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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

2.5 O trabalho e as práticas discursivas

2.5.1 Teleologia primária e fundação do ser social

Marx (2013) considera o trabalho humano uma atividade orientada para determinado fim. Isso quer dizer que, antes mesmo de iniciar uma atividade laboral, o ser humano cria, em sua consciência, uma ideia do produto final de seu trabalho. Sobre o processo de trabalho, é conhecida a comparação que esse autor realiza entre o pior arquiteto e a melhor abelha, para elucidar a superioridade daquele em relação a esta: o pior arquiteto prevê em sua mente o resultado final de seu trabalho, através de uma prévia-ideação, ao passo que a melhor abelha nada mais faz do que cegamente realizar ações programadas em seu código genético. A atuação dela é determinada por uma hereditariedade genética ou biológica e não origina nada de novo na realidade, já o agir dele se orienta para o futuro e apresenta a potencialidade de intervenção no real para transformá-lo segundo suas intenções, originando uma nova objetividade14.

13 A última seção deste trabalho, intitulada “O recrudescimento do discurso misógino na escalada da ideologia

hedonista”, trata mais diretamente dos efeitos da estrutura de pores teleológicos nas práticas discursivas, tendo em vista as implicações ideológicas das escolhas alternativas cantadas/ditas pelo discurso da música carnavalesca baiana referente às mulheres.

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No processo de objetivação de uma ideia previamente concebida, processo tipicamente teleológico, a busca por espelhar fielmente a realidade, reproduzi-la na consciência com a máxima fidelidade, não se confunde com a realidade em si mesma. A reprodução é uma nova objetividade que existe na consciência humana, não a objetividade externa ao sujeito que operou a prévia-ideação.

Filiado à perspectiva ontológica marxiana, Gyorgy Lukács (2013) leva até as últimas consequências a teorização do trabalho como categoria fundante do ser social, explicitando que nenhuma outra das categorias posteriormente desenvolvidas no ser humano apresenta o caráter de transição entre animalidade e sociabilidade que tem o trabalho, o qual implica uma relação do homem com a natureza. A linguagem, a consciência, a cooperação etc. só existem no ser social já constituído. Nesse sentido, a perspectiva ontológico-materialista se distancia da abordagem idealista desenvolvida por Benveniste (2005), que coloca a linguagem como a categoria fundante do ser social e considera o universo do simbolismo o divisor de águas que separa a humanidade da animalidade.

Émile Benveniste (2005) vincula a constituição do sujeito a uma determinação exclusiva da linguagem. Em sua proposição teórica, a linguagem é tão profundamente marcada pela expressão da subjetividade que a primeira possivelmente não existiria sem expressar a segunda. Para ele, a subjetividade “é a capacidade do locutor para se propor como sujeito” ou “não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem”, (Idem, Ibid). Diz o teórico da enunciação: “a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso” (BENVENISTE, 2005, p. 286). Desse modo, a linguagem é compreendida como fundamento ontológico da subjetividade. Conforme defende o teórico em “Da subjetividade na linguagem”, “não há outro testemunho objetivo da identidade do sujeito que não seja o que ele dá assim, ele mesmo sobre si” (Idem, p. 288).

Essa noção de subjetividade coloca o sujeito como origem de si mesmo, na medida em que ele só existe porque se autodenomina “eu” em seus atos enunciativos. O sujeito, assim, nada mais seria do que “ego” que diz “ego”. Dizer (eu) aqui equivaleria a ser (eu). A palavra se confunde com o objeto que designa. De complexo que faz a mediação entre os sujeitos e entre estes e o mundo circundante, a linguagem se converte em categoria fundante de uma subjetividade que se constitui exclusivamente no plano da enunciação em si mesma. O complexo da linguagem, que mantém laços estreitos com a atividade humana de produzir sua própria existência, passa a ter uma existência tão autonomizada que chega a ser a condição sem a qual a subjetividade não existiria. Dessa forma, na perspectiva idealista de Benveniste (2005), o nexo entre os complexos é invertido: em vez de a atividade do sujeito ser a condição de existência da linguagem, esta é que passa a ser a condição do existir daquele. Como diriam Marx e Engels (1998), a criatura se converte em criador e vice-versa.

Ainda na abordagem idealista, ao magicamente conquistar o simbolismo, o ser humano teria se diferenciado como ser de linguagem das outras formas de vida determinadas biologicamente. Assim, sem considerar o processo material através do qual o animal humano

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salta ao nível do simbólico, toma-se como ponto de partida o homem já constituído como um ser de símbolos, cuja palavra lhe teria permitido desprender-se de seu corpo e voltar-se sobre si próprio através da reflexão. Por essa lógica de raciocínio, chega-se à conclusão de que “a história do homem é a história do sentido que ele procura imprimir ao universo” (DUARTE JR., 1995, p. 26).

Como uma réplica no plano do idealismo, essa tese poderia até parafrasear a formulação materialista que inicia o texto de “O manifesto do partido comunista”: “A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes” (MARX e ENGELS, 2006, p. 45), mas passa ao largo da consistência desta formulação. Antes de falar, de se comunicar, de produzir discursos, o ser humano precisa viver, produzir as condições de sua própria existência, reproduzir-se biologicamente a si mesmo e à sua espécie. Em “A ideologia alemã”, Marx e Engels (1998, p. 10) já haviam lançado as bases de uma abordagem materialista da história, ao afirmar que se pode “distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência”.

Dessa forma, o salto ontológico da esfera da animalidade à esfera da sociabilidade se efetivou a partir do momento em que o animal humano, para atender às necessidades mais elementares (fome, frio etc.) e para solucionar os problemas concretos com os quais se deparava (defesa de animais ferozes), passou a pôr finalidades cuja objetivação exigia o devido conhecimento da causalidade que governa a natureza. A causalidade implica um conhecimento necessário da legalidade que rege a natureza, a fim de que se possa transformar a causalidade natural em causalidade posta, isto é, para que as leis que imperam na ordem natural sejam usadas em benefício do ser social (a força da água ou do vento para gerar energia, a resistência da madeira ou da argila para a construção de casas, o calor do fogo para cozinhar alimentos etc.). O verdadeiro ou falso conhecimento da causalidade é determinante do sucesso ou fracasso do processo de trabalho.

Cotidianamente, o ser social realiza pores teleológicos em seus trabalhos15 e essa experiência se tornou um componente de pensamentos e discursos (LUKÁCS, 2013, p. 47). Nas formas primitivas de sociedade, os pores teleológicos visavam à transformação da natureza em valores de uso, isto é, em produtos úteis à sobrevivência humana. Esses pores constituem

15 Segundo Lukács (2013), o trabalho é o único complexo do ser social no qual o pôr teleológico exerce um papel

real de transformação da realidade. Quando se atribui à natureza ou à sociedade em geral um caráter teleológico, não resta ao ser social senão uma atitude contemplativa de sua existência, de sua relação com o natural e com o social.

as posições teleológicas primárias. Já nas formas desenvolvidas da práxis social, os pores teleológicos deixam de visar diretamente à transformação da natureza, passando a ter como finalidade influenciar e agir sobre a consciência de outros homens e mulheres. Surgem, dessa forma, as posições teleológicas secundárias, a partir do momento em que alguns seres se dão conta de que podem atribuir a outros a responsabilidade de objetivar determinados fins. A partir de então, estão dadas as condições para o nascimento das sociedades de classe e, com elas, o complexo das ideologias exercendo suas funções reguladoras das condutas individuais.

A teleologia inerente ao trabalho – constituída por fins postos e decisões alternativas – estende-se a todos os atos humanos nas sociedades complexas caracterizadas por uma intensa diferenciação das atividades, em decorrência da ampla divisão social do trabalho. Esse alcance da teleologia inerente ao trabalho a todos os atos do ser social dá origem a uma “teleologia da vida cotidiana” (LUKÁCS, 2013, p. 133), a qual atravessa o discurso da música carnavalesca baiana. É importante ressaltar um dos efeitos da generalização do trabalho como modelo da práxis social em geral: da mesma forma que a natureza tem sua legalidade específica, seus nexos causais, a vida social também apresenta sua legalidade própria em determinadas condições históricas e materiais de existência, pois a teleologia secundária mantém o caráter alternativo das respostas e a necessária adequação dos meios para a realização de um fim. Entretanto, nesse processo, a estrutura interna do trabalho, embora mantenha sua base fundamental, transforma-se. Não só o objeto (que passa a ser o humano), mas os meios para a realização de um fim posto se tornam mais sociais. As cadeias causais sobre as quais o trabalho originário atua operam segundo leis universais, com uma regularidade e uma estabilidade diferente do funcionamento da ordem social, que não é homogênea e se encontra em ininterrupta transformação, razões pelas quais o grau de incerteza dos pores teleológicos secundários é muito maior em relação aos pores voltados para a transformação da natureza. Há entre ambos os pores diferenças qualitativas, que podem ser percebidas no campo da música carnavalesca baiana, na medida em que determinadas práticas discursivas visam influenciar mulheres e homens através de determinadas finalidades postas cujos valores revelam funções ideológicas relacionadas com as hierarquias de gênero.Essas finalidades que visam agir sobre o ser social são de outra ordem, denominada teleologia secundária.

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