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1.3 O NEOFUNDAMENTALISMO COMO UMA NECESSIDADE ANGUSTIANTE DE CERTEZA

1.3.3 O integrismo doutrinal como recusa da hierarquia das verdades

Em matéria de doutrina, há outra forma de fundamentalismo, também conhecido em âmbito católico, segundo Geffré, como integralismo ou integrismo doutrinal, o qual pretende sacralizar a tradição dogmática da Igreja, colocando no mesmo plano de prioridade todos os ensinamentos eclesiais, recusando-se a aceitar a hierarquia das verdades defendida pelo Concílio Vaticano II (UR 11) como um princípio orgânico prudencial que mune o fazer teológico contra a tentação das generalizações/simplificações apressadas em questões doutrinais e axiológicas. A hierarquia das verdades concebe o conjunto da fé cristã como um todo orgânico, cujas partes estão em relação vital com seu centro, o mistério pascal de Cristo, e ajuda a discernir entre o que é substancial e o que é acidental na mensagem cristã.268

267 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 118-127.

268 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 53; Id. Ibid., p. 88-89. O termo integrismo surge no final do

século XIX na Espanha e indica uma corrente política cujo objetivo consistia em impregnar toda a vida social com um catolicismo intransigente, recusando-se a aceitar as distinções entre sagrado e profano, religioso e secular, laico e confessional (Cf. FOUILLOUX, Étienne. Integrismo católico e direitos humanos, p. 11). De modo geral, o integrismo refere-se à resistência de certos católicos conservadores a se adaptar às condições da sociedade moderna, especialmente em questões doutrinais. Geffré emprega o termo integrismo para designar o movimento doutrinal que, em âmbito católico, se recusa a aceitar as orientações teológico-pastorais do Concílio Vaticano II, enquanto que o termo integralismo refere-se ao movimento católico de resistência à modernidade iniciado nos primórdios do século XX. Sendo assim, o integrismo diz respeito a um conflito interno, ad intra, em relação à própria Igreja, e o integralismo refere-se a um conflito externo, ad extra, em relação à sociedade.

Na história do cristianismo, por pressões internas e externas, o integrismo doutrinal foi instrumentalizado como recurso belicoso na reafirmação da institucionalidade. Prova disso foram os conflitos mal resolvidos pelo catolicismo romano na época da controvérsia

modernista.269 Geffré afirma que durante o século XIX, o magistério se declarou contra muitos

valores disseminados pela modernidade. Por uma incompreensão ao estado de consciência da época, considerava que “a razão das Luzes minava a autoridade da revelação e da tradição, e o surgimento das sociedades democráticas contestava diretamente o princípio hierárquico da sociedade-Igreja.”270 Essa incompreensão histórica levou o Papa Pio IX a publicar em 8 de

dezembro de 1864 a Encíclica Quanta Cura contendo um apêndice intitulado Sílabo que condena as pretensões sacrílegas da modernidade (DzH 2901-2980).271

Na medida em que a Igreja de Roma vai se sentindo cada vez mais acuada e agredida, em virtude de uma crise política, ocasionada pelo processo de unificação da península italiana conhecido como risorgimento, as posturas vão se acirrando por parte do magistério que chega a convocar um concílio ecumênico para discutir sobre as ameaças à sua autoridade. Nesse clima extremamente conflituoso, o Concílio Vaticano I (1869-1870) promulga em 18 de julho de 1870 a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, afirmando os dogmas do primado e da infalibilidade pontifícia.272 O Concílio Vaticano I não foi concluído oficialmente por causa da

tomada de Roma em 20 de setembro de 1870. Com a tomada de Roma, o Papa Pio IX se declara prisioneiro no Vaticano.273 Essas crispações políticas levaram a um acirramento dos

ânimos, gerando atitudes de fechamento institucional e reafirmação doutrinal.

269 A controvérsia modernista – entre o final do século XIX e o início do século XX – pode ser interpretada como

a consequência de uma inaptidão ao diálogo entre o magistério católico e a razão crítica emergente da época das Luzes, convertendo-se em uma postura conservadora diante dos avanços da modernidade em questões teológicas e doutrinais, em virtude da possibilidade de um “conflito entre a autoridade da razão e a autoridade de uma revelação sobrenatural” (GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 240). O termo modernismo aparece pela primeira vez na Encíclica Pascendi Dominici Gregis sobre as doutrinas modernistas publicada em 8 de setembro de 1907 pelo Papa Pio X (DzH 3475-3500). Como consequência da publicação dessa encíclica, o próprio Papa Pio X formulou o juramento antimodernista, conforme o Motu Proprio Sacrorum Antistitum de 1º de setembro de 1910 (DzH 3537-3550), obrigatório para o clero católico, o qual só foi abolido pelo Papa Paulo VI em 1967, como recepção do espírito conciliar, dinamizando uma renovação da teologia católica.

270 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 213.

271 Segundo Geffré, diante dos desafios que a modernidade impõe, é possível ter, ao menos, três atitudes: atitude

antimoderna: tradicionalismo ou integrismo; atitude liberal: ajuntar os recursos positivos da religião e da modernidade; atitude profética e mística: reinterpretar o cristianismo em função da cumplicidade entre o Evangelho e as aspirações da modernidade (Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 218). Contudo, infelizmente, na época da controvérsia modernista, a atitude do magistério eclesiástico foi antimoderna.

272 Sobre o primado pontifício, a Pastor Aeternus afirma: “se, portanto, alguém disser não ser por instituição do

próprio Cristo, ou de direito divino, que o bem-aventurado Pedro tem perpétuos sucessores no primado sobre a Igreja universal; ou que o Romano Pontífice não é o sucessor do bem-aventurado Pedro no mesmo primado: seja anátema” (DzH 3058). Sobre a infalibilidade pontifícia, defini que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, “em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual o Redentor quis estivesse munida a sua Igreja quando deve definir alguma doutrina referente à fé e aos costumes” (DzH 3074).

Foi preciso deixar “baixar a poeira”, esperar pelo momento em que novamente fosse possível estabelecer uma reflexão equilibrada e ponderada, não motivada por fatores políticos. Geffré afirma que “após a crise modernista e após um longo período de tateamentos pontuados de tentativas de restauração, foi preciso aguardar o Vaticano II para proceder a discernimentos”274 sobre a importância da secularização, da liberdade de consciência e da

laicidade do Estado como garantia da pluralidade – inclusive religiosa – na esfera pública. A Igreja volta a assumir, como perita em humanidade275, as esperanças e as angústias das

pessoas de seu tempo (GS 1), consciente de viver e caminhar na história (GS 4). No entanto, a

Dei Verbum começa bem afirmando que “aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria,

revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade” (DV 2). Porém, ao dizer que “não se há de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo” (DV 4), evoca os fantasmas do passado de uma revelação como algo pretérito e cristalizado, pronto e fechado, que daí por diante viverá apenas de memória. Torres Queiruga afirma, nesse sentido, que Cristo é a plenitude da revelação, porém, está totalmente entregue à dinâmica da história.276 Portanto, ao relacionar a dimensão definitiva da

revelação em Cristo com um pensamento romântico-restauracionista, a Dei Verbum ainda está sob o risco de suscitar e sustentar ufanismos teológicos fundamentalistas e integristas.

Entretanto, de práticas integristas ad extra, anteriores ao Concílio Vaticano II, passa-se no pós-concílio, a tendências integristas ad intra. Ao assumir muitos dos valores da modernidade cultural, a Igreja católica provoca a reação de vários de seus representantes oficiais, como é o caso do cismático Dom Lefèbvre, que após condenar o Concílio Vaticano II como a causa da crise interna da Igreja, funda a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, com sede na Suíça. Lefèbvre acusa a liderança da Igreja de Roma de ser neomodernista e neoprotestante por compactuar com o Concílio Vaticano II.277 Outros movimentos de orientação

tradicionalista também reagem negativamente às inovações conciliares, embora sem romper oficialmente com a Igreja: Opus Dei, na Espanha; Comunione e Liberazione, na Itália; Catholic Traditionalist Movement e Orthodox Roman Catholic Movement, nos Estados Unidos. Em suma, ao fomentar um conservadorismo doutrinal enrijecido, o integrismo impede a elaboração de uma compreensão integral da economia da revelação cristã.278

274 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 213.

275 Sobre a questão da Igreja considerada perita em humanidade, ver o discurso do Papa Paulo VI pronunciado

na sede da Organização das Nações Unidas em 4 de outubro de 1965 (DzH 4420-4425).

276 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a revelação, p. 281.

277 Cf. POULAT, Émile. Intégrisme. In: Encyclopaedia Universalis [en ligne]. 278 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 62-64.

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