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3 LOGOS COLABORATIVO: o diálogo entre as religiões em prol de uma cultura de paz e não violência

3.1 INTOLERÂNCIA E VIOLÊNCIA RELIGIOSA COMO DEMONIZAÇÃO DO DIFERENTE

3.1.1 A relação entre violência e sacralização da verdade

Quando se perde o senso hermenêutico da condição histórica da verdade de ordem religiosa, cai-se na cilada exclusivista da verdade obrigatória, autoestimada como única arca de salvação. Um discernimento sério a respeito do proselitismo militante718 desvela a sua

tendência à autolegitimação forçada, em virtude de uma concepção absolutizadora da verdade e pelo desprezo à liberdade de consciência e à dignidade humana. O Concílio Vaticano II afirma que as pessoas de hoje, estão cada vez mais conscientes a respeito “da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável”, ou seja, sem coação, mas por consciência do próprio dever, pois “a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte” (DH 1), sem, para isso, fazer recurso à violência. Por isso, a liberdade religiosa acarreta na liberdade de culto, de opinião e de expressão. Porém, analisando a história das religiões, observa-se, segundo Geffré, um infeliz relacionamento entre sacralização da verdade e justificação da violência:

Quando se olha para trás, para a longa história do religioso, deve-se convir que o balanço é profundamente ambíguo. As religiões atiçaram, demasiado frequentemente, a violência da história. Não é possível impedir que seja evocada a tese de René Girard sobre a conivência secreta entre o sagrado e a violência. A história do religioso é, com muita frequência, a história da intolerância, do fanatismo, da exclusão, de práticas, às vezes, desumanas e do abuso de poder sobre as consciências. Mas é preciso acentuar a ligação muito particular entre a sacralização da verdade e a legitimação da violência. É em nome do Absoluto de uma verdade religiosa – o que Emmanuel Lévinas designa como “o áspero gosto do absoluto” – que se pode justificar guerras santas que conduzem ao massacre de vidas inocentes. É o famoso triângulo antropológico do qual gosta de falar o muçulmano Mohammed Arkoun: violência-sagrado-verdade.719

718 Nesse sentido, Coste defende que se existe um aspecto do fenômeno religioso que suscita dificuldades é o

estabelecimento e a propagação de uma religião. A expressão livre de uma crença pertence à essência da liberdade religiosa. Uma comunidade religiosa que não procura propagar a sua fé sofre de esclerose e de fechamento. O crente que não é militante, pode não ser um verdadeiro crente. Porém, ao lado do indispensável ardor missionário, podem caminhar as seguintes atitudes: o desejo de dominação e prestígio, a corrupção pervertida sob a aparência de santidade e a busca por lucros materiais. Quando essas atitudes prevalecem, é normal que as reações à religião recém-chegada sejam de desconfiança e até de hostilidade (Cf. COSTE, René. Théologie de la liberté religieuse, p. 252-253). A solução teológica para isso, consiste em encontrar a distinção necessária entre a identidade e a necessidade da missão e a sedução desvirtuada e perversa do proselitismo.

Geffré adverte que é preciso descartar duas ilusões que são fruto de generalizações apressadas: a primeira, que defende que verdades de ordem religiosa teriam o monopólio do fanatismo, sendo, de modo geral, mais intolerantes que as ideologias ateias. O século XX, palco dos piores genocídios da história – resultado de ideologias ateias como o nazismo e o stalinismo –, invalida essa tese; a segunda, seria a ideia de que as religiões monoteístas, por apelarem à verdade revelada por um Deus pessoal, seriam mais intolerantes do que as demais religiões – politeístas ou sem Deus –, porém, a história demonstra que todas as religiões, indistintamente, podem gerar fanatismos quando manipuladas pelo poder político em prol de uma causa, ou de uma raça, etnia ou classe social. Nesse caso, ao invés de apaziguar, as religiões atiçam a violência contra as minorias ou contra os que são diferentes.720

Apesar das ilusões supracitadas, Geffré reflete sobre a história de intolerância das três religiões monoteístas, cuja raiz se encontra na ligação entre o absoluto de uma verdade que tem o próprio Deus como fiador. O judaísmo, consciente de sua eleição divina enquanto povo, tende a excluir os outros povos. Esse drama se agudiza com a criação do Estado de Israel, pela dificuldade em gerir a tensão entre justiça torânica e direito de recurso à violência na defesa dos direitos de soberania estatal. Na cristandade medieval, o cristianismo veiculou a ideologia unitária favorecido pela política imperial, havendo, muitas vezes, confusão entre o poder espiritual e o poder temporal, com recurso à força do braço secular contra infiéis, hereges ou cismáticos, a fim de garantir a expansão da Igreja. Segundo Geffré, no islamismo, cujo surgimento pode ser considerado tipicamente fundamentalista, muitas vezes, se transformou o

Djihad – combate espiritual contra si mesmo – em combate armado contra os inimigos do

islã. De modo geral, a tentação típica das religiões monoteístas é a idolatria, que consiste em conferir a um povo, a uma Igreja ou a um livro, a unidade pertencente exclusivamente a Deus. A grande contradição jaz no fato de que enquanto Abraão é um símbolo de hospitalidade com o estrangeiro, entre os filhos de Abraão persistem discórdias, rivalidades e exclusão.721

Segundo Breno Campos, “todo fundamentalismo sucumbe à tentação da sacralização da verdade e, portanto, percorre mesmo o caminho aberto para o fanatismo e a intolerância.”722 Ansiando por clareza e precisão, o fundamentalista tenta eliminar as múltiplas

opções para repousar tranquilo na uniformidade. A razão fundamentalista não suporta a diferença e somente compreende a lógica daquilo que é unificado na identidade. Ibraim de Oliveira salienta que para o fundamentalista, “um discurso que não se rege pelo princípio da

720 Cf. GEFFRÉ, Claude. O futuro da religião entre fundamentalismo e modernidade, p. 325-326. 721 Cf. GEFFRÉ, Claude. O futuro da religião entre fundamentalismo e modernidade, p. 326-327. 722 CAMPOS, Breno Martins. Fora do fundamentalismo não há salvação, p. 117.

não contradição é tido como irracional, logo não merece confiança, é extravagante e deve ser combatido.”723 A obsessão fundamentalista não se contenta em encontrar a verdade ao seu

modo, mas pretende impô-la ao conjunto da sociedade, a fim de não colocar em risco a salvação eterna das suas almas. O fundamentalista inclina-se facilmente ao absolutismo e à prática da violência. Breno Campos afirma que “embora a passagem da teologia para a ação fundamentalista não seja necessariamente violenta, o fundamentalismo será sempre violento em virtude da sacralização da verdade – que deve ser imposta a todos e a qualquer custo.”724

Em suma, o discurso fundamentalista anula a expressão plural da verdade, sufocando-a em conceitos logocêntricos e combatendo as posturas contrárias.

Para Geffré, o objeto da fé cristã é o próprio mistério da verdade divina que se automanifesta na pessoa de Jesus Cristo. A verdade testemunhada pelo cristão não é de ordem objetiva, segundo a lógica da não contradição, mas trata-se de uma verdade atestada, mantida na incondicionalidade da fé. Porém, não é uma verdade arbitrária. É da ordem do testemunho. Refere-se à concretude existencial e preocupa-se com a liberdade (LC 26). Difere, assim, da verdade aristotélica proposicional – adequação entre a inteligência e a realidade – que se situa na ordem do juízo. Conforme Geffré, é preciso ir ao encontro de uma verdade mais original, ao estilo da revelação bíblica, na ordem da manifestação, que remete a uma plenitude de verdade de ordem escatológica. Trata-se de encontrar a essência da verdade, onde o verdadeiro não é simplesmente o contrário do falso, e de desconstruir o paradigma ocidental da verdade científica, pois em religião, o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda. A verdade, no sentido bíblico, é um permanente advir, visando uma realização além da história. Mesmo Cristo, considerado pelos cristãos como realização ou acabamento das figuras veterotestamentárias, permanece um mistério a ser desvendado. A plenitude de Cristo ainda está para vir e os relatos dos quatro Evangelhos remetem à plenitude do Evangelho, cujo sentido ainda não se manifestou completamente na história. A verdade cristã está menos na ordem do juízo e mais na ordem da antecipação do mistério escatológico. A noção de verdade como manifestação, ajuda a reconquistar a originalidade da compreensão cristã da verdade, muito mais que o sentido grego de verdade como adequação ou correspondência entre a inteligência e a realidade, e, além disso, alimenta um senso diferencial na apreensão da verdade725, evitando o fomento de posturas fechadas e intolerantes

em relação a outras formas de apreender a verdade.

723 OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 32.

724 CAMPOS, Breno Martins. Fora do fundamentalismo não há salvação, p. 127.

725 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 139-141; Id. Les déplacements de la vérité dans la théologie

A metafísica da sacralização da verdade tem uma relação profunda com a intolerância e com a violência. Para Ibraim de Oliveira, o procedimento metafísico é dissimuladamente violento por ser um combate ardoroso às posturas contrárias ao discurso assumido como verdadeiro. Em virtude de uma coerência lógica com a verdade sobre Deus, cria-se uma contenda conceitual entre as religiões. É preciso arejar a rigidez conceitual do discurso sobre Deus através do discurso-dom, como aceno à verdade, sem pretensões determinantes. A menor violência está no discurso menos potente e menos rígido logicamente.726 Geffré afirma

que os enunciados da fé cristã remetem a um mistério que ultrapassa infinitamente os conceitos que lhe são atribuídos. No entanto, as representações do pensamento metafísico frequentemente correm o risco de erigir ídolos conceituais que pretendem moldar a verdade divina ao intelecto humano. Porém, a revelação da verdade cristã é correlativa a uma perspectiva de ocultamento em relação à plenitude de verdade que coincide com o próprio mistério de Deus, remetendo ao futuro, ao Cristo que vem. Por conseguinte, para Geffré, a tolerância se apoia em uma convicção forte, diferindo de uma concepção fechada, como acabamento rígido, ou de um consenso irenista. Por isso, o diálogo inter-religioso não acarreta na suspensão da verdade. O que é determinante no diálogo é o respeito e o amor pelas pessoas. O verdadeiro debate propicia a confrontação de ideias pela força da argumentação, e motiva ao progresso na percepção das diferenças fundamentais que configuram compreensões peculiares, as quais, muitas vezes, impedem a formação de consensos definitivos.727

A teologia clássica, ao apelar para uma concepção absolutista de verdade, não é capaz de reconhecer verdades diferentes sem comprometer sua pretensão à verdade. Essa teologia interpreta outras maneiras de compreender a verdade como degradadas ou incompletas em relação a uma verdade de excelência e integração. No entanto, para o cristianismo, a essência da verdade é ser partilhada, pois o acontecimento da revelação não desvela ou desoculta a totalidade do seu conteúdo. Sendo assim, outras experiências religiosas podem testemunhar, à sua maneira, preciosos lampejos da verdade que emana das propriedades insondáveis do mistério divino. Contudo, só no final dos tempos haverá a manifestação da convergência misteriosa das religiões no único desígnio divino, enquanto isso não acontece, é preciso respeitar, no tempo da história, as vias misteriosas de Deus no coração da humanidade728,

aceitando o fato de que a compreensão hodierna da verdade sobre o desígnio divino se restringe à capacidade humana de conhecer.

726 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 33. 727 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 142-143.

728 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 143-144; Id. La question de la vérité dans la théologie

Para Geffré, no coração do cristianismo está o paradoxo da encarnação – rebaixamento de Deus e aliança teândrica mais radical – que motiva ao diálogo e à humildade diante da verdade religiosa, além do fato de que Jesus põe fim à violência do sagrado, não só dos sacrifícios rituais, mas da própria visão de Deus – interpretado não mais em termos de onipotência e belicosidade. Apesar dos percalços do individualismo religioso estéril e egoísta, da intolerância às crenças alheias e da manipulação massiva das consciências, Geffré acredita que esses são tristes desvios da experiência religiosa fundamental, e que as religiões podem dar seu contributo para humanizar a globalização, indicando um caminho alternativo. Porém, é preciso evitar a conivência velada entre o sagrado e a violência, dissimulada por um atordoamento das consciências. Na história das religiões, muitas vezes, em nome do Absoluto, chegou-se ao ponto de justificar guerras santas, com o consequente massacre de vidas inocentes. Isso não pode passar ileso sem um exame de consciência histórico.729

Segundo Vattimo, enquanto a questão da verdade estiver ligada à tradição metafísica, a violência predominará nas religiões.730 Tillich afirma que a verdade religiosa expressa a

relação entre a pessoa humana e o incondicional através de símbolos, abrindo uma perspectiva pluralista na compreensão da verdade. Porém, nas religiões há uma tendência a absolutizar a verdade referente ao incondicional, gerando idolatria e violência contra os que são considerados no erro.731 Por isso, a fé precisa conciliar a certeza e a esperança, fundadas no

incondicional, com a tolerância, ancorada na consciência da própria limitação. Para Geffré, a absolutização da verdade religiosa conduz à ideologia da verdade obrigatória, sustentando que todos os meios, inclusive os violentos, são úteis para constranger a aderir à verdade.732

Metafísica e violência estão intimamente relacionadas à história do cristianismo e das religiões. É necessário pensar a verdade religiosa como descrição inconclusa ou insuficiente do incondicional. Segundo Tillich, é preciso aceitar o risco do ato de crer.733 O paradigma da

certeza absoluta corrói a pura essência do ato de crer. As dúvidas, os questionamentos e as incertezas fazem parte da fé. Quando a verdade religiosa é absolutizada e esquece-se que ela aponta para além de si mesma, outras crenças são expostas ao processo violento da exclusão. Cultivar uma fé não violenta, não significa cair no relativismo, mas implica na aceitação da relatividade inerente à própria fé e da incondicionalidade constitutiva do mistério divino.

729 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 250-251; Id. Ibid., p. 385-386; CORTESI, Alessandro. Das

Christentum als Religion des Evangeliums, p. 72-73.

730 Cf. VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 144. 731 Cf. TILLICH, Paul. Dinâmica da fé, p. 20; Id. Ibid., p. 51. 732 Cf. GEFFRÉ, Claude. De Babel a Pentecostes, p. 389-397. 733 Cf. TILLICH, Paul. Dinâmica da fé, p. 15.

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