• Nenhum resultado encontrado

1.2 A TEOLOGIA SOB UMA RACIONALIDADE HERMENÊUTICA

1.2.2 Nova abordagem das relações entre Escritura e dogma

A teologia hermenêutica, segundo Geffré, concede um novo tratamento às fontes da revelação, empreendendo uma nova abordagem das relações entre Escritura e dogma. Geffré considera a Escritura como uma coletânea inspirada de testemunhos que remetem a eventos históricos, cuja leitura, dentro da mesma tradição em que o texto foi escrito, produz significações diversas. Por isso, a mensagem da Escritura nunca é um dado do qual basta se apropriar, e a transmissão de sua mensagem não é a repetição de um saber constituído, mas a atualização sempre nova da mensagem revelada. Sendo assim, o teólogo não pode simplesmente apelar à Escritura para justificar ou confirmar os ensinamentos do magistério. Antes, é a própria leitura da Escritura que conduz a uma reinterpretação dos enunciados dogmáticos. Para Geffré, é preciso evitar identificar tanto a Escritura quanto o dogma com a Palavra de Deus, pois ambos testemunham a apropriação progressiva do mistério divino revelado pela comunidade eclesial. Nesse sentido, como hermenêutica atualizante da Palavra de Deus, a teologia é a busca constante pelos sinais de Deus que se manifestam na linguagem como ontophania – manifestação de ser – e, portanto, como lugar teológico.214

Geffré alerta que é preciso renunciar tanto à ilusão positivista de uma objetividade textual, quanto à pretensão romântica de uma congenialidade215 entre leitor de hoje e autor do

passado. A compreensão dos textos da Escritura passa pela ascese da leitura, na qual as potencialidades do texto vêm à tona à consciência do leitor. Nesse sentido, toda leitura importante desperta novas expectativas e abre novos horizontes, constituindo-se em uma possibilidade de transformação do leitor. O que é relevante na leitura da Escritura, diz Geffré, é o novo ser que o leitor se torna enquanto se expõe ao texto. Além disso, Geffré enfatiza que uma hermenêutica que se atém ao mundo do texto e não à ideia metafísica de um sentido já existente na intencionalidade de um querer dizer do autor, ajuda a ultrapassar uma concepção imaginária de revelação. Geffré pretende evitar uma concepção de inspiração verbal como

214 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 23-29; Id. Un nouvel âge de la théologie, p. 62-63.

Segundo Geffré, a vivacidade da Palavra de Deus está vinculada à sua atualização interpretativa, a qual ocorre em dois momentos distintos, porém, interconectados: consideração da natureza da Escritura em sua constituição dialética entre os fatos/eventos testemunhados e o fenômeno de escritura; tradição interpretativa contextualizada e aberta para as situações sempre novas (Cf. Id. De Babel a Pentecostes, p. 174). Sendo assim, só é possível acolher a Palavra de Deus em sua vivacidade na medida em que se conjuga fidelidade e inovação no processo de atualização da sua mensagem.

215 Sobre a questão da congenialidade entre o leitor de hoje e o autor de um texto do passado, Schleiermacher

concebe que a tarefa da hermenêutica consiste na repetição do processo criador de sujeitos que compartilham uma genialidade. Trata-se de uma experiência romântica do todo participado por indivíduos afins (Cf. GARCÍA GÓMEZ-HERAS, José María. En los orígenes de la hermenéutica contemporánea, p. 34). Essa visão psicologista da atividade hermenêutica é compartilhada também por Dilthey.

ditado divino216, reafirmando com o Concílio Vaticano II que “para escrever os livros

sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele quisesse” (DV 11), ou seja, ao lado da autoria divina da Escritura, está a autoria humana, o que faz da Escritura uma obra de caráter teândrico. A Palavra inacessível de Deus se torna presente na palavra humana através de textos elaborados por autores condicionados por suas capacidades mentais e linguísticas – essa dinâmica aponta para o mistério da encarnação do Logos na humanidade de Jesus.217

Dupuis afirma que a Escritura judaico-cristã contém a Palavra de Deus pronunciada em palavras humanas218, e que, por isso, nem todo o conteúdo da Escritura é Palavra de Deus

ou pode esgotar tudo o que Deus tem a dizer.219 Geffré confirma esse posicionamento

salientando que “a Palavra ausente de Deus é sempre mediada por textos”220, através dos quais

“se torna Palavra de Deus para os homens.”221 Nesse sentido, a Escritura é a colocação por

escrito dos testemunhos prestados aos eventos libertadores de Deus na história. A passagem da oralidade para a Escritura manifesta o distanciamento entre o evento bruto e o testemunho interpretativo. No momento em que o testemunho interpretativo é colocado por escrito, torna- se patrimônio durável da comunidade interpretante, sendo esse o ponto inicial do processo da tradição. Sendo assim, da mesma forma como é possível e necessário empreender uma interpretação das Escrituras fundadoras do cristianismo, com senso crítico, buscando perceber as inúmeras possibilidades abertas pela experiência interpretativa, com maior razão é preciso reler criteriosamente as formulações dogmáticas expressas pela tradição, pois seria paradoxal ter uma liberdade menor para interpretar os textos dos enunciados dogmáticos do que para interpretar os textos da Escritura. Portanto, a teologia como ciência hermenêutica da experiência cristã fundamental tem a tarefa de interpretar não apenas as Escrituras fundadoras do cristianismo, mas também os escritos da tradição, em especial, as formulações dogmáticas, a fim de atualizar a mensagem da revelação cristã para o tempo atual.222

216 Segundo Geffré, os fundamentalistas geralmente entendem os textos da Escritura como ditados diretamente

pelo Espírito aos hagiógrafos – considerados transmissores passivos da Palavra de Deus (Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 104). Essa questão foi superada pela exegese moderna e pelo magistério oficial da Igreja. A respeito disso, ver: GOMES, Tiago de Fraga. Hermenêutica teológica e teologia da revelação em Claude Geffré, p. 68-69.

217 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 44-46; Id. Ibid., p. 106; Id. Lé réalisme de L’incarnation dans la

théologie du Père M-D Chenu, p. 394.

218 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 342. 219 Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 344. 220 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 47.

221 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 169.

Documentos relacionados