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1.4 POR UMA LEITURA PLURAL DA ECONOMIA DA REVELAÇÃO CRISTÃ

1.4.1 O encontro das religiões como sinal dos tempos

A experiência histórica contemporânea, marcada pela globalização, traz à tona a realidade incontornável do pluralismo religioso, que, segundo Danner, faz a teologia cristã repensar muitos de seus paradigmas tradicionais.291 Geffré enfatiza que diante da passagem da

modernidade à pós-modernidade – como transição para uma hermenêutica do testemunho – e de uma consciência cada vez mais apurada da relatividade da religião cristã no concerto das religiões do mundo, entra em xeque a questão da identidade cristã em sua pretensão à unicidade e à universalidade. O que pode parecer uma ameaça à exclusividade do cristianismo, torna-se uma oportunidade para que o cristianismo retome a essência de sua vitalidade original como religião do Evangelho. Nesse sentido, uma teologia do pluralismo religioso proporciona uma atualização orgânica da teologia cristã, recalibrando questões pendentes, em vista de uma maior fidelidade aos seus princípios fundamentais.292

Torres Queiruga percebe que há uma tensão constitutiva entre a plenitude da revelação em Cristo e o desdobramento dessa plenitude na história.293 A ideia de Cristo como plenitude

da história da salvação perpassa todo o Novo Testamento. Na Carta aos Hebreus afirma-se: “muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas” (Hb 1,1-2). Em Mateus, Jesus diz: “não penseis que vim revogar a Lei e os profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Em João, Jesus aparece como o Logos de Deus “cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14), do qual, “de sua plenitude, todos nós recebemos graça por graça. Porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,16-17). Entretanto, Miranda afirma que o Concílio Vaticano II é otimista em relação à salvação dos não cristãos, afirmando que a salvação de Cristo é oferecida à toda humanidade.294 A CTI reafirma a ideia que Deus quer salvar a todos

(CTIcr 28), porém, sustenta que o Logos encarnado ilumina toda a humanidade (CTIcr 36), sendo a causa da mediação única da vontade salvífica universal de Deus (CTIcr 37).

291 Cf. DANNER, Leno Francisco. Um fundamento para o ecumenismo, p. 71.

292 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 6-7; Id. Théologie chrétienne et dialogue interreligieux, p.

80. Geffré afirma que a unicidade da mediação de Cristo, quando não é considerada em um sentido absolutista, não anula o fato de que as outras tradições religiosas podem “exercer um papel mediador da salvação, na medida em que são portadoras da presença oculta do mistério de Cristo” (Id. De Babel a Pentecostes, p. 303), pois o mesmo Espírito Santo que age na Igreja que é Corpo de Cristo (Rm 12,5; 1Cor 12,27) e comunidade em êxodo “toda voltada para o advento do Reino de Deus” (Id. Ibid., p. 305), também age “no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas, e nas religiões” (Id. Ibid., p. 303).

293 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a revelação, p. 247. 294 Cf. MIRANDA, Mário de França. O encontro das religiões, p. 10.

Geffré lembra que a teologia católica testemunhou no período pós-conciliar “um equilíbrio mais delicado entre um cristocentismo constitutivo para a salvação de todo ser humano e um pluralismo inclusivo, isto é, o reconhecimento dos valores salutares dos quais as outras religiões podem ser portadoras.”295 Cláudio Ribeiro chama isso de inclusivismo

constitutivo, o qual defende que a salvação pode ser acessível a todos, considerando, porém,

que Cristo é a causa dessa salvação.296 Geffré não pretende substituir o cristocentrismo por um

teocentrismo indeterminado, mas conciliar a universalidade do mistério de Cristo com um pluralismo inclusivo, a partir da economia do Logos encarnado, como sacramento de uma economia mais vasta, que se estende a toda história da humanidade.297 Tillich sublinha a

perspectiva dos Padres da Igreja que enfatizam a presença universal, em todas as culturas e religiões, do Logos, como princípio da auto-manifestação divina e preparação para o advento central da pessoa concreta de Jesus Cristo, mesmo que por um tratamento dialético – rejeição e aceitação simultâneas – das outras religiões.298 Nessa perspectiva, Geffré defende que a

história humana, desde as suas origens, não cessa de ser fecundada pelas sementes do Logos e os dons do Espírito, contendo, por isso, elementos salvíficos irrevogáveis.299

Geffré formula uma teologia cristã das religiões que pensa o significado das diferentes vias para Deus dentro do único desígnio criador e salvador, a fim de reelaborar o inclusivismo da teologia do cumprimento em virtude da pluralidade irredutível das tradições religiosas. Apesar disso, ainda pode ser enquadrado dentro da lógica da teologia da realização ou do

cumprimento/acabamento, porém, critica e amplia essa concepção, afirmando que os valores

positivos das outras religiões encontram o seu acabamento não no cristianismo histórico, mas no mistério universal de Cristo. Geffré não pretende reinterpretar a singularidade cristã, mas enriquecer a compreensão do mistério divino a partir das luzes testemunhadas pelas diversas religiões como reflexos do Logos que ilumina toda a humanidade.300 Geffré quer expandir o

conhecimento do mistério divino pela ampliação da consciência de suas múltiplas manifestações históricas301, pois, como afirma Dupuis, todo conhecimento humano do

Absoluto é relativo, e, portanto, necessitado de ampliação.302 Nesse sentido, a teologia cristã

das religiões de Geffré oferece a oportunidade de alargar a percepção do horizonte da própria economia da revelação cristã.

295 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 8.

296 Cf. RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Pluralismo e religiões, p. 364. 297 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 8.

298 Cf. TILLICH, Paul. Christianity and the encounter of the world religions, p. 34-35. 299 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 8.

300 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 8-9.

301 Cf. SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 44. 302 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 389.

Cláudio Ribeiro afirma que apesar das inúmeras ambiguidades presentes na sociedade atual, em nível social, político, econômico e cultural, é gritante a convivência paradoxal entre a liberdade democrática de expressão e o crescimento da intolerância e do fundamentalismo religioso.303 Segundo teóricos como Augé, Sébastien Charles e Lipovetsky, esse diagnóstico

permite pensar em uma sociedade de excessos304, na contramão da virtude equilibrada e da

ponderação entre extremos em um sentido aristotélico.305 Para Geffré, diante da

recrudescência do fanatismo religioso é preciso superar um pessimismo estéril, focando nas possibilidades positivas do diálogo entre as religiões em uma atitude de contraste que convida a repensar a relação não só com o sagrado, mas com o próximo, que, apesar de suas razões, também está em busca de uma razão maior para a sua vida.306 Nesse ínterim, Panasiewicz

afirma que “a palavra diálogo começa a se destacar como uma nova exigência para a reflexão teológica”307, por despertar uma nova sensibilidade em face aos valores humanos e espirituais

emergentes nas diversas tradições culturais e religiosas da humanidade.

Há atualmente em cada religião, segundo Geffré, pessoas dispostas a ultrapassar suas querelas ancestrais, renunciando a uma vontade de dominação, a fim de se pôr a serviço da humanidade. Cada vez mais as religiões têm consciência de sua responsabilidade na construção de um mundo mais humano, justo e pacífico. Porém, “nem tudo são rosas”. Há resistências, tidas como inaceitáveis pelo estado de consciência da sociedade hodierna. Na contramão da vontade de diálogo, renascem integrismos, considerados escandalosos para os observadores atentos das religiões. Geffré interpreta as atitudes de intolerância e violência por motivos religiosos como não majoritárias e contraditórias em relação ao espírito da época atual. Prova disso é que quando ocorrem atentados terroristas ou atos violentos que maltratam ou matam em nome de Deus ou de algum ideal religioso, isso gera indignação na consciência coletiva. Geffré defende que quando as religiões são fiéis à sua mensagem fundamental, não se desviando por ideologias radicalistas ou extremistas, elas podem ser consideradas importantes para amenizar a violência da história, tendo assim, um papel social relevante para a pacificação dos conflitos e o cuidado do planeta.308 O Papa Paulo VI enfatiza, nesse sentido,

a importância de um diálogo honesto que evite um senso de conquista (ES 59). Essa atitude colabora no estabelecimento de um ethos social de paz e não violência.

303 Cf. RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Teologia, pluralismo e alteridade ecumênica, p. 111.

304 Cf. AUGÉ, Marc. Não lugares, p. 27-41; CHARLES, Sébastien. Cartas sobre a hipermodernidade, p. 22;

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal, p. 331.

305 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, II, 6. 306 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 13.

307 PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 99. 308 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 23.

Diante dos perigos da modernidade técnico-instrumental e do aumento de extremismos ideológico-políticos, Geffré acredita que os valores promovidos pelas religiões tornam-se mais urgentes do que nunca, pois servem de sinal para a conservação e o desenvolvimento da diversidade das culturas e ajudam a discernir o que converge para a edificação do humano autêntico. Por isso, as religiões têm diante da humanidade uma vocação perene e inalievável como instâncias de sabedoria que lembram que o ser humano não se define exclusivamente pelos vínculos de poder e de domínio, mas, principalmente, pelas relações de fraternidade, solidariedade e amor, e pelo aprendizado da cultura, da criatividade, da meditação e da contemplação.309 Tillich defende que a religião, como estado de apreensão por uma

preocupação final, contém a resposta para a questão do sentido da vida, qualificando todas as outras preocupações como preliminares.310 Sendo assim, o encontro entre as religiões é uma

urgência humana vital, e como tal, precisa compor o horizonte da reflexão teológica.

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