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5 O RECRUDESCIMENTO DO DISCURSO MISÓGINO NA ESCALADA DA

5.2 A alternativa discursiva da violência física contra mulheres

No discurso musical em estudo, que materializa a ideologia hedonista e produz efeitos de sentido misóginos, há posições-sujeito em que pulsam desejos sádicos de violentar fisicamente a mulher, de lançar sobre ela toda sua força física, esfolá-la, arrebentá-la, começando por abrir-lhe as entranhas com a violência de quem usa uma ferramenta rude (pedra, machado) para cortar troncos de árvore e fazer lenha ou para afugentar animais ferozes. Eis alguns dos efeitos de sentido em funcionamento noutra produção do grupo O Troco, que fez da misoginia discursiva sua via predileta para o sucesso carnavalesco baiano, cujo exemplar da vez se intitula “Lascador”:

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SD (43)

Você tá ligado na minha fama Tá ligado que sou pegador Pego a morena, pego a loira Eu pego quem for [4x] Mas eu só vou de camisinha Eu não sou brincadeira Sou cobra-criada Tome tome sua danada Tome tome sua danada Tome tome sua danada Tome tome sua danada

Você pede com força eu te dou madeirada [...]

(LASCADOR, [2010?])

O narcisismo machista encontra um espelho fiel nessa canção de cunho ideológico misógino, uma vez que as escolhas alternativas nela cantadas/ditas fazem circular sentidos que refletem o pensamento de quem ideologicamente se identifica com relações de gênero hierarquizadas mediante a subjugação da mulher aos desejos sádicos do homem. Embora a humanidade já tenha saltado a estágios superiores ao da Idade da Pedra Lascada (Paleolítico), ainda sobrevive, entre nós, a memória do homem que lascava as pedras para transformá-las em instrumentos e armas necessárias à sua sobrevivência num meio hostil repleto de feras selvagens. Ao analisar o título da canção de O Troco na SD (43), temos a impressão de que, no campo das relações interpessoais que envolvem sexualmente homens e mulheres, as ameaças não desapareceram para o homem especificamente, que, ocupando o lugar do ancestral paleolítico, o homem “lascador”, teme a mulher como se ela fosse a atual fera selvagem a ser “lascada”. Assim, as teleologias primárias, nas quais as finalidades postas e os meios utilizados visavam à dominação da natureza, transformaram-se em teleologias secundárias, em que, no caso da canção “Lascador”, as finalidades e os meios empregados almejam à subjugação das mulheres. O membro masculino funciona simbólica e materialmente como a ferramenta moderna usada para “lascar” as mulheres.

Um eficiente procedimento da Análise de Discurso – relacionar o dito ao não dito, ao já dito noutros lugares ou ao que ainda podemos dizer (ORLANDI, 2010) – ajuda a compreender o lugar ideológico assumido pelo sujeito do discurso na canção em questão. Forjada do ponto de vista do homem “pegador”, as sequências discursivas materializadas na primeira estrofe encerram um retrocesso porque concebem as mulheres como presas do homem: “Você tá ligado

na minha fama / Tá ligado que sou pegador / Pego a morena, pego a loira / Eu pego quem for”. A fama de “pegador” do qual não escapam as mulheres, de qualquer classe ou etnia, constitui, a um só tempo, um ideal que assume a forma de um autoelogio narcisista ao poder do macho e de um desejo latente de manter a mulher prisioneira do homem: ele “pega” todas. Portanto a visão do “pegador” é a visão de quem toma posse de alguém, de quem aprisiona o outro, de quem não reconhece a liberdade de escolha doutrem.

Do ponto de vista idealizado por quem luta pela emancipação feminina, porém, o “pegador” poderia abandonar suas convicções narcísicas e machistas e converter-se num “libertador”. Não seria um novo mártir em nome de uma nova pátria, mas um homem que compreendesse a história das mulheres, a involução representada pela imposição do patriarcado e que, consciente da opressão histórica a que elas têm sido submetidas, procurasse contribuir para a construção de relações orientadas para a conquista das liberdades verdadeiramente humanas. Em vez de se vangloriar de sua “fama” de pegador/opressor, de seu poder de pegar/possuir, esse homem poderia difundir em toda a vida social os sentidos de libertar/evoluir no campo das relações humanas e das relações interpessoais que envolvem sexualmente homens e mulheres. Ele prestaria uma importante contribuição à história da humanidade e dos homens brasileiros em particular, ajudando a desconstruir os sentidos da descrição/interpretação realizada por um importante crítico de nossa literatura: “a análise do imaginário amoroso mostra que a nossa cultura está cheia de péssimos amantes” (SANT’ANNA, 1993, p.12 – itálico do autor).

A verdade, porém, é que as nossas condições de existência estimulam e favorecem a constituição de sujeitos mais afeitos à opressão do que à libertação, o que nos torna, no mínimo, amantes suspeitáveis. A julgar os sentidos do que está dito na canção “Lascador”, nossas relações sociais dão vida a “cobras-criadas”, cujas mentalidades machistas sobrevivem aos avanços tecnológicos representados pelas modernas técnicas de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis e a gestações indesejadas: “Mas eu só vou de camisinha / Eu não sou brincadeira / Sou cobra-criada / Tome tome sua danada / Tome tome sua danada”. Deixada de lado a secundária conquista tecnológica, o verbo “tomar” assume o primeiro plano e, duplicado no imperativo, adquire os sentidos de uma punição ou de um castigo que açoita a mulher, como se o homem fosse, simultânea e deleitosamente, o seu juiz e carrasco, cuja sentença e cujo instrumento de tortura se materializam mediante a penetração sexual violenta. Assim, a “danada”, a tomada pela ancestral “danação” bíblica, parece nunca se purgar de suas faltas e pecados. Descrever/interpretar a mulher sob o signo da “danação” traduz uma escolha alternativa que a aproxima do “danado”, representando-a como uma legítima herdeira de Eva,

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que teria sucumbido às seduções do demo. Mais de dois mil anos após a morte de Cristo não foram suficientes para os homens concederem indulgência à mulher; ao contrário, eles, como bons sectários do Deus de amor, relembram, atualizam e eternizam, cotidianamente, a punição divina a Ela/Eva.

A alternativa hedonista radical assumida pelo Marquês de Sade, na segunda metade do século XIX, propunha a satisfação das pulsões eróticas a qualquer custo, nem que para isso fosse preciso destruir toda e qualquer obstrução ao gozo. A violência física e moral são meios por ele sugeridos para a satisfação da libido. Na concepção de Sade, o homem, deve se comportar como um tirano ao ir para a cama com uma mulher. Em sua memória, tal ideologia hedonista recebeu a denominação de sadismo: o comportamento sexual que se deleita em fazer o outro sofrer, moral ou fisicamente. Para Freud (2010), instintos de vida e de morte atuam simultaneamente na experiência sexual, sob a forma de uma destrutividade que tanto pode se dirigir para a exterioridade, como desejo de destruir o outro (sadismo), quanto para o interior, como desejo de autodestruição (masoquismo). Legatário da memória de um sadismo ideologicamente comprometido com o desejo de destruir a mulher, o discurso musical baiano, mediante a intensificação da ideologia hedonista, assume a feição de uma discursividade misógina, que propõe o exercício da violência física contra a mulher, tal qual sugere a letra da música carnavalesca baiana denominada “Machuca”:

SD (44)

Quando ela desce entra, Quando ela sobe sai Quando ela desce entra Quando ela sobe sai

Machuca, machuca, machuca Machuca, machuca, machuca Machuca, machuca, machuca Passa nela, passa nela Passa, na cara dela Passa nela, passa nela Passa, na cara dela

(MACHUCA, [2011?])

O título da música na SD (44), um verbo no imperativo, já põe uma alternativa a respeito do que se deve fazer com uma mulher, identificada no texto musical pelo pronome feminino “ela”: machucar. Esse gesto interpretativo, compreendido como um ato no nível simbólico (ORLANDI, 2007), é um primeiro vestígio da posição ideológica assumida pelo sujeito do

discurso, que manifesta seu desejo de agredir a mulher em sua matéria corporal. Os sentidos e o caráter dessa violência aparecem na primeira estrofe da canção (“Quando ela desce entra / Quando ela sobe sai”), na qual se descrevem movimentos que, fazendo intervir a memória do dizer e o imaginário relativo às práticas sexuais, sugerem o intercurso sexual de uma mulher cavalgando sobre o homem.

Como os verbos “entrar” e “sair” já significaram assim antes, noutro lugar, o imaginário mobilizado nessa formulação discursiva não deixa dúvida a respeito dos sentidos que os complementam: o movimento de entrada e saída do membro masculino na genitália ou no ânus feminino. Tal sugestão só adquire sentido por causa do interdiscurso, o conjunto heterogêneo dos já ditos noutros lugares que aí significam. Nesse caso, o discurso, funcionando como uma câmera do cinema pornográfico, flagra em detalhes a intimidade sexual materializada pelos movimentos de entrada e saída do membro masculino, com o intuito de expor não o homem, o “comedor”, ao ridículo, mas a mulher, a “comida”.

A estrofe seguinte (“Machuca, machuca, machuca / Machuca, machuca, machuca / Machuca, machuca, machuca”) intensifica a finalidade posta no título: o desejo do sujeito do discurso de que, num ritmo alucinante, a penetração seja tão violenta que machuque a mulher. Trata-se, portanto, de um desejo sádico, em que a intensidade do prazer dele é proporcional à dor que a penetração sexual possa causar a ela. Usar a violência para fazê-la sofrer é prazeroso na perspectiva assumida por ele. Assim, o discurso musical materializa a ideologia do hedonismo misógino e traz a memória do Marquês de Sade, que produz seus efeitos de sentido ainda que o sujeito do discurso não tenha consciência disso.

Nas duas últimas estrofes (“Passa nela, passa nela/Passa, na cara dela” e “Na cara, na cara, na cara”, respectivamente), o verbo “passar”, como os verbos “entrar” e sair”, prescinde do objeto que funcionaria como seu complemento sintático, porque o silêncio significa pelo efeito do imaginário que, embora não verbalizado ou não-dito, atualiza-se na referida formulação discursiva. Nessa textualização musical do discurso hedonista-misógino, o membro masculino funciona como o único meio e instrumento para o contato corporal do homem com a mulher, um contato que se pretende, como vimos, violento o suficiente para machucá-la e que, agora, alcança “a cara dela”, uma paráfrase grosseira para a face, o rosto ou a tez feminina. O falo, assumidos aqui os sentidos psicanalíticos da potência simbolizada no pênis, como símbolo do poder do macho, rege o contato sexual entre homem e mulher, reedita a dominação masculina de que fala Bourdieu (2005), bem como sintetiza a hierarquia de gênero das formações sociais patriarcais.

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A expressão “passar na cara” produz efeitos de sentido que atendem à finalidade de humilhar outrem. Funciona como uma vindicta, uma investida ofensiva, um acinte que, partindo do pressuposto de que o outro saiu de seu devido lugar (político, econômico, social, moral etc.), presta-se ao papel de expor o outro ao constrangimento, fazendo-o regressar a sua condição de dependência, de inferioridade, de carência, de privação, de miséria, enfim, constitui uma maneira simbólica e política de lembrar ao supostamente subalterno a sua esquecida subalternidade. A sequência discursiva “passa [o membro masculino] na cara dela” se filia a essa memória do constrangimento, da humilhação e da inferiorização do outro, que, dessa feita e não por coincidência, é a mulher. Portanto, vê-se aí uma investida masculina, com sua arma mirada para onde a violência parece produzir efeitos de sentido mais degradante e desmoralizante (o rosto), a fim de lembrar à mulher o poder e a virilidade do macho. A punição realizada com o pênis aparece noutras canções, uma das quais recebe o título de “Abecedário da alegria”: SD (45) [...] A - Aquece a perna, B - Só buchechada, C - com carinho, D - Devagarinho, E - Eu estou gostando, F - Filha da puta, G - Gordinha gostosa, [...]

Bota com raiva, [...]

Não é filme, novela , nem coisa de segundo, Robsão na sua cama é o melhor homem do mundo, Bota com raiva,

[...]

Senta com ódio, [...]

(ABECEDÁRIO DA ALEGRIA, [2011?])

A SD (45) se inicia com um arremedo de acróstico a partir das letras iniciais do alfabeto da língua portuguesa, em que cada uma delas serve de motivo para introduzir sentidos que dialogam com as “preliminares” típicas de uma cena do cinema pornográfico: “A - Aquece a perna, / B - Só buchechada, / C - com carinho, / D - Devagarinho, / E - Eu estou gostando, / F - Filha da puta, / G - Gordinha gostosa”. De A a G, uma voz filiada à formação ideológica do machismo põe à mulher a alternativa de realizar movimentos sexuais que vão progressivamente

se intensificando à medida que o homem se excita e explode em fúria: “Bota com raiva, / Bota com raiva, / Bota com raiva,”. A performance sexual mecanizada pela indústria do cinema pornográfico indica o script da cena/coreografia musical, com ênfase na violência dos movimentos de penetração sexual. O discurso hedonista-misógino propõe que o homem “bote com raiva” o membro viril na genitália (bochechada/bucetada) da “gordinha gostosa”, proposta que cria uma deriva de sentidos à alternativa do “fazer amor com amor” cantada pelo grupo Asa de Águia nos anos 1990.

Na descrição/interpretação materializada nas sequências discursivas subsequentes, o vocalista do grupo Black Style, cuja voz se filia ideologicamente ao narcisismo machista que se vangloria de sua performance sexual – “Robsão na sua cama é o melhor homem do mundo” – sugere que a mulher também faça do ato sexual uma batalha violenta, na qual a ação viril do “botar com raiva” deve ter como contrapartida a reação feminina de “sentar com ódio”: “Senta com ódio, / Senta com ódio, / Senta com ódio”. As pulsões violentas da sexualidade saem de seu estado de latência e se manifestam no discurso hedonista-misógino que, sobretudo nas letras da tendência musical denominada pagofunk, tende a silenciar a alternativa do canto/dizer romântico, que idealiza relações de outra natureza para o homem e a mulher. Enfim, nesse discurso, a típica cena do cinema pornográfico se completa, o homem e a mulher invocados a portarem-se como os atletas sexuais personificados por atores e atrizes pornôs.

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