• Nenhum resultado encontrado

O fundamentalismo literalista no reverso de uma leitura histórico-crítica da Escritura

1.3 O NEOFUNDAMENTALISMO COMO UMA NECESSIDADE ANGUSTIANTE DE CERTEZA

1.3.2 O fundamentalismo literalista no reverso de uma leitura histórico-crítica da Escritura

O fundamentalismo literalista pretende, segundo Geffré, encurtar a distância entre a letra da Escritura e o seu evento-fonte. Para o fundamentalismo literalista, a Escritura só contém a Palavra de Deus na medida em que é a forma escrita dos eventos narrados, entendendo a história e o tempo como fatores de degradação em relação a uma autenticidade originária. Por isso, rejeita o consenso da exegese moderna, como, por exemplo, a datação tardia dos Evangelhos, no afã de reduzir ao máximo a distância entre a pregação de Cristo e os escritos neotestamentários. Os fundamentalistas ignoram a complexidade do processo de elaboração dos livros escriturísticos, pois imaginam serem fiéis a uma Escritura que seria apenas o eco da Palavra de Deus. Nessa lógica, os escritos mais autênticos são os mais antigos e os que não sofreram acréscimos posteriores, como se fosse possível uma certeza histórica absoluta e como se não houvesse um possível progresso na compreensão da revelação.255

254 Cf. BOFF, Leonardo. Fundamentalismo, p. 25; PANASIEWICZ, Roberlei. Pluralismo religioso

contemporâneo, p. 51-52.

255 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 89-92. A respeito disso, Geffré afirma que “a maioria dos

exegetas, tanto católicos como protestantes, situam o primeiro escrito evangélico, isto é, o de Marcos, por volta do ano 70, os escritos de Mateus, Lucas e Atos dos Apóstolos nos anos 80-90 e o Evangelho de João em 90. Se quisermos recuar um pouco mais, vamos encontrar como primeiros escritos a Epístola de Paulo aos tessalonicenses, por volta de 50-51, e as duas epístolas aos coríntios e as epístolas aos filipenses e aos romanos entre 54 e 57. Há exegetas que questionam a autenticidade de algumas cartas de Paulo, mas ninguém questiona a autenticidade das epístolas aos romanos e aos gálatas e das duas epístolas aos coríntios. Mas pode-se discutir sobre as chamadas epístolas do cativeiro, e sabe-se que a Epístola aos hebreus não é de Paulo” (Id. Ibid., p. 91).

Forçosamente não é o mais primitivo que é o mais autêntico como testemunho da Palavra de Deus. A constituição do Novo Testamento como ato de revelação da primeira comunidade cristã prolongou-se por um período de uns trinta ou quarenta anos. O que resultou por escrito no final deste processo não é menos importante do que o que foi escrito no começo. Mas alguns exegetas recusam os dados mais comprovados porque, para eles, a oralidade é como que investida de um poder muito maior do que a escrita. Eles desejariam encontrar um escrito primitivo que fosse exatamente a estenografia da palavra viva de Deus.256

Para aqueles que nutrem um desejo obessivo por uma pureza originária, Geffré chama a atenção para o fato de que “é impossível termos acesso direto à palavra viva de Jesus. Sempre a encontramos por meio dos textos e é por isso que podemos interrogar-nos sobre um método exegético que quer centrar tudo no que se chama sentido literal”257, pois a linguagem

é uma mediação necessária, e quem diz linguagem, diz necessariamente interpretação em relação ao evento narrado. Para Geffré, é preciso reconhecer que o conhecimento humano possui necessariamente uma instância hermenêutica, sem gozar de um acesso direto ou imediato à verdade. Por isso, a boa interpretação “é aquela que consegue encontrar as justas equivalências entre dois mundos de pensamento dos quais as línguas são apenas a expressão.”258 Segundo Juscelino Silva, a grande questão para Geffré é a má compreensão das

mediações da Palavra de Deus, como se estas fossem apenas receptáculos passivos de uma atividade divina mágica e transcendente que prescindiria da dinâmica da economia salvífica.

A recusa fundamentalista em face da exegese contemporânea é a negação da distância do texto bíblico em relação aos eventos fundadores aos quais as palavras do texto enviam. A distância hermenêutica é evitada através de uma afirmação autoritária. [...] A afirmação fundamentalista da verdade apoia-se no preconceito não crítico da infalibilidade da Escritura na letra do texto. [...] A lógica fundamentalista não suporta a historicidade da Escritura, porque considera que a Escritura escapa à história e ao relativismo, é redigida no tempo da eternidade. Porém, esta inflação literal não tem respaldo na tradição hermenêutica clássica ou filosófica. Não existe este texto quimicamente puro, que represente a verdade suprema, porque para a tradição judaico-cristã antes da palavra existe o evento. O evento suscita a palavra, desde então ele é hermenêutico, interpretação.259

Segundo Geffré, não pode ser considerado um desprestígio ao texto sagrado e à fé cristã aceitar a sua vocação histórica e hermenêutica, pois, apesar de seu conteúdo referir-se ao divino, o mesmo é carregado na fragilidade de vasos de argila (2Cor 4,7). Para a fé judaico-cristã, Deus não escreveu um livro, mas sim, conviveu com a humanidade e se fez história.260 Deus se revela nos eventos da história. Juscelino Silva afirma que “as palavras não

são fotos de um acontecimento. Elas são capazes apenas de representá-lo, a partir da

256 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 92. 257 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 93. 258 GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 94.

259 SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 122-123. 260 Cf. GEFFRÉ, Claude. Esquisse d’une théologie de la révélation, p. 180-186.

perspectiva do intérprete.”261 Geffré salienta que a revelação não é um corpo de verdades

noéticas e atemporais, caídas prontas do céu, sem relação alguma com as mediações humanas.262 Crer significa fazer a experiência da revelação como um dom, na concretude da

história. Quem crê, não crê simplesmente em proposições, mas crê em Deus que se automanifesta em uma história significativa. Nesse sentido, para Juscelino Silva, “a Escritura é a sinalização gráfica que leva a razão humana a Deus”263, e não a uma formulação doutrinal.

No fundo, teologizar, mais do que simplesmente estudar, refletir e discursar, significa responder a esse Deus que se revela na história e que sempre a excede.

Para Pace e Stefani, o fenômeno do fundamentalismo literalista pode ser discernido a partir de quatro princípios: princípio da inerrância: pelo fato do livro sagrado não conter erros, precisa ser assumido em sua totalidade de sentido e de significado, não sendo possível assumir algumas partes e desprezar outras; princípio da astoricidade: parte do pressuposto de que a razão humana é incapaz de interpretar e atualizar a mensagem religiosa contida no livro sagrado, por isso, a verdade textual precisa ser considerada em sua originalidade, mantendo-se a materialidade da letra; princípio da superioridade: toma como ponto de partida a ideia de que a lei divina é superior à lei humana, por isso, deduz-se do livro sagrado um modelo de sociedade perfeita a ser executado pela sociedade civil; princípio do mito fundador da

identidade de um grupo ou povo: estabelece uma coesão unânime entre crentes de um mesmo

sistema doutrinal, mobilizando-os, a fim de concretizar na imanência da história, o que é estabelecido pelo livro sagrado como um ideal transcendente a ser seguido e posto em prática, sejam quais forem as intempéries contextuais.264

Em âmbito católico, o retorno às fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas, aliado ao debate em torno da nouvelle théologie, e subsequentemente com a recepção conciliar, rendeu muitas polêmicas em relação à teologia tradicional, de cunho escolástico. Geffré lembra que em um primeiro momento, os cristãos católicos não estavam preparados para uma leitura direta da Escritura, pois não a conheciam, a não ser pelas leituras parciais da liturgia dominical. Nos grupos bíblicos das décadas de 1950, 1960 e 1970, os cristãos católicos puderam descobrir a historicidade dos livros bíblicos, e compreender, por exemplo, que os Evangelhos não são relatos precisos das palavras e dos gestos de Jesus, e que os evangelistas tinham, sobretudo, uma intenção teológica, e não propriamente historiográfica. Para alguns, no entanto, a leitura crítica da Escritura pareceu contrária a um movimento de conversão e de

261 SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 142. 262 Cf. GEFFRÉ, Claude. Esquisse d’une théologie de la révélation, p. 174.

263 SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré., p. 143. 264 Cf. PACE, Enzo; STEFANI, Piero. Fundamentalismo religioso contemporâneo, p. 20-21.

união imediata com Deus, tornando-se, assim, uma pedra de tropeço para a fé. No entanto, Geffré afirma que é preciso distinguir os momentos e as modalidades de leitura e interpretação da Escritura. Há um tempo para rezar e contemplar – essa é uma prerrogativa do contexto litúrgico, onde a Escritura é encarada como um sacramento privilegiado do encontro com Deus – e há um tempo para elaborar hipóteses, interrogar-se sobre a autenticidade deste ou daquele versículo ou de determinado autor – esse é o momento crítico do trabalho analítico da exegese científica. É fundamental distinguir ambos os momentos, em sua importância própria. Porém, os fundamentalistas não possuem esse discernimento.265

Geffré destaca a pretensão do fundamentalismo literalista de um recuo histórico até as fontes imediatas dos textos, como se os mesmos fossem apenas um suporte da atividade oral, ou seja, uma mera estenografia. Essa atitude revela uma incompreensão da historicidade dos textos da Escritura, uma negação da mediação da comunidade crente e interpretante e um desconhecimento do papel do Espírito Santo – verdadeira fonte motivadora e inspiradora da Escritura. Geffré resgata o significado da Escritura como Palavra de Deus enquanto memória da ação de Deus na história, compreendida, por isso, como história de salvação, na qual os fatos são recontados e colocados por escrito por aqueles que se deixam guiar pelo seu Espírito. A Escritura é elaborada por uma comunidade crente que reatualiza em sua memória os eventos que foram e são experienciados como eventos de salvação da parte de Deus. Geffré questiona as reivindicações basilares do fundamentalismo literalista a partir da afirmação de que o cristianismo, antes de mais nada, é uma experiência que se tornou mensagem, e, por isso, desde a sua origem, trata-se de uma releitura interpretativa dos eventos fundadores da fé. Por trás dos escritos, há tradições orais que perpassaram gerações. Por isso, é preciso compreender o auxílio fornecido pela crítica histórica para a superação de certo positivismo bíblico que considera a Escritura como o lugar infalível da verdade, para que, no seu lugar, se dê espaço à dinâmica da revelação que respeita a experiência de fé da comunidade crente e a intervenção do Espírito. Para Geffré, a ação interpretativa não corrompe a mensagem original da Escritura, antes, é imprescindível para que a mesma subsista e continue viva.266

265 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 97-100; Id. La teología europea en el ocaso del eurocentrismo, p.

297. A nouvelle théologie diz respeito ao movimento de renovação teológica iniciado na França, cujos principais expoentes foram, primeiramente, os dominicanos Chenu e Charlier, e na sequência, os colaboradores das coleções Sourches Chrétiennes e Théologie. As proposições mais relevantes desse movimento são: oposição ao intelectualismo escolástico e denúncia da separação entre teologia e cultura moderna. A nouvelle théologie está ligada ao movimento de retorno às fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas, que no plano eclesial, foi incorporado aos documentos do Concílio Vaticano II. Em suma, a nouvelle théologie reivindica uma teologia atual que dialoga com o mundo contemporâneo (Cf. RAURELL, Frederic. “Nouvelle théologie”, p. 532-533).

266 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 113-115. Segundo Konings, a Escritura foi elaborada “pelo” e

“para” o povo de Deus, sob a inspiração do Espírito Santo, e somente na comunhão deste povo é possível compreender a revelação de Deus (Cf. KONINGS, Johan. A “Verbum Domini” e a hermenêutica bíblica, p. 38).

A própria história, segundo Geffré, é uma reconstrução. Quem reconstrói os fatos do passado não pode ressuscitá-los sem interpretá-los. A história como historiografia é uma escritura permanente. Na contramão do positivismo histórico, é preciso entender a história narrada não como uma ciência exata, nos moldes das ciências da natureza, mas como um compreender hermenêutico que narra a partir de uma intencionalidade. No caso da Escritura, parte-se da consciência de uma relação com Deus e tem-se como escopo a afirmação de uma mensagem religiosa de salvação. No fundo, a Escritura, como evento de Palavra, parte da pretensão de uma interpenetração entre imanência e transcendência, veiculando tradições e valores, os quais interpelam a uma decisão pessoal e coletiva, incidindo, consequentemente, em uma ortopraxia. A consciência e a distinção dessas instâncias tornam-se fundamentais para a elaboração da síntese circular entre fé e história, pois a fé age como princípio hermenêutico, ao mesmo tempo em que é precedida por fatos e experiências que a fecundam. Ler a Escritura desde a perspectiva da história da salvação é algo libertador, pois revela que o leitmotiv que conduz os hagiógrafos não é a exatidão dos detalhes históricos, mas o significado profundo dos testemunhos de fé que desvelam uma realidade sempre viva para aqueles que crêem.267

Documentos relacionados