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2.2 A ECONOMIA DO LOGOS ENCARNADO COMO SACRAMENTO DE UMA ECONOMIA MAIS VASTA

2.2.3 Um acabamento não totalitário

Segundo Ward, o distintivo da revelação cristã é que Deus se encarnou em um homem concreto, em uma forma histórica particular. Nesse sentido, a vida de Jesus é a auto-expressão do eterno no tempo, da ilimitação da vida divina em uma vida humana determinada. Não é como no islamismo uma revelação como um conjunto de leis ou doutrinas ditadas por Deus. Não é como no hinduísmo uma experiência interior de um Eu Supremo. Não é como no budismo uma experiência de libertação da tristeza, do desejo e do apego. Não é como no judaísmo uma divulgação divina através do controle extraordinário ou milagroso de eventos naturais e históricos. A fé cristã fundamenta sua doutrina revelada na atividade salvadora de Deus, cujo centro é uma figura histórica.605

No concerto das religiões do mundo, o cristianismo parece ser uma excessão. Não só porque, como toda religião, pretende a uma determinada universalidade, na medida em que propõe uma mensagem de salvação que se dirige a todo ser humano. Mas porque sua mensagem é necessariamente universal, na medida em que se refere, toda inteira, à mediação histórica de Jesus Cristo, que coincide com a irrupção do próprio Absoluto que é Deus. Nenhuma outra religião tem a pretensão de invocar um fundador que não é apenas um profeta, mas o próprio Filho de Deus.606

Entretanto, a experiência cristã não substitui outras experiências humanas autênticas do divino, as quais, afirma Duquoc, desafiam o cristianismo a uma escuta generosa.607 Geffré

assevera que apesar do Evangelho ter um valor universal, se não assume a dinâmica kenótica, não encontra alteridade, sendo assim, é infiel à sua vocação originária, pois, para o cristianismo, a prática da alteridade é “uma exigência de natureza, visto que ele confessa a alteridade de um Deus sempre maior.”608 Em virtude disso, o cristianismo é convidado a

reconhecer o diferente e os valores que este lhe acrescenta. A identidade cristã define-se não como uma perfeição adquirida, mas em termos de vir-a-ser, de êxodo, de peregrinação e de serviço ao outro, que, segundo Torres Queiruga, em princípio, é sempre um portador da presença real de Deus.609 Por conseguinte, Geffré afirma que é preciso “reinterpretar a noção

de cumprimento em sentido não totalitário”610, com o intuito de não integrar a

irredutibilidade constitutiva das outras religiões. Sendo assim, a teologia cristã, enquanto theologia viatorum que se coloca a caminho, é chamada a reconhecer a amplitude da

economia da revelação, a qual excede as fronteiras do cristianismo.

605 Cf. WARD, Keith. Religion and revelation, p. 193-222. 606 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 315. 607 Cf. DUQUOC, Christian. A teologia no exílio, p. 73. 608 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 136.

609 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a revelação, p. 346. 610 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 81.

Von Balthasar fala da não catolicidade da Igreja católica em sua dimensão histórica.611

A ruptura instauradora da Igreja católica em relação ao judaísmo e às outras religiões, não substitui ou abole a parte irredutível de verdade das quais essas religiões são testemunhas. Para Dupuis, “toda verdade vem de Deus que é Verdade e deve ser honrada enquanto tal, qualquer que seja o canal através do qual chega até nós.”612 O reconhecimento de uma

complementaridade entre a verdade do cristianismo e das diversas religiões, com suas escrituras sagradas, seus imperativos éticos e suas filosofias de vida, é um dos elementos constitutivos mais fundamentais para a elaboração de uma teologia aberta e criativa. Geffré afirma que o cristianismo histórico não pode ter a pretensão de integrar ou substituir a totalidade das riquezas das outras religiões. Segundo Geffré, os valores autênticos encontrados nas outras religiões são recapitulados em Cristo, mas não são compreendidos como inferiores ou transitórios, pois não desaparecem completamente quando encontram seu cumprimento no cristianismo, configurando, assim, o que se pode designar como um

acabamento não totalitário das outras religiões não cristãs no cristianismo. Cada religião

contém algo de próprio e irredutível na medida em que pode ser suscitada pelo Espírito de Deus. Para Geffré, apesar das religiões encontrarem o seu acabamento último no mistério de Cristo, isso não significa necessariamente que elas serão tematizadas no cristianismo histórico.613 Segundo Torres Queiruga, as religiões têm um valor em si, pois Deus está

realmente presente nelas. Porém, o cristianismo histórico não consegue abarcá-las, devido a sua provisoriedade escatológica.614

A dialética da particularidade e de sua ultrapassagem pela abertura ao outro, faz do cristianismo, não uma totalidade fechada, mas o define em termos de relação e diálogo com as outras tradições religiosas. Segundo Geffré, esse é o traço característico e distintivo do cristianismo como religião. Prescindindo de todo e qualquer imperialismo na ordem da verdade, trata-se de ser o sinal daquilo que lhe falta, indo ao encontro de novas perspectivas de compreensão e vivência do mistério divino. A singularidade do cristianismo no concerto das religiões do mundo, não exclui, nem absorve, as peculiaridades inerentes às outras tradições religiosas, mas se relaciona com estas, tendo em vista não simplesmente a defesa da própria verdade, mas almejando um acabamento não totalitário dos valores que emergem da plenitude do mistério de Cristo. Além disso, no percurso dialógico inter-religioso, há inevitavelmente um encontro intercultural, com um consequente processo de inculturação

611 Cf. VON BALTHASAR, Hans Urs. De l’intégration, p. 161-166.

612 DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, p. 350. 613 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 82-83.

recíproca, que transforma a ambos, doravante mudados na forma como encarar o outro e a si mesmos. Nesse sentido, o contexto pluralista atual convida os cristãos a promoverem um cristianismo mundial e diversificado615, que mantenha a unidade do espírito humano e das

suas legítimas aspirações universais, no entanto, sem cair no modelo cultural unidimensional da globalização que planifica as identidades. Como afirma Torres Queiruga, paradoxalmente, a própria experiência cristã não é posse dos cristãos, mas é patrimônio da humanidade, por isso, destina-se a ser partilhada com todos, porém, sem anular suas peculiaridades.616

Geffré acredita que a teologia clássica da promessa e do cumprimento não respeita suficientemente a irredutibilidade de cada tradição religiosa.617 Além disso, para Gutiérrez, a

teologia do cumprimento ou do acabamento leva a fundamentar uma teologia da conquista ou

da dominação, com consequências nefastas aos valores do Evangelho, conforme vê-se nos

debates da teologia jurídica espanhola do século XVI em torno da justificação da dominação dos indíos, com o intuito de evangelizá-los.618 A radicalização da teologia do acabamento

conduz a uma dinâmica de totalização da identidade e de anulação da alteridade. Por isso, Geffré afirma que o cristianismo não pode ter a ambição de deter a totalidade das verdades da história religiosa da humanidade. Além de ser impossível, isso é injustificável. Ademais, mesmo que o cristianismo quisesse integrá-las, arriscaria comprometer sua própria identidade. Nesse sentido, acreditar na possibilidade de um pluralismo religioso de princípio, significa aceitar as consequências decorrentes da contingência histórica do próprio cristianismo e da alteridade irredutível de cada uma das religiões. Geffré toma distância em relação a um

cristianocentrismo de índole exclusivista. Para Geffré, a defesa da unicidade da mediação de

Cristo não leva necessariamente a sacrificar a pluralidade das verdades religiosas de que dão testemunho as outras religiões, mas lança como desafio para a teologia cristã a instauração de uma nova forma de se relacionar com a verdade, no sentido de que a consciência cada vez mais apurada da pluralidade das verdades religiosas põe em questão o conforto das certezas cristãs.619 Em suma, a experiência do pluralismo religioso convida a encontrar o sentido

original da verdade cristã pelo constante sair de si, colocando em relevo o respeito pela verdade existencialmente plural e essencialmente escatológica, sendo assim, um apelo incessante ao diálogo e à conversão na perspectiva de uma alteridade irredutível.

615 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 83-85.

616 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a revelação, p. 347. 617 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 137-138.

618 Cf. GUTIÉRREZ, Jorge Luis. A controvérsia de Valladolid (1550), p. 244. 619 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 138-139.

2.3 O DIÁLOGO ENTRE AS RELIGIÕES NA PERSPECTIVA DE UMA ALTERIDADE

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