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3 LOGOS COLABORATIVO: o diálogo entre as religiões em prol de uma cultura de paz e não violência

3.1 INTOLERÂNCIA E VIOLÊNCIA RELIGIOSA COMO DEMONIZAÇÃO DO DIFERENTE

3.1.3 O outro visto como uma ameaça

No contexto da convivência, o discurso e a ação possuem uma função epifânica dos sujeitos humanos, diferentemente do contexto da rivalidade, no qual os mesmos possuem um papel estratégico de anulação e de derrota do outro. Segundo Arendt, violência e diálogo se excluem, pois, a pura violência é muda.754 Como afirma May, não se pode dialogar com uma

pessoa inimiga, pois se o diálogo for possível, já não será mais inimiga. Na medida em que acontece o enlace dialógico, estabelece-se um laço empático entre as pessoas em virtude da própria língua, enquanto estrutura compartilhada e capacidade de identificar-se com o outro. A dimensão simbólica do diálogo remete a colocar (ballein) junto (syn), ao contrário do diabólico como o que separa e desintegra, quebrando relações. O diálogo é, por isso, símbolo de uma unidade na diferença, onde o intuito não é a destruição do outro, mas a edificação mútua.755 Lévinas afirma que o diálogo é o ato pelo qual alguém renuncia à violência para

entrar em relação com o outro, sendo o exercício do mesmo, o próprio acontecer da paz.756

Segundo Frecheiras, em todo diálogo pressupõe-se um encontro, o qual requer que se vigie a respeito de dois aspectos: a aparência de perigo do outro, que pode não ser real, mas que encarcera o interlocutor em seus preconceitos, impedindo-o de se relacionar de forma saudável; o perigo real que a alienação do outro pode significar de fato quando este não está disposto a um encontro real e genuíno, sem imposições e agressões desrespeitosas à opinião alheia. Nesse sentido, entrar em um diálogo requer um exercício constante de autocrítica e de crítica alheia: autocrítica a respeito dos conceitos e axiomas irrefletidos em relação ao outro; crítica sobre a possibilidade do outro estar alienado, sendo assim, impositivo, autoritário e fechado à autocrítica. Quando estes requisitos são observados, o diálogo, enquanto encontro efetivo, possibilita a desconstrução de preconceitos e de generalizações apressadas em relação ao outro, ampliando a visão da realidade. Em suma, todo diálogo incita a pensar. Pensar não simplesmente no sentido de um conteúdo gnosiológico a adquirir, mas como um exercício da liberdade que depende da abertura do espírito e do assentimento da vontade, como uma atitude de ampliação do próprio horizonte de sentido.757 Sendo assim, o diálogo inter-religioso

é sempre um desafio, pois situa-se no nível axiológico, no qual se está imerso, exigindo um

sair de si mesmo, da ipseidade, do mundo egótico, para vislumbrar um além de si, que é o outro em sua alteridade irredutível.

754 Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana, p. 35. 755 Cf. MAY, Rollo. Poder e inocência, p. 51-52. 756 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. Difficile liberté, p. 19.

Segundo Geffré, a grande tentação será sempre não respeitar de maneira suficiente a alteridade irredutível de cada tradição religiosa.758 Dussel observa que durante as guerras de

conquista, no séc. XVI, especialmente no que diz respeito à exploração do Novo Mundo, os europeus se baseavam no mito do desenvolvimento para fundamentar a sua visão de superioridade sobre outros povos, culturas e religiões, os quais não eram considerados como outros, mas como algo a ser conquistado, colonizado, modernizado e civilizado. A boa cultura era aquela que se assemelhava ao estilo de vida europeu, e o que destoava disso, estava fadado a ser desqualificado e encoberto.759 Para Wirth, Mo Sung e Míguez, a vinculação das

estratégias de expansão do catolicismo romano ao colonialismo ibérico, não raro são lembradas negativamente como coniventes aos massacres e à escravidão de índios e negros.760

Trazendo essa reflexão para o tempo atual, Bandeira enfatiza que essa perspectiva de inferiorização e de negação do outro é alienante, antidialógica e anti-humanista, sendo necessário valorizar a pluralidade cultural e religiosa – trabalhada, de modo especial, pelas teorias pós-coloniais – como um elemento indispensável para o bom convívio entre as pessoas em sociedade. É preciso tomar cuidado também para que não ocorra uma folclorização do diferente e da sua cultura, pois isso, é um empecilho para a vivência de uma alteridade real, não permitindo que a humanidade do outro se revele na relação dialógica.761

Na esteira das inferiorizações, das negações e das intolerâncias preconceituosas praticadas ao outro, ao diferente, Paulo Freire alerta que o mal causado ao outro acaba por gerar um mal naquele que o perpetra, no sentido de que, a violência dos opressores, os desumaniza a si mesmos. A negação do outro é uma via de mão dupla, pois gera a negação da plenitude de si mesmo.762 Para Bandeira, o que está em jogo é a humanização em um sentido

ontológico, pois a mesma, requer que se saia da zona de conforto e da estabilidade das próprias certezas e concepções já elaboradas, a fim de enfrentar os questionamentos e as incertezas da vida que causam insegurança e temor por aquilo que pode abalar as razões fundamentais da própria existência, alargando os horizontes de aprendizagem. No entanto, infelizmente, o medo do novo leva ao afastamento do outro em detrimento da afirmação de uma ipseidade individualista e egocêntrica, com o intuito de preservar a segurança da estabilidade, ao invés de se aventurar pelos caminhos desafiantes da plenificação humana. A negação ao diálogo com o outro, é uma tentativa de proteger patrimônios e propriedades, e,

758 Cf. GEFFRÉ, Claude. Un salut un pluriel, p. 23.

759 Cf. DUSSEL, Enrique. 1942, o encobrimento do outro, p. 36.

760 Cf. WIRTH, Lauri Emilio; SUNG, Jung Mo; MÍGUEZ, Néstor. Missão e educação teológica, p. 18. 761 Cf. BANDEIRA, Wesley Silva. A negação do outro, p. 77-82.

mais do que isso, tem a intenção de afastar o sentimento de vulnerabilidade contra possíveis ameaças. A superação dessa situação de alienação no reconhecimento do outro, requer disposição para colocar o ego na fronteira, abrindo-se para a insegurança da vida.763 Isso só

será possível, segundo Mo Sung, com o advento de uma nova espiritualidade que encante para o diálogo, para a criatividade e para as causas nobres e solidárias da humanidade.764

Para Schillebeeckx, o desejo de superioridade constitui um obstáculo para o convívio entre as pessoas e entre as diferentes culturas e religiões. Toda violência em nome de valores ou dogmas superiores, sejam eles ideológicos ou religiosos, é essencialmente má. A pretensão de uma religião de ser a única religião verdadeira é fundamentalmente falsa e violenta, pois nega a legitimidade de existência de outras religiões. Nesse sentido, é equivocado e abusivo estabelecer uma conexão direta entre determinada experiência religiosa do Absoluto e uma ordem cultural e sócio-política específica, constituindo-se, assim, em uma violação dos direitos humanos fundamentais, em nome de uma pretensão imperialista.765 Segundo Girard,

na medida em que dois desejos convergem para o mesmo objeto – nesse caso, a custódia da verdade –, se instala a rivalidade, sendo necessário recorrer à violência contra uma vítima expiatória para liquidá-la, substituindo, assim, o todos contra todos pelo todos contra um. Nesse sacrifício expiatório, a violência é sacralizada.766 Nessa compreensão girardiana,

quando todos se unem de forma violenta contra a vítima, cria-se a comunidade. Sendo assim, a violência nasce de uma necessidade antropológica e sociológica, antes mesmo de significar algo especificamente religioso. Seguindo essa linha de raciocínio, o outro, o diferente – aquele que destoa da maioria, eleito como bode expiatório –, precisa ser sacrificado, para que a ameaça seja eliminada.767

É preciso ver o outro não como algo instrumentalizável, mas em sua diferença, não reduzível à perspectiva do mesmo. Como afirma Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito a ser iguais, quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”768 A igualdade de dignidade e a diferença de identidades são

fundamentais para o reconhecimento do ser do outro. Girard e Vattimo criticam o pensamento forte da metafísica como redução violenta do ser à objetividade racional. Ao enfraquecimento do pensamento absolutista e objetivante, corresponde a aniquilação da violência do sagrado.

763 Cf. BANDEIRA, Wesley Silva. A negação do outro, p. 83-86. 764 Cf. SUNG, Jung Mo. Educar para reencantar a vida, p. 145. 765 Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Religião e violência, p. 168-175. 766 Cf. GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 184.

767 Cf. GIRARD, René. O bode expiatório, p. 37-38; Id. A rota antiga dos homens perversos, p. 6-7; BASTOS,

Aguinaldo de; CABRAL, Alexandre M.; REZENDE, Jonas. Ontologia da violência, p. 165.

A kênosis ou pensiero debole – rebaixamento ou enfraquecimento do pensamento forte, na dinâmica do Logos encarnado – manifesta a dissolução da reivindicação metafísica da objetividade.769 Para Vattimo, a kênosis cristológica aponta para um Deus não violento e para

a dessacralização de toda violência.770 Por isso, afirma Kirk, os cristãos precisam se engajar na

solução concreta dos conflitos, pois a superação da violência e a edificação de uma cultura de paz, faz parte da missão cristã. A fim de que os cristãos empreendam uma ação efetiva para a superação da violência, é necessário que sejam exemplo de como resolver conflitos, compreendam as causas da violência e aprendam a aplicar os princípios de transformação de conflitos, os quais são: prevenção, resolução e tratamento das consequências dos conflitos.771

Rocha e Oliveira afirmam que, assim como Jesus entrou na história por meio da

kênosis, não usando seu direito de ser tratado como Deus, mas se despojando (Fl 2,6-7), sob

os condicionamentos de um contexto concreto, e expondo-se, assim, a conflitos e resistências, é preciso desfazer-se dos discursos autoritários, identificados com verdades superiores, a fim de assumir uma atitude de abertura. Um diálogo respeitoso e não violento, solidário com a condição do outro, ajuda a superar os desejos competitivos e a olhar o outro não como uma ameaça, mas como um companheiro de jornada.772 Nesse sentido, para Geffré, é necessário

colaborar para a edificação de uma cultura de paz e não violência diante de intolerâncias, fanatismos e fundamentalismos que emergem no contexto pluricultural e plurirreligioso atual, a fim de respeitar o outro em sua diferença constitutiva. O caminho de superação da violência não é o caminho da afirmação de si pela anulação do outro, mas sim, o caminho da integração da identidade na alteridade, através da reconciliação e do estabelecimento de condições de justiça.773 Como afirma Grümme, é preciso que os cristãos lancem um olhar para além de si

mesmos, a fim de serem efetivos na esfera pública, envolvendo-se ativamente nas lutas por justiça e paz para todas as pessoas. Esse olhar ajudará a perceber o outro não mais como um concorrente ou uma ameaça, mas como o próximo que precisa ser amado (Mt 22,39) e que eventualmente necessita de auxílio (Lc 10,30-37), ou como aquele que possui uma causa semelhante, mesmo que sob outros referenciais doutrinais ou institucionais (Mc 9,40).774 O

olhar fraterno é inerente à condição cristã e aponta para um diálogo colaborativo em prol da união de esforços em vista da edificação de uma cultura de paz e não violência.

769 Cf. GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Cristianismo e relativismo, p. 86; Id. Ibid., p. 90-91. Sobre isso, ver:

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A ontologia em debate no pensamento contemporâneo, p. 30.

770 Cf. VATTIMO, Gianni. Creer que se cree, p. 52-54.

771 Cf. KIRK, J. Andrew. O que é missão?, p. 193; Id. Ibid., p. 205; Id. Ibid., 210.

772 Cf. ROCHA, Abdruschin Schaeffer; OLIVEIRA, David Mesquiati. Teologia da missão e violência, p. 162-

164.

773 Cf. GEFFRÉ, Claude. La teología europea en el ocaso del eurocentrismo, p. 299. 774 Cf. GRÜMME, Bernhard. A caminho de uma Igreja pública, p. 56.

3.2 O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO POR UMA CULTURA DE PAZ E NÃO

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