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1.1 A REVELAÇÃO CRISTÃ COMO EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA

1.1.2 Na contramão da ontoteologia

Enquanto o século XIX se concluiu com um aparente triunfo da tecnologia e das ciências experimentais, o século XX findou justamente com uma baixa de confiança nas mesmas e com um renovado interesse pela religião amplamente difundido na esfera pública. Vattimo alega que a nova visibilidade das religiões se deve em parte à derrocada dos regimes comunistas em muitas partes do mundo, assim como aos graves problemas ecológicos e bioéticos causados por uma aplicação sem dicernimento axiológico das ciências naturais. A percepção de que nem tudo que é tecnicamente possível é eticamente aceitável, estimulou um

125 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 55-57; Id. Crer e interpretar, p. 36-37; Id. La verité du

christianisme à l’âge du pluralisme religieux, p. 180; Id. Le pluralisme religieux et l’indifférentisme, ou le vrai défi de la théologie chrétienne, p. 23; HAMMES, Érico João. Hermenêutica e teologia, p. 61.

novo questionamento com relação aos rumos da vida humana no planeta, tendo as religiões um papel importante nessa reflexão. O iluminismo e o positivismo prognosticaram o fim das religiões na medida em que estas fossem perdendo espaço em um contexto social mais democrático e técnico-científico. No entanto, se percebe atualmente uma crescente influência das religiões no cenário internacional, não apenas como um fenômeno de comunicação de massas, mas como o resultado de uma crise das ideologias racionalistas modernas e de uma superação da crença positivista na linearidade e irreversibilidade do progresso da história. O desencanto do mundo, a desmistificação da vida e a eliminação dos mitos se voltaram contra si mesmos.126 Na visão de Manfredo de Oliveira, essa é uma oportunidade para que as

religiões ofereçam às pessoas motivações de resistência aos sistemas estruturais injustos e opressores que atravancam a efetivação de uma vida plena.127

Vattimo acredita que a metafísica não termina com a descoberta da verdade mais verossímel, mas quando atinge o ponto mais alto do domínio universal técnico-científico e da vontade de poder, identificando o Ser verdadeiro com a objetividade presente, verificável e quantificável. O sujeito da modernidade tardia não deixa o mundo ser simplesmente o que é, mas o constrói ativamente, conforme os seus desejos e as suas necessidades. Porém, diante da verdade objetivante da metafísica, o próprio sujeito acaba por ser reduzido a um objeto manipulável. A teologia hermenêutica está ciente do caráter interpretativo de toda verdade, pois todo conhecimento da realidade é radicalmente delimitado e, por isso, debilitado, perpassando por uma multiplicidade de jogos interpretativos, dos quais, nenhum sujeito pode alvorar-se como sendo objetivamente privilegiado e absoluto em relação aos demais. No jogo das interpretações, é possível distinguir entre interpretações válidas e interpretações arbitrárias, as quais são sustentadas pela peremptoriedade objetiva de uma vontade soberana. A história da salvação segue no caminho inverso, pela desacralização da verdade absoluta. Deus sai de sua transcendência e se seculariza, adentrando a história, a fim de revelar um novo modo de ser, o qual se constitui em paradigma de liberdade para múltiplas expressões.128

Segundo Geffré, com a aurora da modernidade, houve uma crise da liguagem sobre Deus. A teologia atual precisa ir além dos conceitos, a fim de reconquistar o nome de Deus, correr o risco de nomeá-lo, de invocá-lo e de chamá-lo pelo nome, pois Deus é mais que um conceito, é uma presença viva que se revela e se dá a conhecer, e em cada época é designado de maneira criativa, sendo a sua nomeação o cunhar de uma imagem, de um memorial. A

126 Cf. VATTIMO, Gianni. Hermenéutica y experiencia religiosa después de la ontoteologia, p. 20-21.

127 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A religião e o futuro da vida, p. 87; Id. A religião na sociedade urbana

e pluralista, p. 184.

história dos nomes divinos é a história das imagens de Deus, não isentas de interesses ideológicos, revelando, dentre outras coisas, a situação histórica das pessoas diante do mistério divino. A linguagem teológica metafísica da cristandade está ligada a uma visão de mundo hierarquizada que tem Deus como fundamento absoluto, diferente da visão de mundo atual, embasada sobre o paradigma da historicidade que se define como devir, não mais remetendo a um princípio transcendente como a causa explicativa e ordenadora do mundo. O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó (Ex 3,6), diferentemente do Deus conceitual da metafísica, é o Deus totalemente Outro que se revela na história, superando as expectativas humanas. É o Deus que vai além da disponibilidade e da utilidade, que precisa ser invocado pelo nome, como mistério de gratuidade. Por isso, a teologia tende a ser cada vez mais uma teologia não

metafísica, não autoritária e hermenêutica, consciente que Deus sempre a excede.129

Geffré sustenta que o cristianismo, desde a sua origem, recorreu às categorias gregas para exprimir a sua mensagem, e por sua vez, influenciou profundamente as categorias do pensamento e da linguagem ocidental. Desde a sua origem, o cristianismo é uma realidade inculturada. Não há um cristianismo abstrato. Há cristianismos concretos, que são fruto de experiências de fé em dadas culturas. O encontro do cristianismo com uma nova cultura, no fundo, é sempre o encontro entre duas culturas. O encontro do cristianismo com o helenismo foi decisivo para o futuro do próprio cristianismo, pois o uso das categorias gregas para tornar inteligíveis os mistérios do Logos encarnado e da Trindade divina, favoreceu a catolicização – universalização – da mensagem cristã. No entanto, essa dinâmica inclui o risco de identificar o núcleo da mensagem cristã com um conjunto de verdades desconectas dos recursos simbólicos neotestamentários e proto-querigmáticos da Igreja primitiva. Entretanto, a novidade cristã metamorfoseou os recursos conceituais do pensamento grego. Porém, não se pode denunciar apressadamente uma helenização do cristianismo sem a imediata afirmação de uma consoante cristianização do helenismo.130

Geffré afirma que não há como negar que concomitantemente ao movimento de inculturação do cristianismo, há também uma cristianização da cultura. A aliança entre cristianismo e helenismo atingiu o seu ápice durante a eras patrística e medieval, a tal ponto que é possível falar tanto em uma helenização do cristianismo, quanto de uma cristianização do helenismo. Na época da Reforma, essa relação entra em um período de crise e de questionamentos. Atualmente, diante de uma redescoberta das raízes judaicas do cristianismo,

129 Cf. GEFFRÉ, Claude. La prière des hommes comme mystère de gratuité, p. 121-131; Id. Como fazer teologia

hoje, p. 145-149; Id. Déclin ou renouveau de la théologie dogmatique?, p. 27; Id. Un nouvel âge de la théologie, p. 50-61; SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 27.

emerge novamente uma suspeita sobre o uso das categorias gregas na teologia cristã. Com a contestação do pensamento metafísico, em especial a crítica heideggeriana da ontoteologia, os pressupostos clássicos da teologia foram abalados. Desde então, não é mais evidente a identificação entre o Deus da revelação bíblica e o Ser absoluto da filosofia grega.131 Muitos

teólogos já não se referem a Deus em termos de Ser, pois isso significaria subordinar a originalidade da revelação bíblica ao patrimônio do pensamento grego. Segundo Juscelino Silva, “Deus não é o Ser impessoal da filosofia clássica ou o Deus idolátrico da ontoteologia.”132 Alguns, influenciados pela filosofia levinasiana, referem-se a Deus menos

em sentido de presença e identidade e mais como gratuidade e alteridade. Outros, reconhecem a natureza do Deus pessoal, revelado em Cristo, mas graças à experiência do Oriente, têm consciência, segundo Geffré, que “Deus tem vários nomes e que a Realidade indizível de Deus está sempre além dos nomes que podemos lhe dar”133, retomando, assim, um sentido de

mistério sagrado e de adoração em relação à nomeação de Deus.

O pensamento teológico metafísico entrou em uma grave crise desde a crítica kantiana transcendental. Desde então, concebe-se o acesso ao conhecimento de Deus apenas pelos postulados da razão prática, no plano das exigências éticas. O fomento de um antropocentrismo jesuânico coincide com a crítica heideggeriana sobre a obsolência do discurso ontoteológico a respeito de um Ser onipotente, onisciente e imutável. Segundo Geffré, a teologia cristã precisa ousar a não sacrificar os nomes de Deus recebidos pela revelação, não cedendo aos imperativos do teísmo metafísico, os quais erigem um Deus puramente conceitual, como uma espécie de ídolo intelectual.134 “A essência oculta da

metafísica tradicional é a onto-teo-logia, isto é, a explicação do ente por seu ser e do ser por um ente supremo.”135 Nesse sentido, Marion afirma que onde o Ser supremo é afirmado, ao

modo da ontoteologia, o Deus cristão desaparece. Por isso, a teologia precisa se libertar da idolatria do pensamento ontoteológico, buscando nas fontes da própria revelação o fundamento para a nomeação de Deus. Seguindo nesse viés, é possível entender a crítica

131 Cf. GEFFRÉ, Claude. Thomas d’Aquin ou la christianisation de l’hellénisme, p. 23-42; Id. De Babel a

Pentecostes, p. 343; Id. Un nouvel âge de la théologie, p. 71-74.

132 SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 165. 133 GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 353.

134 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 150-151; HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos

filosóficos, p. 391-393. Para Kant, a religião tem sentido enquanto motivadora de uma boa conduta de vida. A fé tem uma importância prática enquanto inspiradora da atitude moral (Cf. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão, VI, 196). Em Kant, a lei moral passa a ser o critério de validade e de averiguação da universalidade da própria religião, sendo possível afirmar que “a lei moral conduz, mediante o conceito de sumo bem, enquanto objeto e fim terminal da razão prática pura, à religião, quer dizer, ao conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos” (KANT, Immanuel. Crítica da razão prática, V, 233). Em suma, o juízo teleológico kantiano moraliza o desvelar do fenômeno da religião, diluindo a religião no plano da moralidade.

nietzscheana da morte de Deus como a morte do Deus-ídolo conceitual da metafísica. O ídolo mais difícil de se libertar é o ídolo conceitual onto-teológico. O idólatra pensa já possuir a verdade, por isso, não aceita quem pensa diferente.136 Sendo assim, Geffré defende que a

tarefa permanente da teologia consiste em elaborar uma linguagem que se apoie nos conceitos fundamentais da revelação, buscando tornar os conteúdos da fé mais inteligíveis às pessoas de cada momento histórico e não renunciando à liberdade de dizer aquilo que a revelação lhe confia.137 Nesse sentido, Hammes afirma que não se pode correr o risco de omitir de forma

inconsequente a fragilidade e a provisoriedade inerentes ao discurso teológico enquanto discurso humano sobre Deus.138

Para Geffré, não existe discurso teológico sem algum tipo de orientação ideológica. A concepção de um Deus onipotente e imutável da metafísica, legitima e sacraliza um status quo social conservador, beneficiando os interesses de um grupo privilegiado ou de uma classe social dominante em nome da fidelidade ao Evangelho. Na modernidade, certo discurso determinista e fatalista, justificador de desigualdades sociais, desapareceu. Atualmente, retoma-se o testemunho de Jesus que quis conscientizar a humanidade das imagens falsas de Deus. A vida de Jesus constitui-se em ortopráxis libertadora de uma idolatria metafísica opressora, revelando o verdadeiro sentido do Reino de Deus, desde um relacionamento privilegiado com o Pai, fonte da divindade. A partir da ortopraxia jesuânica, é possível elaborar um teísmo crítico, não conivente com as múltiplas formas de idolatria que instrumentalizam a experiência religiosa. Pensar Deus como advento de um apelo sempre novo é um desafio diante da tentação ontoteológica de conceitualizar Deus como um ser extramundano, estranho à realidade humana, ou mesmo como um Superego coletivo que atua como freio ético para as ações humanas.139

Segundo Juscelino Silva, “a crítica à metafísica clássica trouxe a oportunidade de uma teologia histórica.”140 Nesse sentido, para Geffré, faz-se necessário revigorar na atualidade os

resultados da reviravolta histórico-crítica empreendida na ciência teológica nos últimos dois

136 Cf. MARION, Jean-Luc. L’ídole et la distance, p. 34-35. Ao contrário da lógica ontoteológica, a verdade

vinda de Deus não é imposta, mas proposta à razão. Segundo Juscelino Silva, “Deus não recorre à violência da suspensão da consciência humana para impor verdades eternas que estão fora da experiência humana” (SILVA, Juscelino. Experiência e nomeação de Deus na teologia de Claude Geffré, p. 134), mas respeita a alteridade humana e os limites de seu desenvolvimento cognitivo. Por isso, caminha ao lado da humanidade, ajudando-a a significar a sua vida. “Na lógica da teologia hermenêutica não existe uma revelação de conteúdos definitivos, porque Deus não revela conceitos acabados vindos de um mundo paralelo” (Id. Ibid., p. 135). Nesse sentido, a revelação divina na história é uma epifania que não esgota o seu conteúdo. Aceitar o dinamismo da revelação corresponde a desistimular a idolatria conceitual do discurso teológico.

137 Cf. GEFFRÉ, Claude. Sentido e não-sentido de uma teologia não-metafísica, p. 790-791. 138 Cf. HAMMES, Érico João. Hermenêutica e teologia, p. 58.

139 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 154-158.

séculos, a fim de que as influências do pensamento metafísico sejam esclarecidas por uma reflexão que tome como ponto de partida a radicalidade de um genuíno realismo cristológico. Cabe à teologia interpretar a realidade de Deus a partir de um engajamento na realidade histórico-mundana, desde a dinâmica econômico-soteriológica, cujo ápice, vislumbra-se com a mensagem libertadora do Reino de Deus anunciada por Jesus de Nazaré, Logos encarnado, revelação plena do mistério divino na concretude da história humana. Jesus Cristo, como universal concreto, une misteriosamente Deus e realidade, sem confusão identitária, sem idolatria, mas como uma iconografia do Deus invisível, que torna próxima a Presença onipresente, sem, no entanto, anular a distância da transcendência divina. Teologizar partindo da realidade cristológica corresponde a articular, respeitando as devidas instâncias, as dimensões diferenciais e concomitantes de um mesmo Deus velado em sua transcendência e universalidade e revelado na especificidade de uma eventualidade teândrica situacional.141

A originalidade do Deus da revelação judaico-cristã é a de revelar-se numa história, na contingência, no concreto. Devemos procurar pensar a relação entre o Logos eterno e o evento particular Jesus Cristo. E isso será sempre escândalo para a razão. Essa revelação histórica, que torna Deus tão próximo do homem, é também a que traz mais dificuldade aos nossos contemporâneos. Como pretender que o cristianismo, enquanto religião histórica, tenha o monopólio da verdadeira relação com o Absoluto? E, sobretudo, como fazer a salvação de todos os homens depender desse evento particular, contingente, que é Jesus Cristo? E, no entanto, não é escamoteando a particularidade histórica de Jesus que teremos alguma possibilidade de assegurar sua universalidade. Ele não é manifestação privilegiada do Absoluto na história. Ele é o próprio Absoluto tornado histórico. É impossível deduzir o tornar- se-homem de Deus a partir de uma ideia a priori de Deus como Absoluto. Devemos aceitar o escândalo da encarnação na incondicionalidade da fé.142

Para Geffré, a ideia de um Deus encarnado é um escândalo para a razão especulativa. Com Hegel, compreende-se que a realidade concreta é o fundamento racional e a condição de possibilidade existencial de uma universalidade genuína. Hegel alega que a universalidade existe somente de uma maneira concreta. O universal precisa se encarnar para realizar o seu ser. O contingente e o histórico são assim a condição de possibilidade do universal e do inteligível. Segundo Geffré, é a partir da encarnação que o universal passa a existir de fato na concretude da história, ou seja, o universal efetiva-se no concreto. A teologia enquanto ciência hermenêutica não pode furtar-se ao estatuto da concretude histórica. O concreto, o histórico e o contingente são os condicionantes de inteligibilidade que ligam a racionalidade humana ao mistério divino revelado. Ao contrário da crítica racionalista da Aufklärung do século XVIII, o fato cristão da encarnação não só é possível de ser pensado, como faz pensar. O Deus revelado por Jesus, escapando à lógica da identidade aristotélico-tomista, manifesta a

141 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 159. 142 GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 160.

sua transcendência, ultrapassando a oposição entre imutabilidade e engajamento histórico, sem, por isso, deixar de ser Deus. A própria obra da criação e da redenção só é possível enquanto a unidade inefável de Deus não se contradiz com a sua relacionalidade trinitária como intercâmbio comunional. A encarnação do Logos como existência em uma realidade distinta de sua essência imutável corresponde à expropriação de um Deus que está eternamente em processão, saindo de si ao encontro do outro. Desse sair de si, na economia, é possível a teologia, como conhecimento e nomeação de Deus. Nesse sentido, a verdade teológica é relacional antes de ser dogmatizada.143

Moltmann afirma que a unidade trinitária “não é uma unidade fechada em si mesma, exclusiva, mas uma unidade aberta, convidativa e integradora.”144 Essa concepção sobre Deus

contribui para a superação de uma ontoteologia. No Deus trinitário, segundo a tradição latina, a diferença pessoal se dá na relação, sem destruir a unidade: o Pai gera, o Filho é gerado, o Espírito procede de um e de outro. As distinções derivam das relações e as relações acontecem no seio da única essência divina. Assim, é possível conciliar a trindade pessoal com a unidade essencial. Não há concorrência entre alteridade e comunhão. Deus é uno sem confusão pessoal e trino sem divisão substancial. Para Bruno Forte, a pericorese prosopopaica é o “vínculo da vida eterna divina no mútuo relacionar-se e inabitar-se das Pessoas.”145

Supera-se, assim, um monoteísmo monárquico universal e passa-se a uma concepção

triunitária comunional do mistério divino. A essência divina como amor não exclui as

diferenças pessoais, pois “o verdadeiro amor nunca anula as diferenças.”146 Em Deus, mesmo

o agir ad extra é um agir pericorético, a partir do dinamismo vivo da unidade divina; ou seja, é opus amoris que nunca é indiferença. Cláudio Ribeiro frisa que “a visão trinitária cristã é fonte de alteridade, comunhão, de abertura ao transcendente e de despertamento do sentido de acolhida.”147 A densidade ontológica própria das Pessoas, se funda na única subsistência

divina. Bruno Forte acredita que “a pessoa é tanto mais pessoa quanto mais na sua absoluta originalidade se comunica.”148 A essência comum não anula as personalidades peculiares. A

comunhão acontece na diferença. Em uma visão cristã, Deus é mistério de comunhão que tende a sair de si, de sua autossuficiência, suscitando diferenças. Por isso, é possível reconhecer as manifestações diferenciais do Espírito de Deus na história humana.

143 Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje, p. 161-163; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios

da filosofia do direito, p. 216-218.

144 MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica, p. 268. 145 FORTE, Bruno. A Trindade como história, p. 84.

146 FORTE, Bruno. A Trindade como história, p. 142. 147 RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Religiões e paz, p. 930. 148 FORTE, Bruno. A Trindade como história, p. 151.

A relacionalidade trinitária, segundo Geffré, corresponde a uma recusa simbólica da concepção unitária da preponderância do único, segundo a lógica da identidade, e postula as diferenças como mediação a partir da qual se vive e se edifica a unidade/comunhão. O Deus do monoteísmo cristão pode ser compreendido como vida diferenciada na comunhão, pois é em si mesmo não identidade absoluta, mas comunhão na diferença. Deus é mistério de comunhão e de comunicação; é abertura, é partilha que compartilha e transborda, fazendo Aliança com a humanidade, na transitoriedade histórica. É preciso pensar a transcendência de Deus segundo a lógica do amor, e não segundo a lógica ontoteológica. Mais do que o Ser necessário, imutável e infinito, Deus é amor, cuja transcendência se reveste, paradoxalmente, de uma humildade kenótica, no âmbito da contingência e da finitude, a fim de alcançar os seres criados e incluí-los em suas relações de comunhão e de vida. Esse Deus exodal, que sai de si, é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente ao mundo. Não se identifica com o Um metafísico, oposto à multiplicidade cósmica. É um Deus triuno, Ser de comunhão, profundamente relacional, que não fica apático às dores e sofrimentos da humanidade149, mas

as assume para si, compartilhando radicalmente de seus dramas existenciais. Portanto, a

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