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1.2 A TEOLOGIA SOB UMA RACIONALIDADE HERMENÊUTICA

1.2.3 Releitura da tradição como ato de interpretação criativa

Geffré relê a tradição não como uma repetição linear de formulações imutáveis, mas como um ato de transmissão que opera pela constante renovação. Geffré retoma o conceito de tradição reabilitado por Gadamer após a Aufklärung, segundo o qual, não há compreensão efetiva sem inscrição em uma dada tradição. Para a CTI, tradição é algo vivo e vital – um processo contínuo – que deixa de ser tradição quando se fossiliza (CTIth 26). No entanto, Geffré compreende que a teologia cristã não é uma ação divina – ex nihilo –, mas humana. Por isso, necessita de uma precedência. Só é possível construir algo novo a partir de algum fundamento sólido e utilizando-se de materiais prévios disponíveis. Nesse sentido, pode-se afirmar que o cristianismo é tradição porque vive de uma origem dada, mas também é

produção porque essa origem é interpretada criativamente, levando a práticas novas.223

Para Geffré, a teologia cristã vive da retomada criativa de suas origens, e a distância que a separa de seu evento fundador – Jesus Cristo –, longe de ser um obstáculo, é ocasião para um novo ato de interpretação. O fazer teológico referenciado na dialética entre

continuidade e ruptura da tradição, direciona-se menos pela repetição de um dizer de outrora,

e mais por uma retomada criativa e inovadora, a fim de elaborar um dizer de hoje, tendo em vista os questionamentos atuais. A teologia não tem a pretensão de repetir um evento do passado – integrismo –, mas sim, reinterpretá-lo de maneira nova, em consonância com as necessidades dos novos contextos, em coerência com uma concepção de verdade como advir

permanente, em sentido bíblico-escatológico. Por isso, a interpretação é uma necessidade que

brota da própria natureza da fé cristã, visto que o seu objeto é uma verdade viva, transmitida pela mediação da história, necessitanto, assim, de uma atualização incessante. A fonte, a norma e o critério da experiência cristã primitiva é o próprio Jesus que vive na história. Não há como anunciar um Jesus vivo apenas adaptando uma doutrina tradicional à mentalidade hodierna, é preciso que haja uma reinterpretação criativa que evoque novas linguagens da fé. As definições dogmáticas precisam ser interpretadas à luz de uma leitura crítica da Escritura e em função das experiências humanas atuais. Em suma, ter uma fé crítica e responsável significa produzir uma nova interpretação da mensagem cristã transmitida pela tradição.224

223 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 33; Id. Ibid., p. 58-59; GADAMER, Hans-Georg. O

problema da consciência histórica, p. 67; Id. Verdade e método, p. 442. Segundo Geffré, a tradição mantém sua vitalidade na medida em que obedece à dialética entre continuidade e inovação (Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 181). Nesse sentido, a tradição está paradoxalmente sob o signo da retomada preservativa e da ruptura criativa.

224 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 58-59; Id. Ibid., p. 214-217; Id. Un nouvel âge de la

Geffré fala de um conflito moderno entre hermeneutas e dogmatistas. Os hermeneutas são aqueles que aderem a um discernimento histórico-crítico da tradição, os dogmatistas são os que almejam confirmar uma posição prévia, já tomada, buscando apenas um apoio na Escritura e na tradição para legitimar a autoridade do magistério. Geffré defende a prática de uma hermenêutica crítica que se interroga sobre as condições de produção dos textos do passado, e que se preocupa com a reapropriação/atualização para hoje da verdade pertencente à tradição, com atenção aos diferentes sentidos que os significantes textuais podem assumir no decorrer das épocas. Além disso, na releitura da tradição, Geffré afirma que é de fundamental importância questionar de maneira crítica a tradição que deu origem aos sistemas teológicos, sem descuidar das múltiplas inclinações ideológicas vigentes em cada tempo e lugar. A interpretação da tradição visa sempre à transformação do ser e do agir humano pela atualização constante da forma como se percebe e se acolhe as fontes da fé cristã fundamental. A razão teológica, como raciocínio histórico e ortoprático, visa proceder a uma perene renovação do sentido dos textos da tradição. A interpretação da tradição, longe de conduzir a um saudosismo nostálgico, produz uma tensão desestabilizadora, mexendo com os fundamentos do conhecimento e conduzindo a uma prática transformadora. Geffré defende uma renovação do conceito de tradição como inovação constante, no limiar da continuidade e da ruptura, a fim de insistir na dimensão libertadora da hermenêutica teológica da tradição e de evitar as tentações do integrismo doutrinal e do fundamentalismo literalista.225

As mudanças contextuais, segundo Amaladoss, muitas vezes contestam as certezas da fé codificadas em épocas passadas, pleiteando uma reinterpretação das tradições.226 Geffré

ressalta que é preciso propor novas interpretações relevando a situação concreta dos sujeitos, a fim de conduzir à ação e à transformação de suas práticas. A interpretação da tradição insere-se, nesse sentido, em uma dialética constante entre teoria e prática, em mútua fecundação, onde a prática em si mesma já é uma matriz de sentido e não simplesmente um campo de aplicação da teoria. Com isso, Geffré pretende enfatizar, para além de uma doutrina completamente constituída e acabada, a realidade dinâmica da teoria teológica como atualização criativa e constante que visa incidir na realidade. No entanto, faz-se necessário prescindir de todo pragmatismo teológico, salvaguardando a dimensão especulativa e crítica inerente à teologia, sem a qual, se perde o sentido doxológico da verdade cristã. Geffré quer evitar, assim, toda forma de manipulação e de instrumentalização da ratio theologica.227

225 Cf. GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar, p. 49-52; Id. Ibid., p. 54-55; Id. Como fazer teologia hoje, p. 196. 226 Cf. AMALADOSS, Michael. Pela estrada da vida, p. 164.

1.3 O NEOFUNDAMENTALISMO COMO UMA NECESSIDADE ANGUSTIANTE DE

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