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5 O RECRUDESCIMENTO DO DISCURSO MISÓGINO NA ESCALADA DA

5.5 Intolerância discursiva ao “mercenarismo feminino”

5.5.2 Efeitos de evidência do mercenarismo feminino: a eloquência das coisas

Quando pensamos o processo histórico, político e ideológico por meio do qual o sujeito e os sentidos se constituem, demarcamos o lugar teórico de nossa análise, ao afirmar que as formações ideológicas materializadas nas formações discursivas oferecem “‘a cada sujeito’ sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas – experimentadas” (PÊCHEUX, 2009, p. 149). Na canção “Melô da Pop 100”, para permanecer no campo dos meios de transporte, o tópico discursivo do mercenarismo feminino, como uma evidência colada à realidade fenomênica, atualiza-se mediante uma descrição/interpretação detalhada do comportamento usurário da mulher, cuja evidência dos sentidos se apresenta em relações estabelecidas tendenciosamente de acordo com o poder econômico dos homens. A ordem fenomênica do mundo falaria por si, pois as relações interpessoais teriam motivações evidentes, reveladas pela eloquência das próprias coisas. Eis o que diz a letra da canção:

SD (59)

Você lembra daquela menina que te apresentei, ela ta iludindo nosso amigo Valnei.

Ela pega um cara que do crime é soldado, tem uma casa de praia e um carro importado. Já falei pra esse cara: ela gosta é de grana, ela usa Armani e Dolce & Gabanna.

Amigo a vida é assim, a gente vale o que tem, ele tem uma Tornado e você só tem uma Pop 100. Ela gosta, ela gosta de dinheiro.

Ela gosta, ela gosta de dinheiro. (2x)

Ah, meu amigo Valnei porque você não desisti? Tem um Chevette velho, no bolso uma nota de 20. O meu papo é reto, esse é meu dilema,

ele usa Azzaro e você Alfazema. Escute negão, então pare e pense,

ele usa Nike e Adidas e você Turbulance. Escute Valnei, se ligue em mim,

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mulher gosta é de dinheiro, quem come madeira é cupim. Ela gosta, ela gosta de dinheiro.

Ela gosta, ela gosta de dinheiro. (2x) (MELÔ DA POP 100, [2010?])

Segundo o vocalista do grupo Black Style, seu amigo Valnei estaria sendo “iludido” por uma “menina” que, por motivações interesseiras, mantinha relação paralela com outro homem que “tem uma casa de praia e um carro importado”. Como amigo, o cantor já teria advertido o Valnei de que “ela gosta é de grana, / ela usa Armani e Dolce & Gabanna”, de maneira que a melhor alternativa para o “iludido” seria, pois, aceitar que “a vida é assim, a gente vale o que tem, / ele tem uma Tornado e você só tem uma Pop 100”. Além de retomar o mote da intolerância ao adultério feminino, o que equivale a reafirmar a imposição da monogamia apenas às mulheres, a posição-sujeito a partir da qual o vocalista realiza essa descrição/interpretação apresenta uma lógica interna que naturaliza a perversidade das relações sociais capitalistas, por meio da qual fica silenciado o intenso processo social de mercantilização das relações humanas.

O primeiro equívoco dessa lógica perversa consiste em conceber a mulher como um ser mercenário por natureza (“Ela gosta, ela gosta de dinheiro / Ela gosta, ela gosta de dinheiro”), avaliando-a como uma usurpadora congênita, na medida em que não se levam em consideração as condições materiais de sua existência. Tal naturalização se amplia para toda a existência humana, uma vez que, para o sujeito do discurso, “a vida é assim”, o que revela, pelo menos, duas coisas significativas: 1. Uma leitura do real ideologicamente comprometida com a aceitação e a reprodução da ordem social capitalista; 2. Uma generalização dessa ordem social como a única experiência histórica e como única alternativa possível à vida humana.

Tendo em vista o movimento tenso e contraditório dos sentidos, nesse discurso se esboça um entendimento superficial do processo de mercantilização das relações humanas, no qual as nossas relações sociais se convertem em relações entre coisas ou mediadas pelas coisas; afinal, segundo a letra daquela canção, “a gente vale o que tem”. Contudo, a superficialidade desse entendimento, que naturaliza a coisificação do humano, impede a compreensão do comportamento mercenário feminino como resultado de finalidades postas e de escolhas alternativas objetivadas pela sociedade capitalista, tal como Lukács (2013) concebe a sociabilidade humana. Para ter essa compreensão, é preciso ver que – numa sociedade em que a posse de coisas, o poder de consumo, a maximização de lucros, o acúmulo de riquezas constituem a finalidade da existência humana – a ambição pela posse de mercadorias suplanta

qualquer valor humanitário e submete as nossas relações às leis de mercado. Como os valores impregnados na consciência dos sujeitos não caem dos céus, mas de suas condições materiais de existência, os interesses que motivam as relações interpessoais de homens e mulheres sofrem os efeitos do processo geral de mercantilização das relações humanas na sociedade capitalista. Ostentação e mercenarismo são valores típicos desse modelo de sociedade.

Presa ao empirismo ou ao fenomênico das relações sociais capitalistas, a estratégia de argumentação usada na letra da canção para persuadir o Valnei de que a melhor escolha seria desistir de sua relação com a “menina” consiste em apresentar o que podemos chamar de a eloquência das coisas, como um efeito de evidência produzido pelo discurso sobre o mercenarismo feminino. Assim como uma moto “Pop 100” não compete igualmente com uma “tornado”, seus proprietários disputariam a mesma mulher ocupando posições sociais desiguais, com a previsível derrota do primeiro. Os demais bens de um e de outro seriam eloquentes o suficiente para a persuasão do “amigo”, ao qual a voz do vocalista faz a seguinte advertência: “Ah, meu amigo Valnei porque você não desisti? / Tem um Chevette velho, no bolso uma nota de 20 /(...)/ ele usa Azzaro e você Alfazema / Escute negão, então pare e pense, ele usa Nike e Adidas e você Turbulance”. Esse discurso afirma que o poder econômico do homem é o maior trunfo para seduzir mulheres, não porque a mulher está sujeita às interpelações ideológicas da ordem capitalista, mas simplesmente por sua propensão natural ao mercenarismo.

A identidade étnica do amigo (“Escute negão”) abre outro filão de sentidos que acrescenta aos conflitos de classe, a memória problemática do racismo. Sendo negro, o Valnei pertence a um grupo social historicamente discriminado, inferiorizado e marginalizado, razão pela qual a voz que canta fica ainda mais convencida da posição desvantajosa que o “amigo” ocupa na disputa pela “menina” usurária. Sabe-se que o racismo serviu e serve para legitimar desigualdades socioeconômicas na estrutura social brasileira, causando um prejuízo imensurável não só para as condições materiais de existência, mas também para a imagem social de negros e negras, submetidos a um simbolismo que os representa negativa e pejorativamente. Numa canção afetada ideologicamente por tudo isso, o sujeito do discurso aceita a ordem estabelecida, não esboça nenhuma crítica ao antagonismo de classes fundado sob a assunção do patriarcado, nem à opressão étnica remanescente de nossa história escravista. Como só percebe o que se apresenta na superfície das relações sociais (a eloquência das coisas), seu gesto de leitura das relações interpessoais parece confirmar a tese trabalhada amiúde no discurso musical do momento: mulher é um ser mercenário (“Ela gosta, ela gosta de dinheiro”).

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Na canção “Delegado”, a Banda Luxúria desenvolve essa tese através da mesma estratégia discursiva que produz os mesmos efeitos de evidência fundamentados na eloquência das coisas:

SD (60)

[...]

Eu gosto de mulher, eu gosto de luxar O meu carro é rebaixado

As minas piram pra entrar [...]

Vem beber Whisky, vem ver como rico vive Vem andar de Ferrari

E depois de Mustang

Usa Dolce & Gabbana, Lacoste e Armani [...]

Enche o copo de Whisky, agora vire e tome Ô tome, tome, tome, ô tome, tome, tome [...]

(DELEGADO, [2014?])

Os complementos do verbo gostar, no primeiro verso da SD (60), revelam os valores de um sujeito discursivo que correlaciona mulher e luxo como objetos de seu desejo. Como argumento mais utilizado para seduzir e conquistar mulheres, o carro rebaixado funciona ideologicamente como símbolo do poder econômico masculino, por isso serve de isca para fisgar as “mercenárias”. Assim a sedução se faz sempre mediada por coisas que não estão ao alcance de todos, de maneira que, para consumir os produtos à disposição das classes privilegiadas, a mulher deve aceitar as regras do comércio sexual legitimado pela ordem capitalista: “Vem beber Whisky, vem ver como rico vive / Vem andar de Ferrari / E depois de Mustang / Usa Dolce & Gabbana, Lacoste e Armani”. A estratégia sedutora parece infalível segundo o gesto interpretativo realizado pelo sujeito do discurso, que indica os termos da transação dos prazeres, bem como qual parte compete ao homem e qual cabe à mulher: “Enche o copo de Whisky, agora vire e tome / Ô tome, tome, tome, ô tome, tome, tome”.

O efeito de ambiguidade se efetiva mediante uma estratégia discursiva pela qual o sujeito do discurso diz A com a intenção de que sua audiência social entenda B. Ele coloca para as mulheres a alternativa do consumo de bebida alcoólica, fazendo o verbo “virar” significar no sentido de tomar, de uma só vez, o copo cheio de whisky. Ao mesmo tempo, outra alternativa fica sugerida, com uma deriva de sentidos dos verbos “virar” e “tomar”, os quais passam a significar, respectivamente, a posição e a penetração sexual. Virar e tomar o copo de whisky se confunde com a alternativa de a mulher ficar de costas (“agora vire”) para ser penetrada pelo

homem (“e tome, tome, tome”). Os atos de beber e copular se confundem e se complementam, na medida em que, nessa canção, é possível também compreendê-los como ações recíprocas que atendem à finalidade posta pelo homem: oferecer às mulheres prazeres alucinógenos em troca do prazer sexual, sob a forma de um comércio hedonista que não recebe mais o rótulo de prostituição devido à naturalização e legitimação do processo de mercantilização das relações humanas pela sociedade capitalista atual.

Luxúria é a banda baiana que mais fez dos valores típicos da sociedade capitalista a ideologia dominante em seu discurso. Tal filiação ideológica se materializa também no título da canção “É o poder da ostentação”, na qual ostentação masculina e mercenarismo feminino reaparecem como faces de uma mesma moeda ou como contrapartes necessárias ao comércio hedonista moderno. Ostentar é fazer ver sua posição de classe com o intuito de demarcar sua superioridade em relação ao restante da sociedade. Portanto, ostentar discursivamente é dizer e defender privilégios de classe. É ocupar a posição cínica de quem exibe seu poder econômico e sua capacidade de consumo sem jamais se preocupar com as privações e com a falta do elementar para os outros. Essa prática social egoísta virou a maior virtude do momento atual, sem nenhum questionamento a respeito do quanto esses valores tornam as nossas relações sociais descartáveis.

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