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1.1 A REVELAÇÃO CRISTÃ COMO EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA

1.1.3 Proceder por aproximações interpretativas

O fazer teológico, na visão de Geffré, parte do dado revelado, interpretando-o, a fim de elaborar conceitos e sistematizar uma compreensão a respeito da realidade divina. Enquanto inteligência hermenêutica do ato de fé, a teologia situa-se na tensão entre anamnese e profecia, tomando como base a fé transmitida por testemunhas credíveis, consciente da necessidade de atualizá-la para a compreensão atual. É insuficiente pensar a teologia como um prolongamento legitimador dos interesses ideológicos e institucionais do magistério, ou como uma tradução da linguagem eclesial oficial em uma linguagem mais adaptada, como se houvesse um núcleo doutrinal imutável, cuja roupagem linguística devesse apenas ser transmudada. A teologia parte de uma interrogação fundamental que verte do centro mesmo da fé revelada, a qual não se possui de imediato, mas vai se tornando acessível por aproximações sucessivas. Traduzir as verdades tradicionais da fé requer um exercício criativo de reinterpretação que supere uma concepção instrumental da linguagem, sem perder de vista a dimensão radicalmente histórica de toda verdade.163 Para Juscelino Silva, a primazia do dado

revelado conserva uma assimetria necessária entre Deus e as formulações teológicas e foca na experiência de salvação expressa pelas mesmas, pois a fé, quando é desvinculada do sobrenatural que lhe legitima, perde a sua vitalidade e morre.164

Segundo Geffré, o labor teológico parte de textos – os quais são atos de interpretação histórica –, distanciando-se dos mesmos, como um novo ato de interpretação. O valor permanente das formulações de fé requer uma atualização constante, pois a reprodução mecânica pode produzir contrassensos e confusões. Além disso, as comunidades de fé, enraizadas em experiências históricas, culturais e sociopolíticas específicas, legitimam uma pluralidade de confissões de fé como resposta às interrogações humanas de cada tempo. A própria verdade do Evangelho não é apenas um corpus doutrinal absoluto, mas uma verdade dinâmica, adveniente, jamais possuída, tendo, por isso, um caráter inesgotável. Sendo assim, o teólogo precisa de liberdade para executar a sua missão de maneira crítica e coerente, com atenção não só às heresias progressistas, mas também às conservadoras. Consequentemente, é inevitável que o objeto material da teologia seja traduzido em uma diversidade de linguagens, superando-se, assim, o paradigma da linguagem cultural unitária.165

163 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 89-92; Id. Profession théologien, p. 93-94. 164 Cf. SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 30-31.

165 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 93-100; Id. Un nouvel âge de la théologie, p. 46;

EUFRÁSIO, Thiago De Moliner; GOMES, Tiago de Fraga. Fides quaerens intellectum, p. 166; MÜLLER, Enio. Sobre a verdade do Evangelho, p. 84.

Na base do fazer teológico, está a verdade revelada, veiculada por testemunhos, posteriormente escriturados. O testemunho é um processo de interpretação em que convergem criativamente evento e sentido, experiência e linguagem, havendo uma irredutibilidade dos acontecimentos históricos a fatos brutos. O próprio evento da ressurreição de Cristo só é acessível através da linguagem da fé pascal. Segundo Pagola, “a partir da experiência da ressurreição de Jesus, seus seguidores começam a fazer uma releitura da sua vida inteira. Aquela vida surpreendente e cativante que conheceram de perto e cuja memória guardam viva no coração adquire agora uma profundidade nova.”166 O testemunho articula palavra e evento,

e remete à liberdade e à intenção significante da testemunha e à capacidade cognitiva do interlocutor/destinatário. Para Geffré, interpretar um testemunho corresponde a interpretar uma interpretação. Por isso, a teologia é uma ciência hermenêutica. Entretanto, enquanto a teologia joanina considera o testemunho como uma experiência ocular ou auricular imediata, a teologia lucana refere-se ao testemunho como um relato de verdades das quais se está convencido. Porém, em ambos os casos, há uma convicção íntima e irrecusável como fonte da expressão pública do testemunho. Por isso, testemunhar é reviver/reproduzir na palavra a experiência de um evento/acontecimento. Na teologia paulina, a testemunha está sempre implicada no que diz e visa sempre um interlocutor no qual quer despertar uma decisão pessoal. Nesse sentido, não há fé pascal sem testemunhas e sem linguagem, e é apenas quando um evento real se torna evento de palavra, nomeado e interpretado por uma rede de significações, que ele passa a integrar a história humana. Como o testemunho humano é diferente de uma fotografia ou de uma estenografia do que se passou, só é possível conhecer um evento/acontecimento procedendo por aproximações interpretativas.167

Pires e Oliveira consideram que a verdade enquanto construto, precisa ser pensada como aproximação compreensiva e não como apropriação epistêmica definitiva.168 A teologia

necessita cultivar o senso de uma posse sempre relativa da verdade, ciente de que a mensagem cristã é suscetível a múltiplas recepções no decurso dos tempos, resistindo a uma interpretação definitiva. Como afirma Breton, a verdade cristã é relativa em um sentido relacional. Outras verdades religiosas podem apontar para aspectos do próprio cristianismo que até então seriam despercebidos por serem a expressão de uma particularidade histórica.169

Sendo assim, para Geffré, uma boa atitude intelectual em teologia consiste em evitar a tentação do pensamento metafísico enquanto representação conceitual de Deus, adotando uma

166 PAGOLA, José Antônio. Jesus, p. 528.

167 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 105-121.

168 Cf. PIRES, Anderson Clayton; OLIVEIRA, Cláudio Ivan de. A hermenêutica da compreensão, p. 665. 169 Cf. BRETON, Stanilas. Unicité et monothéisme, p. 16-17.

atitude mais modesta que procede por aproximações sucessivas, pelo caminho da interpretação. A verdade reivindicada pela teologia não está na ordem da adequação formal, mas sim, pela via ontofânica da linguagem, conforme o segundo Heidegger e o segundo Ricoeur, na ordem da manifestação do ser, em devir. Por isso, a verdade teológica não se restringe a uma perspectiva unívoca, mas, na dinâmica das múltiplas interpretações possíveis, concebe-se como interpretação balbuciante da plenitude da verdade – a qual coincide com o próprio mistério divino.170

A interpretação correta da mensagem cristã é favorecida, segundo Geffré, pela boa situação hermenêutica, baseada na correlação crítica entre a experiência precedente da comunidade cristã primitiva e a experiência histórica das pessoas de hoje, com seu respectivo horizonte de expectativa. A compreensão teológica atual é indissociável da recepção da memória do passado e de um projeto de futuro. A protologia e a escatologia tensionam a teologia a viver o presente histórico com vivacidade e profetismo, sem perder as raízes da fé, cultivando o terreno da esperança, a fim de gerar frutos na caridade, expressa na concretude histórica. A mensagem cristã, no fundo, é uma experiência de fé que se torna mensagem. Por isso, a pesquisa histórica e a crítica literária podem auxiliar na compreensão da pluralidade de linguagens em que a experiência cristã fundamental foi sendo traduzida, com o intuito de tornar o seu conteúdo comunicável aos esquemas de pensamento hodiernos. Não há fé viva sem atualização constante da experiência cristã fundamental pela via da interpretação. Sendo assim, é preciso discernir entre as estruturas constantes da mensagem cristã fundamental e os elementos contingentes onde a mesma foi se efetivando, com o intuito de operar uma apropriação atualizante da mensagem cristã como verdade salutar e existencial que incita a uma mudança de mentalidade e de vida em seus interlocutores. Em suma, a boa interpretação da mensagem cristã visa ineludivelmente a uma dimensão ortoprática, pois tem como objetivo primário a manifestação concreta de um superávit de sentido que a revelação cristã comporta para a vida das pessoas e da sociedade atual.171

170 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 37-39; HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos,

p. 272; AGÍS VILLAVERDE, Marcelino. La hermenéutica de Paul Ricoeur en el marco de la filosofía contemporánea, p. 88-89.

171 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 40-43. A dimensão escatológica da mensagem cristã põe o olhar

da teologia na esperança de uma novidade possível, diminuindo a influência de uma leitura excessivamente arqueológica da fé. A fé sustentada na esperança liberta-se das heranças autoritárias, ciente de que a promessa do Deus que vem não se esgota nas realizações históricas do passado e do presente, permanecendo superior a todos os acabamentos, como abertura ininterrupta ao futuro. A esperança cristã age inquieta no coração da história, não se estabilizando ao mais do mesmo do já aí, mas abrindo-se expectante às possibilidades de transformação da novidade do ainda não. Sendo assim, toda transformação e toda revolução, em um sentido autêntico, têm como base de atividade um horizonte escatológico, compreendido como liberdade para a novidade que permite ultrapassar a fatalidade do sempre foi assim.

Geffré questiona o fato de que muitas vezes se tem mais liberdade para intepretar os textos da revelação do que os próprios textos da tradição dogmática. Isso se constitui como um paradoxo inaceitável, pois a tradição é em si mesma um ato de transmissão da fé apostólica, o qual é imprescindível de um ato de interpretação. A verdade revelada só pode ser conhecida e compreendida através de aproximações interpretativas pela via da tradição, que veicula o legado da fé, e toda tradição, no fundo, não está em contradição com o conceito de

produção ou mesmo de inovação. Sendo assim, é necessário operacionalizar uma recepção ativa que encontre os signos conceituais correspondentes entre a mensagem que se pretende

transmitir e a compreensão dos interlocutores circunscritos a determinado horizonte de compreensão. Além disso, para que a mensagem cristã continue vigorosa e atrativa ao seu ideal original, é necessário empreender um diálogo fecundo entre os testemunhos pretéritos e o horizonte de expectativa emergente no presente histórico, ao qual se pretende comunicar.172

Aproximar-se da verdade teológica pela via hermenêutica, corresponde a inserir-se no devir histórico, onde o evento sempre atual da revelação é transmitido criativamente pela tradição, sem ser esgotado. Segundo Geffré, compreender hermeneuticamente a revelação de Deus significa concebê-la, não como uma recepção passiva de um passado inerte e cristalizado, mas como um processo dinâmico, tensionado pela expectativa escatológica. Não há uma invariante quimicamente pura a comunicar, há sim um conteúdo vivo que precisa ser retomado criativamente em seu sentido originário, a fim de que seja atualizado e recebido. O

distanciamento, antes de ser obstáculo à interpretação, é na realidade, condição para um novo ato de interpretação da mensagem originária da revelação, em vista das condições

existenciais hodiernas. Quem interpreta, atualiza; quem atualiza, renova; quem renova, inova. A fim de perseguir esse ideal epistêmico, Geffré elege quatro princípios fundantes na metodologia hermenêutica em teologia: jogo da pergunta e da resposta; interpretação das formulações dogmáticas à luz de uma leitura crítica da Escritura; correlação crítica entre experiência cristã fundamental e experiência histórica atual; reinterpretação que pode levar à

reformulação: questão do hilemorfismo linguístico-dogmático – a atualização do conteúdo

material requer uma inovação na linguagem formal.173

172 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 65-66; Id. Como fazer teologia hoje, p. 95; Id. Ibid., p. 102; Id.

La crise de l’herméneutique et ses conséquences pour la théologie, p. 76.

173 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 67-80; Id. Lé réalisme de L’incarnation dans la théologie du Père

M-D Chenu, p. 396. Körtner afirma que para compreender é preciso perguntar. No princípio de toda interpretação, há um questionamento. A pergunta é a premissa de toda compreensão. O texto encerra inúmeras possibilidade de sentido. Sendo assim, na dinâmica de uma compreensão multívoca e permanente, interpretações divergentes podem ser legítimas, pois os processos de compreensão ocorrem no âmbito da historicidade, em sua inserção social e cultural (Cf. KÖRTNER, Ulrich H. J. Introdução à hermenêutica teológica, p. 10-13). A respeito do jogo da pergunta e da resposta, ver: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias, p. 19.

Geffré acredita que para compreender corretamente o alcance e o significado de um enunciado dogmático – enquanto resposta a um problema preciso (CTIup 10) –, é necessário, primeiramente, forjar hipoteticamente a sua situação hermenêutica originária a partir do jogo da pergunta e da resposta, levando em consideração o questionamento que está por trás da resposta elaborada e estabelecida pela formulação dogmática, pois, a mesma, só pode ser bem compreendida em relação à questão histórica que a provocou. Geffré enfatiza que todo texto é uma resposta a uma pergunta, e a pergunta sempre está incluída no próprio texto. Por isso, é importante entender a pergunta para compreender a resposta. A compreensão de sentido emerge da fusão de horizontes entre o texto, com seu conteúdo objetivo, condicionado pelo sistema de representações conceituais de uma época, e o hermeneuta, com sua capacidade interpretativa, enraizada em esquemas de compreensão.174

O segundo passo metodológico da teologia hermenêutica de Geffré é a reinterpretação das formulações dogmáticas à luz de uma leitura crítica da Escritura. A teologia católica tridentina pré-Vaticano II privilegiou a leitura da Escritura a partir da tradição dogmática eclesial posterior. Geffré propõe uma inversão epistêmica: reinterpretar os enunciados dogmáticos a partir da leitura histórico-crítica atual da Escritura, tomando em consideração o consenso da exegese contemporânea, pois a Escritura tem uma primazia normativa em relação às escrituras ulteriores suscitadas pela tradição cristã. O Concílio Vaticano II (DV 10) e a Comissão Teológica Internacional (CTImt I,3) lembram que o magistério não está acima da Palavra de Deus, contida na Escritura e na tradição da Igreja, mas está a serviço dela, pois a Palavra de Deus tem a primazia (CTIth 9). Além disso, Geffré alerta que, a partir da consideração dialética entre fé e história, é preciso revisitar muitas das teses clássicas da dogmática cristã, a fim de que estas sejam revistas com um olhar crítico, no intuito de discernir se estão ou não em coerência com a revelação bíblica ou se há apenas uma adequação especulativa conveniente com algum sistema teológico específico.175

O terceiro passo metodológico da teologia como hermenêutica é a correlação crítica entre experiência cristã fundamental e experiência histórica atual.176 Não se trata de reduzir o

conteúdo da mensagem cristã à capacidade de recepção do ser humano atual, mas de confrontar a mensagem revelada com a evolução dos estados de consciência da humanidade, pois, “a verdadeira tradição é feita de retomadas criativas.”177 No entanto, Juscelino Silva

afirma que a tradição como retomada criativa “não deve reduzir a experiência de Deus ao

174 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 70. 175 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 72-74. 176 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 5. 177 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 75.

conhecimento noético, bem como a experiência de Deus não deve sucumbir no exagero subjetivista. Há um limite entre a inflação intelectualista da fé e o excesso subjetivista.”178

Toda recepção precisa levar em conta a capacidade de discernimento, os esquemas de pensamento e as legítimas aspirações individuais e coletivas daqueles que acolhem determinada mensagem. Geffré adverte que “não se trata de adaptar a mensagem cristã ao

ethos da sociedade moderna sob o signo da permissividade e, deste modo, trair o próprio

conteúdo do Evangelho.”179 O que se espera é que haja um verdadeiro diálogo entre o

conteúdo da fé revelada e as conquistas irreversíveis dos novos estados de consciência da humanidade hodierna, como, por exemplo, a questão dos direitos humanos, a razão democrática, o direito à liberdade religiosa e o pluralismo cultural e religioso. Sendo assim, a questão da recepção é condição sine qua non para avaliar a pertinência do labor teológico.

O quarto passo do teologizar por aproximações interpretativas diz respeito ao fato de que a reinterpretação das formulações dogmáticas pode levar a reformulações. Geffré chama a atenção para a questão do hilemorfismo linguístico-dogmático, segundo o qual, a alma da linguagem não pode ser dissociada de seu corpo textual, pois a linguagem é o lugar do sentido, e mudando a linguagem, muda-se o sentido do que é afirmado. Esse é um passo bastante arriscado. Por isso, requer um discernimento cuidadoso. Porém, é preciso prestar atenção ao fato de que a simples repetição das mesmas fórmulas dogmáticas acaba gerando contrassensos ou confusões, sendo necessário alterar a formulação para ser fiel à finalidade permanente de uma determinada afirmação de fé. Nesse sentido, não é possível permanecer em uma visão puramente instrumental da linguagem, pois a mesma não é um veículo passivo de uma intencionalidade onipotente. Além disso, não há uma invariância de sentido que independa das expressões linguísticas.180 Para Panasiewicz, a fidelidade ao sentido da fé

requer, muitas vezes, que se reformulem os enunciados ou fórmulas que a veiculam. A mudança de formulação pode ser necessária para re-situar e re-interpretar uma verdade de fé, a fim de atualizá-la.181 Não se trata de adaptar, mas de reinterpretar em vista de uma fidelidade

criativa ao que é revelado economicamente na história. No fundo, Geffré acredita ser possível e necessário “salvaguardar a unanimidade na fé numa diversidade de expressões”182 como

ressonância de um legítimo pluralismo teológico no âmbito simbólico-eclesial.

178 SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 246. 179 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 76.

180 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 77-79.

181 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 86-87. 182 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 79.

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