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3 LOGOS COLABORATIVO: o diálogo entre as religiões em prol de uma cultura de paz e não violência

3.1 INTOLERÂNCIA E VIOLÊNCIA RELIGIOSA COMO DEMONIZAÇÃO DO DIFERENTE

3.1.2 Metafísica, violência e história do cristianismo

Habermas caracteriza o pensamento metafísico como o pensamento da identidade que lança um olhar totalizante sobre a realidade, referenciando a pluralidade histórica à unidade originária e arquetípica de um elemento extramundano, em relação ao qual são explicados os fenômenos objetivados da materialidade da vida. Tudo é pensado a partir do todo, não havendo uma justificativa causal encontrada no nível dos próprios fenômenos, mas em algo que os subjaz. Alguns elementos levaram à superação da metafísica, enquanto pensamento dominante no Ocidente: a racionalidade metódica desenvolvida com a emergência do método experimental das ciências naturais e o estabelecimento do formalismo jurídico em detrimento do conhecimento filosófico; o advento das ciências histórico-hermenêuticas e o rompimento com a razão idealista; a crítica à reificação, à funcionalização da vida e dos relacionamentos e à compreensão objetivista da ciência e da técnica pela desconstrução do paradigma epistêmico da relação sujeito-objeto; a inserção da teoria em seu contexto prático, derrubando o clássico primado da teoria frente à prática.734

A derrocada da metafísica é marcada pelo enfraquecimento das metanarrativas em prol da práxis localizada e da substituição da racionalidade única pelos jogos plurais de linguagem. Para Manfredo de Oliveira, doravante “não há mais uma razão abrangente de todos os níveis da realidade: a pluralidade reina soberana e qualquer unidade última está sob suspeita da ilusão metafísica.”735 O pluralismo das múltiplas razões passa a substituir a ideia de uma razão

universal. A metafísica propôs essências, substâncias, ideias e formas universais, paradigmas inalteráveis e eternos, modelos perfeitos e verdades absolutas e a-históricas. O advento da consciência histórica possibilita uma crítica à superioridade do atemporal e do necessário sobre o histórico e o particular sob o signo da materialidade e da mudança. A hermenêutica filosófica foi importante nesse processo de desmantelamento do idealismo metafísico em vista da historicidade da compreensão, ao questionar a verdade como adequação entre o intelecto e a realidade, concebendo-a na dinâmica do acontecimento como desvelamento do ente.

Nietzsche opõe-se radicalmente ao pensamento da identidade, introduzindo as noções de perspectivismo e de incerteza, a fim de criticar a pretensão teleológica metafísica de univocidade conceitual como busca da verdade a todo custo. Nietzsche elabora uma crítica à vontade de verdade, resgatando o sentido do erro humano, pois foi exatamente o erro que tornou o ser humano profundo, delicado e inventivo, a ponto de fazer brotar as religiões e as

734 Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico, p. 39-43. 735 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e práxis histórica, p. 165.

artes. Toda a crença no valor e na dignidade da vida se baseia em um pensamento inexato. O golpe derradeiro à verdade acontece com o anúncio da morte do Deus metafísico, marco final do parâmetro absoluto, da conceituação suprema e do fundamento último, abrindo um novo horizonte, cheio de expectativas e repleto de inúmeras possibilidades, livre da obsessão pela verdade totalizadora. Para Nietzsche, o conhecimento humano é limitado e interpretativo. Não há equívoco na contradição com a verdade, mas na tendência metafísica de simplificá-la.736

Nietzsche critica a alta valorização da consciência como destruição da tragédia e limitação do inconsciente criativo. Quando tudo passa ao domínio da razão, prevalece o princípio da abstração em todos os planos da vida e da cultura. Para Nietzsche, os silogismos socráticos pretendem eliminar o trágico, fazendo morrer os mitos, enquanto expressões culturais da sede originária, restando apenas o conhecimento teórico totalizante que, enquanto representação sublime da ilusão metafísica, se caracteriza pela fé inabalável na causalidade como fio condutor que intenta atingir até os abismos mais profundos do ser. A crença na onipotência da razão faz de Sócrates uma figura antitrágica. O mundo moderno reconhece como ideal o homem teórico, cujo protótipo é Sócrates. Essa socratização da realidade, como processo gradual de racionalização de todos os âmbitos da existência, segue a lógica linear metafísica, segundo a qual, o fenomênico, o material e o múltiplo se reduzem ao conceitual, ao abstrato e à unidade ideal, como acabamento ou plenitude que se sobrepõe às diferenças concretas. Esse processo se torna problemático quando transferido ao âmbito religioso.737

Segundo Vattimo, a busca pela superação da metafísica não envolve apenas questões epistemológicas, mas tem motivações éticas. A metafísica, como pensamento da presença peremptória do ser – fundamento último diante do qual só é possível se calar – se configura como violenta, pois a evidência do fundamento impõe-se como uma autoridade incontroversa que anula toda ideia ou questionamento que diverge da unicidade essencial da verdade, que por si só, é indubitável.738 Nesse sentido, Baleeiro afirma que a presencialidade do ser implica

em um pretenso acesso à verdade, contra o qual não há argumento, silenciando o diálogo e outorgando poder absoluto às doutrinas e àqueles que nelas se apoiam. Essa forma de pensar impõe-se como absoluta, excluindo outras possibilidades de compreensão.739 Na religião, a

violência metafísica se manifesta na ideologia de um Deus forte e absoluto, que, ao contrário da dinâmica kenótica revelada por Jesus, estabelece uma moral exclusivista e opressora.

736 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano, p. 37; Id. Genealogia da moral, p. 140; Id. Além

do bem e do mal, p. 9; Id. Ibid., p. 31; Id. A gaia ciência, p. 15; Id. Ibid., p. 234; Id. Ibid., p. 278.

737 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, p. 93; Id. Ibid., p. 109; Id.

Ibid., p. 135.

738 Cf. VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação, p. 49-52.

Vattimo reflete sobre a violência implícita do pensamento do ser como presença e objetividade, pois a verdade como descrição fiel do ser, jaz sob o paradigma absolutista. Por isso, fecha-se a outras percepções e interpretações da verdade, e cala todo perguntar que destoe de uma referencialidade única. Essa concepção de verdade fundamenta os jogos de poder, nos quais o mais forte, que se compreende como o portador da verdade, impõe ao outro o seu ponto de vista, tornando a verdade algo incontestável. A verdade da metafísica tradicional tende a anular toda forma de pluralismo ideológico, cultural e religioso, por entender que a descrição da presença incontroversa do ser, precisa ser preservada sem questionamentos.740 Baleeiro constata que na relação entre fé e verdade, como adequação do

pensamento à realidade, há, sem dúvida, um elemento de violência. Essa noção de verdade ligada à concordância e à presencialidade estável e evidente do ser, segue o perfil da metafísica tradicional, e procede a uma afirmação definitiva do ser, não permitindo outras experiências da verdade. Como alternativa a essa postura, há a concepção de verdade relacionada à linguagem que justifica a ideia de verdade como interpretação.741

O procedimento metafísico parte de postulados preestabelecidos, prescindindo das individualidades destoantes, a fim de alcançar uma visão de conjunto, pela via da síntese. No entanto, para Ibraim de Oliveira, em se tratando de crenças e ideologias, é necessário ressaltar que toda síntese é prepotente, pois é seletiva, elegendo apenas aquilo que convém ao ideário predominante, combatendo discursos contrários, tidos como inválidos, falsos, e que, por isso, precisam ser excluídos. O paradigma epistemológico metafísico acaba por dissimular a prática da violência pela imposição da coerência a ordenamentos racionais predeterminados. Com proposições rígidas, combate o que é antagônico. O discurso teológico, por exemplo, emerge como intrinsecamente violento, na medida em que se pretende coerente com a única verdade outorgada pelo intelecto. Enquanto a epistemologia metafísica está tomada por um otimismo a respeito da capacidade humana de conhecer, a epistemologia pós-metafísica abre-se para uma consciência crítica sobre os limites do conhecimento humano, a partir da consciência de sua intrínseca finitude, buscando compreender os riscos dos conceitos assumidos como fórmulas de verdade, com o intuito de evitar, na medida do possível, uma tirania dos conceitos. Com relação ao discurso sobre Deus, têm-se o receio de que o mesmo possa se transformar em motivação de combate quando os seus conceitos constituintes são erigidos em elementos estratégicos de sobreposição às interpretações alheias.742

740 Cf. VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação, p. 50.

741 Cf. BALEEIRO, Cleber Araújo Souto. A violência da relação entre fé e verdade, p. 54-57. 742 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 39; Id. Ibid., p. 64-65.

A pretensão dominadora da linguagem metafísica se manifesta, segundo Ibraim de Oliveira, na prepotência de conceitos autodeterminados como eternas verdades que tiranizam outras visões da realidade. Contudo, por trás das discussões sintetizadoras, não há verdades, mas luta de interpretações. É preciso ultrapassar a roupagem conceitual metafísica que anula a capacidade de convivência com outras perspectivas epistêmicas. A pretensão de condicionar o discurso estabelecendo limites, adequações lógicas e combatendo posturas divergentes, é uma fuga das contradições inerentes ao próprio mundo da vida. As artimanhas teleológicas da metafísica discursiva, condicionam a multiplicidade conceitual à uma uniformidade ideal, avassalando a liberdade expressiva em virtude da necessidade ansiogênica de conclusões apressadas. O discurso carente de finalidade, situa-se em uma ininterrupta cadeia de signos, constantemente reajustáveis. Isso é insuportável para quem almeja seguranças conceituais.743

A dinâmica epistêmica do discurso totalizador e disciplinador da unicidade de sentido, esconde a vitalidade do embate interpretativo, como condição de possibilidade da emergência de uma pluriformidade sinfônica (VD 7), ou mesmo dissonante (VD 13), de significados.744

Em um sentido derridiano, tratando-se da capacidade humana de conhecer, “não há puro começo ou fim absoluto, há sim a aventura peregrina da errância interpretativa.”745 Sendo

assim, para Ibraim de Oliveira, é necessário que se desenvolva a capacidade de diálogo com posições contrastantes por meio de um discurso não ordenado a um fim absoluto, mas sim, como solicitação, convite, proposta. Desse modo, se revela como um discurso-dom, que não se encerra em convicções cabais, mas compreende a necessidade de sair das próprias seguranças, colocando-se a caminho, rumo à ampliação das perspectivas vigentes.746

Para Ibraim de Oliveira, a dinâmica do discurso-dom compreende a realidade de um discurso doado e desinteressado, que apenas acena e sinaliza ideias. O discurso teleológico, ao contrário, ávido de conceitos eternos e verdadeiros, caracteriza-se como degeneração, pois almeja declinar o contraditório. O discurso-degeneração se orienta pela coerência lógica e por afirmações unívocas, com a intenção de declarar. O discurso-dom ressalta o múltiplo, a diferença e a dinamicidade das interpretações, sem imposição. Na experiência religiosa, o discurso-dom emerge como proposta imersa em um emaranhado de possibilidades, como exercício de comunicação na diferença747, pois em perspectivas simbólicas, todo conceito não

é mais que uma interpretação: uma amplitude aberta à doação epistêmica de sentido.

743 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 66-70. 744 Cf. VON BALTHASAR, Hans Urs. A verdade é sinfônica, p. 44.

745 GOMES, Tiago de Fraga. Desconstrução e heterodoxia linguística em Jacques Derrida, p. 276. 746 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 71.

A crítica pós-moderna ao pensamento metafísico afirma que não é possível conceber uma realidade estática. Tendo em vista a historicidade de toda verdade e a circularidade hermenêutica de sujeito e objeto no âmbito da linguagem, a verdade passa a ser ressignificada, deixando de ser considerada como única e absoluta, para passar a ser compreendida como limitada e relativa, como uma interpretação entre tantas outras possíveis. A linguagem é a condição de possibilidade para adentrar na essência da realidade, sem, contudo, esgotá-la completamente. Para Heidegger, “é a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de alguma coisa.”748 Vattimo afirma que “a linguagem é a sede

do evento do ser”749, é a mediação e a delimitação da relação entre o sujeito e a realidade. O

olhar sobre a realidade é sempre parcial. Por isso, a verdade, em um sentido pós-metafísico, não é meramente descrição, mas interpretação.

Segundo Ibraim de Oliveira, por um longo período, o cristianismo foi influenciado pelo logocentrismo ocidental advindo do platonismo, um dos principais responsáveis pela formatação do paradigma metafísico em teologia. A ortodoxia logocêntrica estimula o enrijecimento de uma racionalidade normatizadora que pretende ordenar tudo e reprimir os impasses emergentes da jornada histórica, elaborando um discurso violento que obriga à adesão, sem interlocução real. A inflexibilidade raciocêntrica erige uma ortodoxia metafísica indefectível que atua como cavalo de batalha contra perspectivas diferenciais. Quando o critério do discurso é o melhor dizer sobre Deus, subjugando e anulando as diferenças, instaura-se um combate entre crenças religiosas. Uma sincera reminiscência histórica traz à tona o fato de que a religião cristã, originalmente contra todo tipo de violência, assumiu um corpo doutrinal potente e violento contra os discursos opostos.750

Para Ibraim de Oliveira, as afirmações verdadeiras sobre Deus, em suas bases metafísicas, dissimulam a violência, pela atuação puritana de um rigorismo conceitual. Porém, é preciso se perguntar: há algum discurso que não seja violento?751 Segundo Strummielo, é

necessário buscar uma economia de violência752, pois o mesmo logos que opõe-se à violência,

nasce da violência. Por isso, afirma Ibraim de Oliveira, a economia de violência está intrinsecamente ligada à economia de discurso potente, como exercício de silêncio diante do mistério e de escuta do outro753, evitando-se, assim, tanto a ereção de ídolos conceituais,

quanto a consideração do outro como uma ameaça.

748 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, p. 168. 749 VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger, p. 134.

750 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 74-76. 751 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 76-77. 752 Cf. STRUMMIELO, Giuseppina. Logos violato, p. 89-90. 753 Cf. OLIVEIRA, Ibraim Vitor de. Violência do “saber”, p. 78.

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