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2.3 O DIÁLOGO ENTRE AS RELIGIÕES NA PERSPECTIVA DE UMA ALTERIDADE IRREDUTÍVEL

2.3.1 Ultrapassar a perspectiva apologética

A consciência da diversidade religiosa não é uma novidade. O que é novo, segundo Wainwright, é um conhecimento mais acurado de outras religiões e uma melhor apreciação de sua profundidade espiritual e sofisticação intelectual. Contudo, observa-se que há conflitos entre as religiões. O que fazer diante disso? Não há como negar que as grandes religiões interpretam que as suas doutrinas têm validade universal e que estão em conflito com algumas doutrinas de outras religiões. Poder-se-ia afirmar que as doutrinas das diferentes religiões são incomensuráveis, pois estão estruturadas em cosmovisões específicas. Porém, os representantes das grandes religiões reconhecem implicitamente que há critérios universais, tais como: fidelidade a dados e fatos históricos e a teorias geralmente aceitas; consistência lógica e coerência; poder explicativo para interpretar fatos; capacidade de humanização. Para Wainwright, há três modos de minimizar os desacordos doutrinários: dar mais atenção à

prática e menos importância ao conteúdo das verdades proposicionais das crenças, relevando

mais a forma como as pessoas se relacionam ou respondem à Realidade Última; optar por um

relativismo gnosiológico, sustentando que as doutrinas das diferentes religiões simbolizam ou

apontam para a mesma realidade, mesmo que por vias diferentes; defender um pluralismo

epistemológico, onde cada religião elabora um conhecimento da Realidade Última a partir do

filtro de suas categorias de compreensão. Todavia, é preciso ter cuidado com a questão do agnosticismo que leva à indiferença.636

Segundo Hick, uma nova consciência tem desafiado a tradicional pretensão de superioridade do cristianismo em relação às outras religiões. Hick afirma que todas as religiões estão centradas em Deus e não no cristianismo ou em outra religião. Deus é o Sol de onde procede a luz refletida por todas as religiões. Para Hick, a definição cristológica nicena representa a forma greco-romana de conceitualizar sobre a divindade e a encarnação do Filho de Deus, havendo outras possibilidades de compreensão desse mistério. Hick acredita que o cristianismo não é a única forma válida da percepção do divino, há muitas outras.637 Essa

transição da visão do cristianismo como a única religião verdadeira para uma compreensão do cristianismo como uma religião verdadeira entre outras, confirma a convicção de Duquoc que o posicionamento exclusivista pode ser considerado como superado638, não havendo mais

possibilidade de defendê-lo e difundi-lo.

636 Cf. WAINWRIGHT, William J. Competing religious claims, p. 220-234.

637 Cf. HICK, John. God has many names, p. 70-71; Id. Jesus and the world religions, p. 168; Id. The non-

absoluteness of christianity, p. 33; Id. The metaphor of God incarnate, p. 152.

Segundo Hick, reconhece-se atualmente que judeus, muçulmanos, budistas, hindus, taoistas, etc., têm uma vida moral e social tão boa quanto a dos cristãos. Tais religiões, e muitas outras, são contextos de transformação humana de um autocentramento natural, para uma nova orientação, centrada no divino/transcendente. As civilizações moldadas por essas religiões são tão boas quanto as civilizações cristãs no que diz respeito aos frutos morais e espirituais. Sendo assim, é preciso elaborar uma hermenêutica da suspeita ao a priori cristão de superioridade, pois é fato que a religião a que se pertence, na maioria dos casos, é uma circunstância contextual. Portanto, a convicção religiosa é relativa às circunstâncias de nascimento e crescimento da pessoa. Mais recentemente, a maioria dos crentes se dá conta da índole cultural de determinado engajamento religioso. Velhos exclusivismos cada vez mais cedem espaço para inclusivismos, e até mesmo, para pluralismos. Para Hick, conceber um inclusivismo de indivíduos não é o suficiente, pois nesse nível, ignoram-se as outras religiões em si como canais de salvação. Hick acredita que Deus atua em todas as religiões. Nenhuma religião é superior às outras. Deus é experimentado e conceitualizado de maneira diferente pelas diferentes religiões. Por isso, cada religião é como uma lente ou perspectiva muito específica desde a qual se compreende Deus. Diferentes visões religiosas não se excluem, mas podem ser complementares, desde que se compreenda a gradiosidade e inefabilidade noumênica do fenômeno que referenciam. As afirmações incompatíveis inserem-se no horizonte das diferentes manifestações de Deus à humanidade. Os dualismos, as contrariedades e as limitações pertencem ao pensamento humano e não a Deus em si.639

Feldman fala em desacordos religiosos razoáveis. Pessoas razoáveis podem discordar, enquanto que as intolerantes desprezam a opinião alheia e as relativistas simplesmente defendem que todos estão certos. Pessoas intolerantes recusam-se a pensar cuidadosamente a respeito do conteúdo do que o outro defende, atendo-se irrefletidamente às próprias crenças. No entanto, isso é inconsistente intelectualmente, pois exime-se de um exame rigoroso, essencial para a elaboração de um pensamento crítico e bem estruturado. Os relativistas dizem que uma proposição pode ser verdadeira para uma pessoa, enquanto que outra proposição, mesmo sendo incompatível com a anterior, pode ser verdadeira para outra pessoa. Isso devido ao fato de que pessoas diferentes têm crenças diferentes sobre o mesmo assunto. No entanto, é difícil aceitar racionalmente que opiniões contraditórias sobre o mesmo assunto estejam ambas corretas, isso seria um absurdo. No fundo, o relativista e o intolerante ignoram o conteúdo dos argumentos contrários, ou seja, ambos não levam a sério o debate.640

639 Cf. HICK, John. The theological challenge of religious pluralism, p. 156-171. 640 Cf. FELDMAN, Richard. Reasonable religious disagreements, p. 194-197.

Para Feldman, é preciso compreender a natureza dos desacordos. Um desacordo

genuíno acontece quando há uma proposição que alguns afirmam e outros negam. Não é

possível que ambos estejam certos, pois isso corresponderia a incorrer em uma contradição. Um desacordo aparente ocorre quando há afirmações declarativas distintas, não havendo um desacordo real sobre o mesmo assunto. Nesse caso, há um desencontro hermenêutico, ou seja, é necessário que se esclareça o conteúdo das diferentes interpretações, pois não há uma proposição específica sendo contestada por ambos os lados. No entanto, a ambiguidade pode esconder desacordos. Desacordo não é sinônimo de injustificação epistêmica. É possível discordar de outra crença e, ao mesmo tempo, reconhecer que esta mesma crença é razoável. Logo, há um desacordo razoável quando duas pessoas discordam justificadamente a respeito de determinado assunto com evidências, raciocínio lógico e coerência, porém, sem serem

pares epistêmicos. Quando pares epistêmicos, com iguais evidências, discordam sobre uma

crença, é razoável que se suspenda o juízo. Feldman chama a atenção para a relevância que a paridade epistêmica dos interlocutores exerce sobre a avaliação de uma crença. Para Feldman, não é possível que se infiram diferentes conclusões de uma mesma evidência, especialmente se os interlocutores compartilham os mesmos pressupostos.641

Plantinga se pergunta se a diversidade religiosa seria motivo para considerar uma crença particular, como é o caso, por exemplo, da crença cristã, como sendo irracional, injustificada ou arbitrária diante das demais. Para Plantinga, diante de posições epistêmicas diferenciadas, é possível sustentar crenças justificadas, apesar de contraditórias. Nesse sentido, a consciência da diversidade religiosa é inquietante.642 Quinn afirma que atualmente é

possível compreender as religiões mundiais de uma forma melhor do que em outras épocas, embora o convívio pacífico entre elas ainda seja um desafio, como o demonstram os conflitos religiosos em várias partes do mundo. Sendo assim, o problema da tolerância religiosa é uma questão global urgente, pois a tolerância com as diferenças abre caminho para a efetivação da liberdade religiosa. Quinn considera irracional coagir as pessoas a crer ou não crer em algo. Isso é contrário à dignidade da pessoa humana e uma maneira equivocada de estabelecer uma convicção. A imoralidade de medidas compulsórias em matéria de religião, fundamenta, segundo Quinn, a argumentação a favor da tolerância religiosa, conferindo-lhe um grau epistêmico maior de justificação em relação aos atos de intolerância.643

641 Cf. FELDMAN, Richard. Reasonable religious disagreements, p. 198-212. Sujeitos/interlocutores são

considerados pares epistêmicos na medida em que são semelhantes em condições cognitivas, informação de fundo, habilidades e experiências para avaliar as evidências em debate.

642 Cf. PLANTINGA, Alvin. Pluralism, p. 437-457.

Antoniazzi afirma que por muito tempo, o cristianismo olhou para as outras religiões como antagonistas. Essa atitude gerou muitas hostilidades. As descobertas das novas religiões no novo mundo, a partir do final do século XV e ao longo dos séculos seguintes, propiciou uma primeira virada teológica. As outras religiões passaram de excluídas a incluídas – embora excepcionalmente – na economia da salvação. Esse inclusivismo se clareará somente com o Concílio Vaticano II (LG 16; GS 22), baseando-se em dois princípios: a vontade salvífica universal de Deus (1Tm 2,4) e a necessidade da mediação de Cristo (At 4,12; 1Tm 2,5-7), ficando em aberto se os não cristãos se salvam apenas individualmente ou se suas religiões têm um papel salvífico. Gerações de teólogos, no pós-concílio, começam a se questionar sobre a possibilidade de uma economia da salvação para além do cristianismo, abrindo o cristianismo à possibilidade de uma interlocução ainda maior com as outras religiões. Mesmo que Cristo seja a verdade última e normativa da economia salvífica, parte-se do pressuposto de que é preciso ampliar a compreensão e a vivência da mensagem da salvação.644

Para Panasiewicz, o diálogo inter-religioso, quando feito com lucidez, amplia os próprios horizontes de compreensão da atuação contínua do Espírito de Deus na história.645

Porém, segundo Faustino Teixeira, isso pressupõe simpatia, sintonia e atenção ao diferente, e precisa vir acompanhado de um ancoradouro referencial.646 Antoniazzi acredita que a fé em

Cristo não limita o diálogo inter-religioso, antes o impulsiona, no sentido de que é justamente a fé em Cristo, como único mediador, que gera a convicção de que Deus não deixa de agir em toda a história humana. Portanto, os cristãos precisam respeitar as outras tradições religiosas, pois nelas, Cristo está misteriosamente presente e atuante. Contudo, essa não é uma relação estática, mas dinâmica, pois a busca da verdade, apesar de impulsionada pela graça, é truncada pelo pecado, e envolve a liberdade das pessoas. Por conseguinte, em Lc 10,25-37, tanto cristãos quanto não cristãos são chamados a amar samaritanamente o próximo, independente de suas crenças. Por isso, a ninguém é concedido furtar-se ao encontro e ao diálogo colaborativo com o outro. Nessa perspectiva, Antoniazzi afirma que mesmo que seja preciso aprofundar mais a questão teórica, a prática do diálogo inter-religioso é uma realidade urgente no mundo de hoje em vista da necessidade de um empenho comum das religiões pela libertação humana e ecológica integral, especialmente no tocante às questões de convivência pacífica e de colaboração para o estabelecimento da justiça social.647

644 Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Valor salvífico das religiões e diálogo inter-religioso, p. 117-119. 645 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 140.

646 Cf. TEIXEIRA, Faustino. O imprescindível desafio da diferença religiosa, p. 191; Id. O diálogo inter-

religioso, p. 144-145.

Segundo Antoniazzi, há uma relação entre diálogo inter-religioso e libertação social. Nos últimos séculos, o Ocidente cristão foi palco de inúmeras práticas colonizadoras e opressoras que avassalaram culturas e religiões de povos inteiros. Um autêntico diálogo entre o cristianismo e as religiões de comunidades marginalizadas, pretende: desconstruir antigos

paradigmas, veiculadores de ideologias perversas que ainda estão profundamente arraigadas

no imaginário ocidental; e reforçar valores que estimulam à esperança e à resistência diante de situações de opressão social. Antoniazzi propõe algumas questões concretas, as quais exigem um discernimento teológico apurado e um empenho prático consistente, a fim de serem trabalhadas com afinco diante dos desafios do contexto atual, cada vez mais plural e diverso: do ponto de vista teórico, discernir, no universo do pluralismo religioso, expressões legítimas da manifestação econômica de Deus; do ponto de vista prático, dialogar, de maneira aberta e paciente, com as pessoas de outras religiões – dispostas a percorrer um itinerário comum de aprofundamento do mistério divino e comprometidas com a libertação humana e com a justiça e a paz – e relativizar a própria comunidade religiosa como institucionalmente limitada para expressar a plenitude dos desígnios divinos e das expectativas mais significativas das pessoas de hoje. Essas questões indicam o quanto o diálogo inter-religioso propicia um autêntico amadurecimento da própria fé, recentrando-a em seus aspectos mais essenciais, e, como consequência, ampliando o seu horizonte ortoprático.648

Para Geffré, tendo em vista a economia do Logos encarnado como sacramento de uma economia mais vasta, a teologia cristã das religiões precisa ultrapassar uma perspectiva apologética e aceitar o pluralismo religioso como uma evidência histórica, desde o qual, é possível reinterpretar a verdade das diferentes religiões desde um horizonte mais amplo. Contudo, Geffré enfatiza que uma teologia cristã das religiões não pode contentar-se com uma mera análise comparativa entre as religiões,mas precisa cultivar um otimismo teológico que não hesite em afirmar que, apesar dos limites e das imperfeições presentes nas outras religiões, elas podem ser portadoras de valores positivos, não só nas disposições subjetivas de seus membros, mas em seus próprios elementos constitutivos. Por conseguinte, é necessário compreender o diálogo inter-religioso não como o projeto para a edificação de uma religião mundial ou de uma metarreligião – onde todas as diferenças sejam abolidas –, pois, nesse caso, se anularia a identidade própria de cada religião, não havendo, assim, um verdadeiro diálogo, mas um projeto de planificação uniformizadora.649

648 Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Valor salvífico das religiões e diálogo inter-religioso, p. 122-126.

649 Cf. GEFFRÉ, Claude. Le comparatisme en théologie des religions, p. 415-431; Id. De Babel a Pentecostes, p.

Para Geffré, o diálogo inter-religioso não é apenas uma atitude ética em conformidade com o espírito da época hodierna sob o signo da tolerância e da pluralidade de opiniões, mas está fundado teologicamente sobre a unidade da família humana no plano de Deus. A história da humanidade, desde as origens, é uma história da salvação650, que, segundo Panasiewicz,

expressa a riqueza do mistério divino por uma pluralidade de tradições religiosas.651 Por isso,

afirma Faustino Teixeira, o pluralismo é legítimo e as religiões são genuinamente preciosas em suas diferenças.652 Infelizmente, na história da apologética cristã, muitos teólogos

discerniram facilmente um cristianismo implícito nas outras religiões, ao passo que rejeitaram como superstição, idolatria e até bruxaria, expressões do Sagrado que pareciam estranhas ao cristianismo. É importante praticar uma ascese contra julgamentos apressados a respeito das outras religiões. É preciso exorcizar o veneno apologético.653 Segundo Faustino Teixeira, a

teologia cristã precisa se guiar pela dinâmica da diferença, para além da lógica exclusivista da identidade, pois é no âmbito do debate de ideias que se pode superar os próprios preconceitos e chegar a outra visão não só da verdade do outro, mas da própria verdade. Apenas assim, o diálogo poderá gerar um resultado inédito para ambos os envolvidos na interlocução.654

O exclusivismo cristão foi o responsável durante séculos por um julgamento negativo em relação às outras religiões, erigindo a fé cristã como o padrão exclusivo da verdade. Classificou-se tudo o que aí não se encaixava como obstinação na falsidade e no erro. Geffré se considera um inclusivista no que se refere à afirmação da unicidade da mediação de Cristo, porém, adota um posicionamento pluralista quanto à inteligência das relações do cristianismo com as outras religiões. Para Geffré, afirmar que todas as coisas são recapituladas em Cristo, não significa absolutizar a religião cristã. Mesmo que a plenitude da revelação coincida com a vinda de Cristo, trata-se de uma plenitude qualitativa e não quantitativa, pois a ação humana do Logos énsarkos não esgota a ação universal do Logos ásarkos. A revelação cristã, mesmo sendo qualitativamente plena, é quantitativamente relativa à limitação humana. Por isso, é necessário ultrapassar a perspectiva apologética e perceber que as religiões do mundo emergem como tentativas de responder ao apelo de uma realidade misteriosa e transcendente, sendo, portanto, inaceitável a pretensão de superioridade de uma religião sobre as outras. É preciso respeitar a alteridade irredutível de cada tradição religiosa.655

650 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 150-151.

651 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 119. 652 Cf. TEIXEIRA, Faustino. Diálogo inter-religioso, p. 164.

653 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 153.

654 Cf. TEIXEIRA, Faustino. A teologia católica face ao pluralismo religioso, p. 1743. 655 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 156-161.

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