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2.2 A ECONOMIA DO LOGOS ENCARNADO COMO SACRAMENTO DE UMA ECONOMIA MAIS VASTA

2.2.1 O paradoxo do cristianismo como religião não absoluta

Duquoc afirma que o paradoxo do cristianismo consiste na sua reivindicação de posse de uma mensagem transcendente, apesar de sua particularidade histórica. A fé pascal – a convicção de que Jesus ressuscitou e está vivo – não suprime a origem judaica e mediterrânea do cristianismo. Não se pode negar que Jesus é um judeu do século I, dependente da tradição veterotestamentária e educado em um mundo social, político, cultural e religioso marcado pela história judaica, com influências da cultura grega. A forma como Deus se revela em Jesus e une-se à história, manifesta que Deus não abole as particularidades. A tendência do cristianismo primitivo seria absolutizar suas origens, atribuindo-lhes um caráter mítico, se não fosse o fato de que o Ressuscitado desaparece e sua ausência impede que uma particularidade histórica seja idolatrada. O distanciamento do Ressuscitado, permite à história permanecer história.545 Conforme Bruno Forte, a revelação cristã preserva a dialética entre transcendência

e imanência. Deus não se dilui no mundo, nem o mundo é aniquilado em Deus.546

A particularidade histórica de Jesus leva a refletir, em termos não totalitários, sobre a relação entre o cristianismo e as outras religiões. Absolutizar uma origem contextualizada, significaria negar a relatividade e falsear o distanciamento humano em relação ao mistério divino. Para Duquoc, é característico do cristianismo uma vinculação com Deus desde uma particularidade, onde a transcendência influi na imanência sem descaracterizá-la. O Deus triunitário Pai, Filho e Espírito Santo, constitui-se como unidade nas diferenças. A relação do cristianismo com as outras religiões tem como fundamento teológico a própria constituição diferencial arquetípica da comunhão trinitária, que incentiva a sair de si e ir ao encontro do outro. Infelizmente, o desejo de dominação, mediado por um discurso totalitário, deturpa essa fundamentação. Além disso, a renovação emergente dessa relacionalidade fundante, somada à liberdade do Espírito, gera pânico nas consciências inseguras pela imprevisibilidade e incerteza a respeito das consequências dessa compreensão teológica, fazendo aflorar, em contrapartida, as tentações do dogmatismo, do legalismo e do reducionismo da ação do Espírito – como se fosse possível ditar-lhe limites. Porém, é preciso respeitar a natureza unidiferencial de Deus e a forma como Ele livremente se manifesta na economia da revelação. Sendo assim, a reflexão acerca da dinâmica da revelação cristã, conscientiza sobre o caráter não absoluto do próprio cristianismo e estimula o diálogo deste com as outras religiões.547

545 Cf. DUQUOC, Christian. Dieu différent, p. 142-143. 546 Cf. FORTE, Bruno. Teologia da história, p. 56. 547 Cf. DUQUOC, Christian. Dieu différent, p. 144-145.

Geffré considera que o cristianismo possui uma dimensão kenótica essencial que aponta para uma postura não absoluta. A cruz tem um valor simbólico universal ligado ao sacrifício de uma singularidade. Jesus se manifesta como Cristo na medida em que morre em sua particularidade. Esse esvaziamento fundante marca profundamente a experiência cristã pela consciência de uma origem ausente e permite ao cristianismo desfazer-se de toda pretensão triunfalista. Trata-se de ser sinal de uma falta, de uma carência fundante, que faz sair de si e ir ao encontro do outro. Soma-se a isso, a necessidade do diálogo entre as religiões resultante de uma consciência cada vez mais aguda da unidade da família humana e da responsabilidade comum das religiões quanto ao futuro da humanidade e do meio ambiente.548

Dentro do catolicismo, o diálogo ecumênico e inter-religioso favoreceu a quebra de certo modelo eclesiológico absolutista. Como parte da recepção da doutrina conciliar, a teologia cristã das religiões – enquanto análise do fenômeno da pluralidade religiosa no plano salvífico universal de Deus à luz da cristologia549 – passou a ser um capítulo importante na

teologia católica. No entanto, Geffré afirma que é preciso tempo para mudar hábitos arraigados e compreender que um diálogo franco e aberto não leva necessariamente ao indiferentismo religioso. É consenso na teologia atual que o cristianismo não é um modelo religioso exclusivo550, quer se trate de um absolutismo eclesiocêntrico, ao modo da teologia

tradicional, que professava o extra Ecclesiam nulla salus, quer se trate de um exclusivismo cristão soteriocêntrico, o qual prognosticou o cristianismo como a única religião da graça salvífica. D’Costa afirma que diante dos dois axiomas fundamentais da fé cristã – vontade salvífica universal de Deus e necessidade da mediação de Cristo –, o inclusivismo consegue defender a ambos simultaneamente – procurando explorar os muitos modos com que Deus falou à humanidade e buscando novas expressões do cristianismo que o conduzam à sua plena realização –, enquanto que o exclusivismo se baseia no segundo axioma ignorando o primeiro e o pluralismo se baseia no primeiro axioma ignorando o segundo.551

Geffré acredita, porém, que não basta adotar um modelo inclusivista e concluir que já se desmistificou o caráter absoluto do cristianismo enquanto religião histórica. Permanece a tensão fundamental entre as exigências de igualdade e de reciprocidade de todo verdadeiro diálogo, e a pretensão, tanto do cristianismo quanto das outras religiões, de se considerar a manifestação definitiva do divino para a humanidade. Como é possível harmonizar isso? Essa é uma questão bastante complexa que ainda precisa ser amadurecida pela teologia atual.

548 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 40; Id. Ibid., p. 88.

549 Cf. FONTANA, Leandro Luis Bedin. Solus Christus, sola Ecclesia e o pluralismo religioso, p. 2. 550 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 88.

Geffré afirma que ainda não se encontrou uma resposta teológica adequada que dê a devida importância às implicações do diálogo inter-religioso, sem sacrificar a identidade cristã. Não basta passar de um cristocentrismo inclusivista para um teocentrismo pluralista. A teologia cristã não pode abrir mão da normatividade cristológica, pois é no centro mesmo da mensagem cristã – a manifestação de Deus na particularidade histórica de Jesus de Nazaré – que se encontra o fundamento do caráter essencialmente dialogal do cristianismo. Geffré não sabe ao certo como ultrapassar completamente o paradigma do inclusivismo – teologia do

acabamento/cumprimento –, contudo, reinterpreta a noção de cumprimento em um sentido

não totalitário.552 Portanto, ao invés de renunciar a Cristo como Absoluto, o cristão precisa

renunciar, segundo Duquoc, à pretensão de superioridade553, retomando o sentido escatológico

da fé cristã que transcende – sem negar – a história e o intelecto humano.

Geffré afirma que o cristianismo testemunha a revelação final enquanto irrupção do incondicionado no condicionado, por isso, sofre as tentações da demonização e da profanação. A revelação se demoniza quando deixa de reenviar ao incondicionado que nela se irrompe, e se profana quando não consegue ir além de sua condição de acontecimento finito, reduzindo- se a uma moral. O cristianismo fala de algo que é muito maior do que a si mesmo. Seria uma pretensão indevida afirmar que o cristianismo é capaz de tematizar a totalidade das riquezas contidas na história das religiões. Para não incorrer nesse erro, é preciso retomar o caráter kenótico e dialogal do cristianismo, fundamentado no próprio mistério da encarnação, ou seja, o paradoxo do Logos feito carne. Até mesmo as questões da justificação e da redenção estão implicadas no acontecimento paradoxal da encarnação. O paradoxo não diz respeito a uma contradição lógica, mas a um acontecimento que transcende as expectativas e possibilidades humanas.554 Tillich fala que há um único paradoxo na relação entre Deus e a humanidade: a

unidade essencial entre Deus e o ser humano, o Logos que se encarnou e compartilhou a existência histórica no tempo e no espaço (Jo 1,1-18), sendo este o acontecimento fundante de todos os aspectos mais essenciais da doutrina cristã.555

O paradoxo da mensagem cristã consiste, para Geffré, em confessar Jesus de Nazaré como o Cristo556, e para Tillich, em afirmar que em uma vida pessoal, a de Jesus, a essência

humana apareceu sob as condições da existência, sob o signo da finitude, da alienação e da ambiguidade, sem ser vencida por elas. Segundo Tillich, Cristo, como Ser novo, salva a

552 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 89-90. 553 Cf. DUQUOC, Christian. A teologia no exílio, p. 93.

554 Cf. GEFFRÉ, Claude. Révélation, écriture et tradition dans la Dogmatique de 1925, p. 202-213; Id. De Babel

a Pentecostes, p. 90-92.

555 Cf. TILLICH, Paul. Systematic theology, v. 1, p. 17; Id. Ibid. v. 3, p. 284. 556 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 95-96.

humanidade da alienação e renova o universo. Tillich resgata a doutrina tradicional dos Padres da Igreja sobre o Logos universal, cujas sementes estão espalhadas por toda criação. Segundo Tillich, tanto o cristianismo, quanto as outras religiões, são manifestações particulares do Logos universal. Confessar Jesus como Cristo – Logos feito carne –, significa identificar o princípio da automanifestação de Deus na história com a existência concreta do homem Jesus de Nazaré – locus identitário entre o absolutamente concreto e o absolutamente universal –, Ser novo da humanidade (2Cor 5,17), a quem estão submetidas todas as coisas (Rm 8; 1Cor 15, 27; Ef 1,22) e para quem tudo se encaminha (Ef 1,10).557

Geffré frisa que o cristianismo, enquanto religião histórica, não é superior às outras religiões, compartilhando com elas os limites circunstanciais da história. Nem mesmo Cristo pôde escapar às consequências de uma vida sob o influxo histórico. Sendo assim, a doutrina de Cristo, como Ser novo, assume sua significação última à luz da teologia da encarnação e da cruz, enraizada na kênosis como aniquilamento de Deus – experiência de esvaziamento de si e de oferta amorosa aos outros –, retomando assim, a singularidade do cristianismo como religião da alteridade.558 É na articulação entre encarnação, cruz e ressurreição que emerge a

concepção de Cristo como manifestação concreta do Logos universal. Na ressurreição, Cristo ultrapassa a alienação existencial. Segundo Nicolau de Cusa, ao ressuscitar, Cristo liberta Jesus de um particularismo histórico.559 Geffré afirma que a cruz é o caminho para a glória.

Sacrificando sua particularidade, Cristo superou suas limitações e assumiu uma figura universal.560 Em Jesus, injustamente condenado e assassinado, vislumbra-se as injustiças da

história contra os inocentes. Em Cristo ressuscitado, os nazarenos de todos os tempos são assumidos e elevados a figuras proféticas contra a audácia dos seus algozes.

Segundo Geffré, a volta à essência da identidade cristã enquanto religião histórica é o caminho para o cristianismo exorcizar todo veneno totalitário de sua consciência em relação às outras religiões, e faz vir à tona a sua condição fundamental como religião que está sempre sob o signo de uma falta, e que, por isso, precisa dos outros para ampliar a sua compreensão da economia da revelação. Assim como a kênosis de Cristo é a condição de possibilidade de sua ressurreição, e o túmulo vazio como ausência do corpo do fundador é a condição para o advento do corpo da Igreja e do corpo das Escrituras, a falta ou ausência original caracteriza uma limitação congênita ao cristianismo histórico, e a consciência disso é a condição para a

557 Cf. TILLICH, Paul. Systematic theology, v. 1, p. 48; Id. Ibid., v. 2, p. 94.

558 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 97; HALFT, Dennis. Zwischen Inkarnation, Christozentrik

und Alterität, p. 62-67.

559 Cf. NICOLAU DE CUSA. A douta ignorância, p. 200. 560 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 97-98.

relação com os outros. Nesse sentido, o diálogo com as outras religiões é uma necessidade inscrita na vocação original do cristianismo.561 Para Michel de Certeau, trata-se, para cada

cristão e para todo o cristianismo, de ser um sinal daquilo que lhe falta. Sendo assim, a prática do diálogo inter-religioso leva a uma nova compreensão da singularidade cristã.562

Geffré afirma que na medida em que se professa Jesus como o Cristo, é assegurado o caráter dialogal e não totalitário do cristianismo. Mesmo que em Jesus habite “a plenitude da divindade” (Cl 2,9), essa identificação remete ao Deus que escapa a toda identificação, como um mistério que humanamente não pode ser abarcado em sua totalidade, nem mesmo pela humanidade de Jesus, e muito menos pelo cristianismo histórico. Por isso, o cristianismo não é exclusivo de outras experiências religiosas que identificam de modo diverso o mistério divino. A economia da encarnação, na contramão do docetismo, revela que Deus só pode se manifestar em termos não divinos, na concretude da história.563 Apesar disso, Deus não

absolutiza uma particularidade, mas, segundo Duquoc, é em virtude dessa particularidade que Deus pode ser encontrado na história real da humanidade.564

Na visão de Geffré, a teologia católica pós-conciliar está pronta a reconhecer uma

revelação geral imanente à história religiosa da humanidade. Além disso, o paradoxo do

cristianismo como religião da revelação final – exclui toda pretensão à incondicionalidade por via de revelação particular, a começar pela sua própria –, afasta a pretensão cristã de possuir o monopólio da revelação divina e de demonizar outras vias de revelação.565 Rahner fala de uma

revelação transcendental – autocomunicação de Deus à consciência humana – coextensiva à história espiritual da humanidade, distinta de uma revelação categorial que inclui a revelação bíblica, por exemplo. Para Rahner, há uma revelação universal que ultrapassa as fronteiras do cristianismo.566 Dupuis afirma, nesse sentido, que “a história da salvação e da revelação é uma

só. Em suas várias fases – cósmica, israelita e cristã – ela traz, de maneiras diferentes, o selo da ação do Espírito Santo”567, que é universal.

É preciso reconhecer a legitimidade da pluralidade das religiões e não confundir a verdade de cada religião com a superioridade de uma em relação às outras. Para Geffré, um dos maiores entraves do diálogo inter-religioso é que cada religião pretende possuir a verdade

561 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 98-99; Id. Le non-lieu de la théologie selon Michel de

Certeau, p. 159-180.

562 Cf. CERTEAU, Michel de. La faiblesse de croire, p. 217. 563 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 99. 564 Cf. DUQUOC, Christian. Dieu différent, p. 143.

565 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 100-101. 566 Cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé, p. 176-198.

sobre a revelação final.568 Ward tenta amenizar essa questão, afirmando que todas as religiões

são vias diversas que conduzem à mesma meta: o mistério divino.569 Porém, como afirma

Tillich, nenhuma religião, enquanto via concreta de revelação, consegue captar a totalidade do mistério divino. Sendo assim, a pretensão de cada religião particular de possuir uma revelação perfeita, pode ser caracterizada como uma hybris.570 Geffré afirma que é possível respeitar o

engajamento do outro em sua própria crença, sem cair no relativismo, pois todo engajamento está sob o julgamento do incondicional571, e toda religião, segundo Torres Queiruga, enquanto

tomada de consciência sobre a presença do Divino no mundo572, constitui-se em um

testemunho parcial da revelação final.

Segundo Geffré, nenhuma religião é absoluta. Só é absoluta a revelação final como advento do Reino de Deus.573 O diálogo inter-religioso adquire a sua relevância pelo fato de

que todas as religiões compartilham a mesma meta. Diante da oportunidade oferecida pelo contexto atual, Tillich afirma que a teologia cristã precisa ser capaz de empreender um diálogo criativo com as outras religiões, a fim de não se tornar uma teologia provincial.574

Partindo do pressuposto de que há uma revelação universal, é preciso reconhecer a presença universal do Espírito nas religiões do mundo, com suas experiências reveladoras, as quais, para Geffré, são participações fragmentárias na transcendência da vida não ambígua. Geffré afirma que mesmo aqueles que fazem experiências fragmentárias da fé e do amor, já estão em condições de constituir comunidades santas, como antecipações da ação definitiva do Espírito.575 Para Tillich, o Espírito que criou Cristo no interior de Jesus é o mesmo Espírito

que age na história da humanidade, a fim de prepará-la para o encontro com o Ser novo. Sendo assim, o acontecimento Cristo é central e coextensivo a todos os momentos da história. Toda comunidade espiritual que não adere explicitamente à fé cristã, antes e depois de Cristo, é uma comunidade crística latente.576 Em suma, sem se desfazer da norma cristológica para

facilitar o diálogo inter-religioso, os elementos supracitados ajudam a teologia cristã a perceber a relevância espiritual das religiões não cristãs, sem comprometer a unicidade de Cristo e a originalidade do cristianismo como religião histórica.

568 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 100-101. 569 Cf. WARD, Keith. Religion and revelation, p. 338.

570 Cf. TILLICH, Paul. Dogmatique, p. 53-54. O termo ὕβρις refere-se a orgulho imprudente e exagerado,

arrogância, presunção, insolência, comportamento ultrajante, desprezo pelo espaço pessoal alheio. Opõe-se à virtude da prudência e ao bom senso.

571 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 102.

572 Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a revelação, p. 25. 573 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 103.

574 Cf. TILLICH, Paul. Systematic theology, v. 3, p. 6. 575 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 105-106. 576 Cf. TILLICH, Paul. Systematic theology, v. 3, p. 147-154.

2.2.2 O paradoxo cristológico como fundamentação para uma hermenêutica do diálogo

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