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1.3 O NEOFUNDAMENTALISMO COMO UMA NECESSIDADE ANGUSTIANTE DE CERTEZA

1.3.1 No contraponto da renovação teológica

A pessoa humana, no fundo, anseia por fundamentos que lhe garantam segurança quanto ao seu ser e agir. A destruição ou perda de referências pode significar um caos identitário. Em tempos de crise, especialmente durante os processos em curso nas grandes viradas históricas, se faz necessário recompor os princípios norteadores da vida. Nesse contexto, dois dinamismos distintos podem ser assumidos pelos sujeitos: o primeiro é o processo comum empreendido a nível pessoal e social, e consiste na reconstrução dos valores paradigmáticos em perspectiva de avanço ou progresso; o segundo refere-se ao fundamentalismo e diz respeito à resistência às mudanças pela fixação no status quo ou pela tentativa de restauração de um passado perdido. Portanto, o fundamentalismo caracteriza-se como uma contrapartida conservadora à racionalidade crítica e um refúgio afetivo quando a identidade é abalada e a religião torna-se burocrática.247

O fundamentalismo nasce como reação aos valores emergentes da modernidade, tais como: antropocentrismo humanista, racionalidade técnico-científica, pluralismo de ideologias e pensamento utópico-revolucionário. O fundamentalista comporta-se como um oposicionista da renovação teológica em nome de um conservadorismo tradicionalista, imunizando-se contra as dúvidas e as críticas advindas da razão e incluindo-se em uma minoria pura e fiel que se gloria em relação aos “outros”, muitas vezes considerados como infiéis, ou mesmo, como inimigos, em torno dos quais se polariza a própria identidade. Em geral, o fundamentalista trata dos assuntos de fé com simplismo, excluindo em larga escala pontos de vista divergentes e opondo-se fortemente ao diferente, podendo, assim, incidir no fanatismo da opinião única e da rejeição ao diálogo como forma de pseudoafirmar-se. Entre os pecados cometidos pelos fundamentalistas, é possível destacar os seguintes: rejeição da instância hermenêutica na compreensão antropológica – cultural, histórica e literária – da Palavra revelada; restrição imanentista do mistério às fórmulas dogmáticas; inversão de valores, atribuindo-se menor relevância a valores centrais e maior importância a valores acidentais, gerando muitas dissensões; negação da liberdade de consciência.248

247 Cf. ROXO, Roberto Mascarenhas. Fundamentalismo, p. 7; LIMA, Anderson de Oliveira. O imaginário

religioso fundamentalista e a narratividade bíblica, p. 403; VALADIER, Paul. Crise da racionalidade, crise da religião, p. 289.

248 Cf. MARTY, Martin. O que é fundamentalismo, p. 14; ROXO, Roberto Mascarenhas. Fundamentalismo, p.

9-16. Segundo Panasiewicz, “o nascimento do movimento fundamentalista se insere no centro da modernidade. A modernidade foi o emergir da consciência autônoma, da consciência histórica e do espírito crítico” (PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso contemporâneo, p. 57). Esse novo cenário histórico possibilitou o desenvolvimento de novos métodos de leitura crítica das Escrituras, os quais, infelizmente, foram recepcionados e interpretados de forma pejorativa por movimentos cristãos de cunho puritano e conservador.

Paradoxalmente, o fundamentalismo é um movimento antimodernista que atua no chão da modernidade. Os fundamentalistas ao mesmo tempo em que criticam os valores veiculados pela modernidade cultural e tecnológica, usufruem das suas facilidades, sem peso na consciência. A reação fundamentalista incorpora elementos tipicamente modernos, tais como: o individualismo, dando a este uma dimensão soteriológica, independente da comunidade eclesial, considerada apenas como um meio de edificação e de salvação dos indivíduos preocupados prioritariamente com a própria alma; o racionalismo científico, buscando confirmar as asserções de fé com provas ou elucubrações de cunho científico, porém, abordadas de maneira simplista e instrumental; uso de recursos tecnológicos buscando beneficiar a disseminação dos ideais fundamentalistas com a máxima eficácia possível, a fim de conquistar cada vez mais adeptos.249

O fundamentalismo é basicamente uma contracultura que nasce no auge da crise da modernidade com suas incertezas. Na medida em que colapsa a crença moderna da certeza absoluta na racionalidade técnico-científica, emerge o fundamentalismo religioso como a tentativa de repor ao indivíduo em crise as bases para o seu projeto de vida. No fundo, a intenção do fundamentalista é recuperar valores que supostamente são positivos, tais como: a família, a honra, a moral e os bons costumes. No entanto, perverte esses valores quando se utiliza da violência e do terror para anular as ideias contrárias e alcançar os seus objetivos. Dentre as características mais marcantes do fundamentalismo religioso, citam-se as seguintes: discurso desprovido de fundamentação racional ou científica; entendimento dos dogmas da fé como realidades fixas e imutáveis, ignorando-se o contexto histórico de sua constituição e definição; literalismo bíblico; proselitismo militante. Os fundamentalistas são antimodernos que nascem e vivem no seio da modernidade, querendo influenciar as pessoas e a sociedade como um todo com a sua visão e os seus ideais, os quais são tremendamente sedutores para quem busca respostas simples para problemas complexos.250

O fundamentalismo seduz. Seduz porque oferece um fundamento epistêmico sólido – o saber certo, a verdade incontestável sobre a qual se pode construir o esplêndido edifício racional da ciência e da técnica. Seduz, porque oferece fundamento existencial seguro – a identidade fixa, que fundamenta o sentido da vida, uma autoridade suprema pseudoautônoma que nos livra da liberdade de viver sem Deus e contra Deus. Seduz, porque propicia um fundamento religioso inabalável – um deus controlável, não-arbitrário, sempre-presente, um Da-sein, mero existente entre os existentes.251

249 Cf. DUBIEL, Helmut. O fundamentalismo da modernidade, p. 19-20; VOLF, Miroslav. O desafio do

fundamentalismo protestante, p. 131.

250 Cf. COSTA, Otávio Barduzzi Rodrigues da. Das relações entre a modernidade e o fundamentalismo religioso,

p. 234-237.

É preciso dar uma atenção especial para esse fenômeno, pois se percebe cada vez mais, a nível de Brasil e de América Latina, que fundamentalistas, tanto católicos quanto protestantes, estão se envolvendo na política, e sua militância, em muitos casos, têm colocado em risco muitas das conquistas já consolidadas na área da democracia e dos direitos humanos. Os meios de comunicação, utilizados por muitas pessoas de forma acrítica, têm facilitado e favorecido a propagação de ideias fundamentalistas, conquistando muitos adeptos. A tentação de querer encontrar uma explicação para as agruras do cotidiano, com o intuito de estabelecer respostas estáveis em um mundo instável e caótico como o atual, talvez seja uma das grandes razões para o avanço fundamentalista. É irônico pensar que o fundamentalismo seja, ao mesmo tempo, o produto e a resposta para a instabilidade emergente no seio da sociedade moderna. Duas atitudes talvez possam ajudar a superar os aspectos negativos desse fenômeno: propor um retorno aos fundamentos constitutivos da identidade de cada grupo social, político ou religioso, cuidando que estes não contradigam as conquistas árduas da democracia, dos direitos humanos e do respeito às culturas e à liberdade religiosa; refletir sobre os limites da racionalidade técnico-científica e resgatar os saberes saqueados pela modernidade, tais como: a erudição histórica; a filosofia; a teologia; as éticas, as práticas e as crenças religiosas; as mitologias; os códigos culturais e sapienciais de povos originários.252

No contraponto da renovação teológica, os movimentos fundamentalistas surgem como uma recusa em acolher os resultados da exegese crítica e das pesquisas científicas, semelhante a uma reação pendular, que vai de um extremo ao outro, oscilando de uma postura crítica para uma atitude justaposta às mudanças que questionam os fundamentos tradicionais da fé. A atitude fundamentalista instaura na consciência humana um desequilíbrio entre as instâncias da fé e da razão, interpretando-as, muitas vezes, como se fossem contraditórias. A fim de prevenir esse posicionamento extremista, o Papa João Paulo II defende que não é possível renunciar à fé em nome de um racionalismo puro, ou dispensar a razão para alimentar um fideismo dogmático ou espiritualista. Nem só a razão, nem só a fé. Para crer é preciso entender (FR 16-23) e para entender é necessário crer (FR 24-35). É imprescindível superar o drama da separação entre fé e razão (FR 45-48), comprendendo-as como duas dimensões complementares para que o espírito humano empreenda sua busca pela verdade. Nesse sentido, Geffré defende que os resultados de uma análise crítica da Escritura e da doutrina dogmática, antes de serem uma ameaça à fé, são, na realidade, libertadores.253

252 Cf. COSTA, Otávio Barduzzi Rodrigues da. Das relações entre a modernidade e o fundamentalismo religioso,

p. 240-241.

O fundamentalista opõe-se ao senso crítico e fomenta um jeito obtuso de viver a fé e assumir a doutrina, cuidando mais da letra dos dogmas e das normas que de seu espírito e de sua inserção no processo cambiante da história. Esquece-se que para atualizar a essência de um enunciado linguístico é preciso interpretar a verdade que lhe é essencial. Diante de um contexto cada vez mais plural e desafiante do ponto de vista da conciliação entre múltiplas visões de mundo, a afirmação de um único ponto de vista, sem discussão ou discordância, no fundo, remete ao anseio de um fundamento absoluto e de uma verdade indefectível. O fundamentalista deseja proteção, por isso, quer se preservar das contraposições, pois não quer correr o risco de se perder, colocando em xeque a sua versão da verdade, que, na sua visão, deve ser a única universalmente válida. O fundamentalista opta por ficar em sua zona de conforto ao invés de ficar à mercê do erro e do insucesso. Para o fundamentalista, a vitória já está garantida, basta permanecer fechado e protegido em sua própria verdade.254

1.3.2 O fundamentalismo literalista no reverso de uma leitura histórico-crítica da

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