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5 O RECRUDESCIMENTO DO DISCURSO MISÓGINO NA ESCALADA DA

5.3 O discurso do canibalismo amoroso e suas derivas machistas

Se o que caracteriza o desejo é a vontade de devorar o objeto desejado, destruí-lo, eliminá-lo, aniquilá-lo, a saciedade do desejo realiza-se não apenas pela devoração do objeto desejado como também pela autodestruição do desejo em si. No plano das relações amorosas, sobretudo quando essas relações estão investidas dos ímpetos furiosos do chamado amor- paixão, inebriado pela libido e rebelde contra a ordem, o amante frequentemente vê o ser amado pelas lentes de uma espécie de canibalismo amoroso (SANT’ANNA, 1993). Já vimos como o movimento dos sentidos, nas letras da música carnavalesca baiana, parte do ideal elaborado pelo Ocidente para as relações amorosas – síntese entre afeto e luxúria (GAY, 1990) – e desliza para a dominância da libido, da concupiscência, dos sentidos luxuriosos.

Acompanhar o movimento desses sentidos é perseguir um movimento de intensificação dos desejos, isto é, um recrudescimento das vontades de devorar e deglutir a alteridade, cujo clímax pode chegar à violência física contra o ser desejado que, num discurso misógino completamente impregnado pela ideologia patriarcal, equivale a mais violência física contra a

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mulher. A mulher, nessa ideologia misógina, canibal e antropofágica, aparece, desde sempre, como um prato saboroso, um alimento prazeroso ou uma presa a ser abatida por seu predador mais próximo na hierarquia da cadeia alimentar: o homem. Mas não basta possuir e devorar sexualmente a mulher com a finalidade de saciar os desejos sexuais masculinos, uma vez que outra finalidade se destaca no discurso da música carnavalesca baiana: a humilhação feminina, seu rebaixamento moral e sua subjugação por meio da violência física.

Se o amor pode ser pensado como impulso vital que se originou da necessidade de reprodução da espécie, portanto, como instinto de vida, curiosa e paradoxalmente o amor também é concebido como instinto de morte, na medida em que ele aparece frequentemente relacionado à finitude da vida (CASTELLHO BRANCO, 1993). Identificar o fim do amor ao fim da vida é um dos lugares mais comuns no discurso musical brasileiro: “Eu não vou negar sem você meu mundo para” (BELEZA RARA, [1996]); “Sem você, eu morro” (SEM VOCÊ EU MORRO, [2009]); “Morro de saudade, a culpa é sua (CONTRA O TEMPO, [1997]); “Assim você me mata” (AI SE EU TE PEGO, [2011]) etc.

Como instinto de vida e de morte, o amor se apresenta no discurso da música carnavalesca baiana cada vez mais despido de sua formação ideológica romântica e deixa sua face mais destrutiva e assassina manifestar-se através do que Sant’Anna (1993) chamou de canibalismo amoroso, categoria a partir da qual derivamos a noção de canibalismo machista, visto que, no discurso da música carnavalesca baiana, os sentidos do amor e do sexo se inscrevem na formação ideológica machista, mediante um trabalho simbólico que produz efeitos de evidência que superestimam os desejos e prazeres masculinos, ao passo que subestimam os femininos. Ivete Sangalo fez sucesso ao emprestar sua voz para cantar a canção “Canibal”, na qual o sujeito do discurso – identificando-se no feminino – canta feliz por ter seu coração comido pelo amor/índio:

SD (46)

[...]

O seu amor é canibal Comeu meu coração Mas agora eu sou feliz [...]

(CANIBAL, [1999])

Na metáfora alimentícia do “comeu meu coração”, ser devorado pelo outro funciona como um desejo ideologicamente identificado à mulher, ao passo que o desejo de devorar funciona como um comportamento do homem. A passividade feminina e a atividade masculina

seriam contrapartes dessa relação amorosa caracterizada pelo canibalismo machista. De qualquer forma, comer o coração da mulher ainda é um devorar o outro sob o manto da formação ideológica romântica, uma vez que o gesto de comer/devorar ainda é visto como um gesto de amar e vice-versa. Na maioria das letras cantadas por Ivete, assim como o ideal que domina a axé music, luxúria e afeto ainda estão imbricados. Entretanto, no discurso da música carnavalesca baiana chamada de Pagode baiano e de Pagofunk, a ambiguidade amar/devorar se desloca da formação discursiva do romantismo e deriva para o gesto machista dominante do ato de “comer”, com a dominância dos sentidos na subjugação sexual, na sujeição aos desejos do homem, que se apresenta como um predador de mulheres, aquele que as “pega” e “come”. Esse é o teor que domina os sentidos de outra canção cantada por um dos principais representantes do Pagofunk, o grupo Black Style:

SD (47)

A Patricia já comi ,Debora já comi A Luciana já comi , a fernanda já comi A Cristiana já comi, Juliana já comi A paula já comi ,Carla já comi Adriana Já comi ,Yasmin já comi A Patty já comi ,Daniela já comi Valesca já comi ,Verusca já comi [...]

Adriana Já comi, Luciana já peguei , a Fernanda já comi ,Cristiana já peguei , Debora já comi , a Valesca já peguei A verusca já comi , a sonia já peguei A Patricia já comi , A Carla já peguei A Paula já comi , Cristina já peguei Andreia já comi,Hey ja peguei

(O ÍNDIO VIROU CANIBAL, [2012?])

Nessa canção, o sujeito do discurso se ocupa com a enumeração das suas presas, isto é, das mulheres que foram subjugadas sexualmente por ele, fazendo do verbo “pegar” uma paráfrase de “comer”. O gesto de leitura realizado pelo sujeito do discurso – ao apresentar as mulheres que ele, como um bravo predador, teria “pegado/comido” – funciona ideologicamente como um canto de louvor ao poder do macho e, consequentemente, como um canto de humilhação à fêmea subjugada. O triunfo dele corresponde à sujeição dela. Como um guerreiro que derrotou o cacique da tribo rival e que, por isso, tem o direito de comer as carnes do inimigo, o homem derrota a mulher e, da mesma forma, “come”-a. A exaltação do herói indígena produz o sentido de um reconhecimento de sua coragem e bravura por sua tribo, que lhe rende o status

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de guerreiro valente e respeitado. Já o canto/discurso que faz ecoar no auditório social o poder do macho que submete sexualmente várias fêmeas tem a função de reproduzir a dominância do masculino nas relações interpessoais que envolvem homem e mulher. Assim, o ritual canibal indígena humilha a tribo rival vencida, ao passo que o canibalismo machista impõe humilhação à mulher subjugada sexualmente.

Paráfrase de “pegar” e “comer”, o verbo “traçar” aparece no título da canção “É nós que traça”, em cuja letra o discurso misógino produz uma deriva de sentido que lembra a ação corrosiva das traças, larvas de insetos que se alimentam de papel, tecidos etc. Os sentidos da deglutição e da destruição pelas pragas parasitas se deslocam para o campo das relações sexuais entre homens e mulheres, aqueles assumindo a posição das traças e estas, a de objetos corroídos. A capacidade parasita de corroer e triturar coisas sorrateiramente alcança o corpo da mulher, o novo objeto a ser “traçado” pelo homem/traça, tal como podemos depreender da letra da canção:

SD (48)

Lá na rua tem um vacilão, que pousa de gatão Passa dado a mão, pegada de patrão

Mas tomou virotão mão!

Não sei como aguenta tomar de 500 Mas eu to ligado

Que a mina do bacana faz ele comer banana Eu não quero saber, mas vou escaldar você Vou falar da sua vida porque já falou da minha Você pousa de gatão, mas a sua pretinha É voce que beija, ela me deseja

É voce que abraça, é nois que traça É nois que traça, é nois que traça Sua pretinha é nois que traça (2x) E o vacilão passa dado a mão

Pousado de gatão, bem no meio da praça É nois que traça...

(É NÓS QUE TRAÇA, [2012?])

O discurso hedonista-misógino não se cansa de representar a mulher em situação que permite colocar sob suspeita sua conduta como namorada ou esposa, cuja vida sexual instaura conflitos entre homens. Desta feita, a banda Guetto é Guetto coloca em discurso a namorada “infiel”, que estaria mantendo relações sexuais paralelas ao namoro. Na linguagem da gíria, o discurso misógino representa o namorado como um “vacilão”, o homem ingênuo que anda pela

rua de mãos dadas com a namorada, apesar de tomar “virotão”, isto é, de a namorada virar a noite com outro. Para o discurso misógino, apenas um “vacilão” aguenta “tomar [duas] de 500”, ou seja, não se rebela contra os “cornos” postos pela mulher “adúltera”. Como o namorado não reage, o gesto interpretativo do discurso misógino rebaixa-o: “a mina do bacana faz ele comer banana”, sequência discursiva cujos efeitos de sentido metafóricos sugerem a mediação da mulher no trabalho simbólico de desmoralização do homem. Por inferência, deduz-se que, ao beijar a boca da namorada, que teria abocanhado a “banana/o membro” do amante (sexo oral), o namorado também estaria “comendo” da mesma fruta/pênis.

Ressoa também nesse discurso misógino efeitos de sentido relacionados aos conflitos de classe, na medida em que a voz masculina do amante se refere ao namorado da “mina” como um “bacana”, que tem “pegada de patrão” e que “pousa de gatão”. Por um lado, essa descrição/ interpretação recupera a imagem do homem bem posicionado socialmente (o “patrão”), cuja beleza de aparência física (“gatão”) traduz os privilégios de sua classe (o “bacana”). Por outro lado, o amante se apresenta na primeira pessoa do plural, usando uma expressão popular comum entre as classes periféricas (“É nóis”), como se quisesse demarcar sua posição de classe em conflito com a posição social do “patrão”. Assim, sob a forma de uma vindita decorrente de desentendimentos pretéritos (“Vou falar da sua vida porque já falou da minha”), o amante materializa sua vingança pela posse sexual da namorada do outro: “É nóis que traça, é nóis que traça / Sua pretinha é nóis que traça”.

Nesse conflito entre homens, a mulher fica reduzida a mero objeto, propriedade cuja posse por terceiros rebaixa e desmoraliza seu “proprietário”. Em se tratando de mulher “pretinha”, a memória da exploração sexual no nosso passado escravista produz seus efeitos de sentido, como se o corpo feminino ainda não tivesse conquistado alforria do domínio machista, verdadeira traça a corroer a emancipação feminina. A ênfase nesse gesto masculino dominador abre um espaço de atuação para escolhas alternativas de dominação em que o ato de “pegar”, “comer” e “traçar” vem acompanhado de outras metáforas alimentícias, criando derivas de sentido relacionadas ao canibalismo machista, a exemplo de “Mama eu”, título de outra canção cantada por Black Style:

SD (49):

Que delííííícia!

Mama eu, mama eu, mama mama mama eu (2x) [mama eu, mama eu, mama mama mama eu (2x)] As novinhas de hoje em dia

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Elas ficam facilnho no pagode Já era ou já é

Não se troca o telefone Não te dá o msn É meu barco do amor Apertando sua mente Chama ela no cantinho Descobriu é perigoso Ela vai descendo E vai fazendo gostoso Que delííííícia!

Mama eu, mama eu, mama mama mama eu (2x) [mama eu, mama eu, mama mama mama eu (2x)] A mulher que já passa dos trinta

Fica esperta ou só lamento As novinhas de hoje em dia Estão acabando o casamento Parece ser tão singela Com jeitinho carinhoso Ela domina seu macho Só fazendo gostoso [...]

(MAMA EU, [2012?])

A sequência discursiva inicial, “Que delííííícia!”, descreve/interpreta o ato do sexo oral a partir de um ponto de vista filiado ao universo dos desejos e prazeres masculinos, ao mesmo tempo em que introduz sentidos relacionados ao canibalismo machista e suas metáforas alimentícias. Ela funciona como uma paráfrase de “Que gostosa!”, adjetivação cujos sentidos dominantes habitam a fronteira ambígua da alimentação e da prática sexual em gestos que descrevem/interpretam a beleza física ou corporal das mulheres. São sensações de prazer derivadas do ato de “comer” algo ou alguém. As reiteradas solicitações do sujeito do discurso apresentadas logo após (“Mama eu, mama eu, mama mama mama eu”) permitem compreender os sentidos da sensação de prazer que ele expressa na sequência discursiva inicial (“Que delícia”). Tais súplicas reiteradas simulam o ritmo dos movimentos realizados pela “novinha” que abocanha o membro masculino, de tal maneira que se torna possível relacionar a sensação de prazer inicial com sua causa determinante imediata (a prática do sexo oral).

Muitos sentidos atravessam esse dizer, cuja memória mais longínqua faz regressar à cena materna da amamentação, os seios da mãe constituídos como o primeiro objeto de desejo da criança ou como sua primeira fonte de prazer. Ao dizer “mama eu”, a finalidade posta pelo

sujeito do discurso parece ordenar a “novinha” a regressar à experiência deleitosa no seio materno, só que por meio de uma substituição do objeto de desejo: em vez do seio materno, ela deve “mamar” o membro masculino. Na cena da amamentação materna, a mulher-mãe sacia os desejos do outro (a criança), que lhe suplica os seios através do choro; já na cena de sexo oral criada pelo discurso de Black Style, o homem põe para a mulher (“novinha”) a alternativa de abocanhar seu membro. Em ambas as cenas, embora a mulher possa sentir prazer em objetivar as alternativas postas pelo choro da criança ou pela ordem do homem, ela o faz por iniciativa de outrem. No caso específico da letra da música em questão, em princípio, a mulher atende a desejos alheios, na medida em que a voz desejante se apresenta no masculino e silencia os desejos femininos. Dessa forma, o que fica posto para a feminilidade é a alternativa de uma resposta que satisfaz os desejos do homem como um fim em si mesmo, não como uma experiência de prazer compartilhada.

Portanto, os sentidos trabalhados na canção “Mama eu” reforçam a visão masculina da mulher como mero objeto de prazer sexual. A posse desse “objeto”, tal como interpreta o sujeito do discurso, parece resultar de uma análise ou de um cálculo que aponta quais mulheres são mais vulneráveis às investidas masculinas com a finalidade de obter prazer fácil. Para ele, o flanco que apresenta menos resistência são as novinhas (“As novinhas de hoje em dia / Você já sabe como é que é / Elas ficam facilnho no pagode / Já era ou já é”), uma vez que “A mulher que já passa dos trinta / Fica esperta ou só lamento”. A alternativa de aproveitar-se da inexperiência das “novinhas” para transformá-las em objeto de prazer sexual, no gesto de leitura realizado na referida canção, objetiva-se por meio de uma pressão psicológica masculina: “É meu barco do amor / Apertando sua mente”. A alternativa que coloca crianças e adolescentes como alvo no discurso hedonista misógino, que atravessa as letras da música carnavalesca baiana, será mais bem analisada a seguir.

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