encontrar a salvação dentro de sua condição histórica, social, cultural e religiosa. Küng vai mais além, e vê nas próprias religiões meios ordinários de salvação para os seus membros. Küng afirma que Cristo é a norma definitivamente reguladora para os cristãos, porém, aconselha que os mesmos assumam, em relação às outras religiões, uma atitude crítica e aberta ao debate do ponto de vista da fé.462 No entanto, é preciso rejeitar

tanto um indiferentismo sincretista, quanto um particularismo exclusivista.

458 Cf. MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo, p. 123.

459 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 317-318. 460 Cf. KASPER, Walter. Gesù il Cristo, p. 379.

461 Cf. RAHNER, Karl. Cristianesimo e religione non cristiani, p. 545-565.

462 Cf. KÜNG, Hans. The world religions in God’s plan of salvation, p. 51-53; Id. Essere cristiani, p. 90; Id.

Miranda acredita que o plano salvífico de Deus antecede a humanidade e destina-se à toda ela, convidando as pessoas a se empenharem em uma experiência religiosa.463 Nesse

sentido, Rahner afirma que as religiões contêm, em suas instituições e práticas, componentes que se devem a uma influência sobrenatural da graça divina.464 Por conseguinte, para Thils, há

uma revelação cósmica universal de Deus à humanidade que abrange todas as religiões, concedendo-lhes, em diferentes graus, uma eficácia salutar. Por isso, as religiões são para os seus membros, a expressão de uma ordem providencial divina, e, portanto, são possíveis vias de salvação. Porém, embora a via do cristianismo possua a plenitude dos meios fornecidos pela economia especial da salvação, realizada em Cristo, não é uma via exclusiva. Dentro do único plano de Deus, há uma harmonia ou unidade orgânica entre o cristianismo e as outras religiões em ordem à salvação, embora em graus diferentes de perfeição. No entanto, todas as vias de salvação convergem para a unidade final, na qual se consumarão todas as alianças que Deus firmou com a humanidade.465

Segundo Geffré, há um único plano de salvação, cujo sentido final é Cristo, que atinge toda a humanidade através de caminhos só conhecidos por Deus. A forma como Deus salva através das outras religiões, permanece um mistério. Sem comprometer ou negar a unicidade da mediação de Cristo, é preciso respeitar as vias pelas quais Deus escolhe agir e revelar a si mesmo e o seu plano de salvação e reconhecer a legitimidade da função mediadora das outras religiões. Geffré interpreta a pluriformidade das experiências de fé como portadoras da presença oculta do mistério de Cristo, diferente do que se pensou no passado, quando se dizia que as outras religiões, como obras humanas, seriam abstáculos para o verdadeiro encontro com o Deus que salva. Isso equivalia a afirmar que até mesmo um ateu estaria mais próximo de uma abertura a Deus do que os membros de outras religiões. Geffré acredita que mesmo as religiões mais rudimentares, apesar de seus desvios, oferecem uma abertura à alteridade e um acréscimo de humanidade, apontando para o mistério de Cristo.466

Para Geffré, a Igreja é o Corpo de Cristo (Rm 12,5; 1Cor 12,27) e o sacramento universal de salvação (LG 48; AG 1; GS 45), porém, não é o meio único e exclusivo de salvação. Deus não está preso às mediações eclesiais. A graça salvífica é oferecida misteriosamente a todas as pessoas. A Igreja católica não possui o monopólio dos sinais do Reino de Deus. O mesmo Espírito que age na Igreja, age também no coração de todos os seres

463 Cf. MIRANDA, Mário de França. A configuração do cristianismo num contexto pluri-religioso, p. 379; Id.

Diálogo inter-religioso e fé cristã, p. 46.

464 Cf. RAHNER, Karl. Cristianesimo e religione non cristiani, p. 564.

465 Cf. THILS, Gustave. Religioni e cristianesimo, p. 121-124; Id. Ibid., p. 133; Id. Ibid., p. 139-145; Id. Ibid., p.

171-172; Id. Ibid., p. 190-200.

humanos, na cultura e na história dos povos e nas outras religiões. “O Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). Assim como o vento, o Espírito não pode ser contido ou limitado a uma determinada instituição religiosa ou experiência de fé. Geffré acredita que as outras religiões podem ajudar o próprio cristianismo a explicitar algumas virtualidades do mistério cristão, revelando novas faces do mistério divino à humanidade. Há, assim, uma cristianidade coextensiva à toda a história humana. Esses valores crísticos podem ser da ordem do

conhecimento – textos sagrados, revelações e profecias, que levam à descoberta intelectual de

Deus –, da ordem do culto – ritos, iniciações e práticas ascéticas, que conduzem a uma experiência religiosa ou mística com a transcendência – e da ordem da exigência ética – valores do esquecimento de si, da justiça, da compaixão, da hospitalidade e da fraternidade, que levam ao descentramento de si e à disponibilidade ao outro. Todos esses elementos têm, para Geffré, uma relação misteriosa com o mistério pascal de Cristo, e, por isso, são mediações derivadas de salvação.467

Com a ideia de cristianidade, Geffré expressa que o mistério de Cristo perpassa toda a história humana. Por isso, fala de valores crísticos ou universalidade de Cristo, ao invés de

valores intrinsecamente cristãos ou universalidade do cristianismo, pois, por sua finitude e

limitação, o cristianismo histórico não consegue traduzir adequadamente a superabundância do mistério de Cristo. No entanto, Geffré frisa que o mistério universal de Cristo medeia a salvação de toda a humanidade. Nessa perspectiva, as religiões possuem certa função mediadora na salvação à medida que são portadoras de valores crísticos ou da presença oculta do mistério de Cristo. As pessoas são salvas nas e através das religiões que integram, tendo em vista esse horizonte cristológico. Nesse sentido, o termo mediação deriva designa essa mediação salvífica que deriva da única mediação do mistério de Cristo. Sendo assim, as religiões não são vias paralelas de salvação, mas são quase-sacramentos da presença do mistério salvífico operado por Cristo. Geffré continua a considerar a Igreja como sacramento

universal de salvação, porém, não é a via exclusiva de salvação. A única mediação pertence

ao mistério de Cristo que unifica as diversas vias salvíficas em uma única economia da

salvação. Essa postura visa afirmar a identidade específica e irredutível de cada religião e

facilitar o diálogo inter-religioso, em vista da ampliação da percepção do mistério salvífico na história. Por conseguinte, todas as religiões – cada uma a seu modo – colaboram de forma misteriosa para a manifestação do Reino de Deus.468

467 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 159-161; SILVA, Carlos Antonio da. O paradoxo cristológico, p.

400; PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 119.

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