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4 A DOMINÂNCIA DA IDEOLOGIA HEDONISTA NO DISCURSO MUSICAL

4.1 A ideologia do “materialismo hedonista”

Aquilo que se apresenta como evidência quase sempre tem um poder imenso de reivindicar o estatuto da verdade, tal como sugere o aforismo do empirismo jurídico segundo o qual contra fatos não há argumentos. É fato que o ser social habita um corpo físico, uma matéria natural: carne, ossos, sangue, artérias, nervos, cérebro, vísceras, intestinos etc. A articulação de células, tecidos, órgãos e sistemas dá vida ao corpo, que adquire força e energia pela ingestão, digestão e combustão de alimentos e assim tem garantida sua vitalidade. O real, para o materialista hedonista, situa-se nos limites específicos dessa matéria, o corpo físico sendo a medida de todas as nossas necessidades e verdades mais profundas.

Desse modo, os imperativos da natureza determinariam as condutas, os temperamentos, os comportamentos, de tal forma que cada ser vivo singular, visando à sua felicidade egoísta sem contrariar sua própria natureza, deveria atender, irrestritamente, às pulsões da libido, buscando realizar todos os desejos e deleitar-se com todos os prazeres, evitando a dor e o sofrimento resultantes dos recalcamentos impostos pela ordem da cultura, pelos valores morais e pela concepção ascética do mundo, que impede a livre realização de todos os desejos e prazeres, para a infelicidade dos materialistas hedonistas das sociedades ocidentais, entre os quais

encontram-se, com efeito, exibicionistas, bêbados, pederastas, sodomitas, monges e monjas ateias, músicos vagabundos, médicos exilados, libertinos presos, sonhadores de cidades ideais, devoradores de esperma, poetas que

morrem de indigestão ou se batem em duelo, travestis que impregnam o corpo de perfumes. São os mesmos que professam o ateísmo, o materialismo, o vitalismo, o estetismo. Eles elegeram o banquete ou o cabaré contra a Academia ou a Universidade, a prisão ou a fogueira contra a Instituição ou a prebenda (ONFRAY, 1999, pp. 235-236).

O debate em torno da alternativa hedonista remonta à Antiguidade Clássica, na qual o ideal de uma vida de prazer (hedonista) se coloca como caminho para uma vida de felicidade (eudemonismo). Duas grandes vertentes se destacaram: a escola Cirenaica, fundada por Aristipo de Cirene, para o qual o prazer deve ser buscado em qualquer circunstância, ao passo que toda dor deve ser evitada; e o Jardim de Epicuro, que fez do prazer um ideal para a vida moral dos sujeitos, mas relativizou que nem todo prazer contribui para o equilíbrio e a temperança, bem como nem toda dor deve ser evitada, uma vez que há sofrimentos necessários para se alcançar determinados prazeres.

Onfray (1999) coloca Aristipo de Cirene na origem da ideologia hedonista, como uma espécie de pai ancestral de todos os hedonistas do Ocidente. O hedonismo da Cirenaica põe a alternativa da procura pelo agradável e do repúdio ao desagradável, uma vez que Aristipo prefere o movimento suave e agradável do prazer ao movimento violento e penoso da dor. Os prazeres ocupam lugar central em sua proposição ideológica e, como nenhum prazer é mais agradável que outro, todos eles devem ser buscados indistintamente. Não há, pois, para os cirenaicos, um prazer digno e outro indigno, nem existe um prazer mais grosseiro ou sublime que outro, na medida em que a satisfação do espírito tem a mesma importância que a gratificação do ventre.

A filosofia do Jardim de Epicuro rivaliza com a Cirenaica por compreender que o hedonismo deve se submeter ao signo da temperança, tendo o prazer o papel instrumental de evitar a dor e facilitar a conquista da sublime ataraxia, isto é, a plenitude do estado anímico depurado de qualquer perturbação, em nome da mais completa paz interior. Por isso Onfrey (1999, p. 242), utilizando-se de expressão nietzschiana, define Epicuro como “um modesto da volúpia”, criticando o ascetismo epicurista que, em seu gesto interpretativo, leva à destruição das paixões, dos desejos e das tentações voluptuosas. Enquanto a Cirenaica teria produzido uma filosofia positiva no sentido de ser uma autêntica afirmação da vida, o Jardim de Epicuro criou uma filosofia negativa pautada na sugestão ascética da renúncia.

Com a derrocada do paganismo clássico e a chegada da era cristã, o cristianismo, a religião de Cristo, levou até as últimas consequências o ideal de vida ascética em oposição ao ideal de vida material cultuado pelo hedonismo em todas as suas variações. A partir de então, ganha força a ideologia do ascetismo, que domina a vida de homens e mulheres que se entregam

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a macerações e colocam o corpo sob duras provações, levando ao extremo as lições dos evangelhos para “desprezar o corpo, detestar a carne, lançar o anátema sobre a matéria, odiar a vida, transformar a terra em deambulatório para débeis e frágeis, para miseráveis e doentes” (ONFRAY, 1999, p. 245). Assim, o cristianismo funcionou como aparelho ideológico que limitou as possibilidades do gozo, entravou a busca pelo prazer que a matéria corporal oferece e dificultou a mais plena atividade dos órgãos dos sentidos, portas abertas para as sensações deleitosas que a carne possibilita.

No entanto, ainda nos séculos II e III da era cristã, os chamados “gnósticos licenciosos” não deram ouvidos às imprecações que as Escrituras lançam contra o uso hedonista da carne e, contrariando a ideologia ascética cristã, “fizeram da fornicação e do adultério vias de acesso privilegiadas para a salvação” (Idem, p. 246). A finalidade soteriológica, isto é, de salvação ou redenção da humanidade, deixa de ter como único caminho a perfeição da alma, na medida em que outro gesto interpretativo e ideológico passa a opor a devassidão à ascese, considerando a primeira mais emancipadora que a segunda. Simão, o Mágico, foi um dos filósofos gnósticos cuja libertinagem deu outros sentidos para o princípio da caridade e do amor ao próximo. Em seu falanstério, cerca de trinta casais viviam em orgia partilhando o princípio segundo o qual “a devassidão é mais libertadora que a ascese” (p. 247). Na perspectiva dos “gnósticos licenciosos”, “Deus não pode ter dotado o homem de potências para a imoralidade”, uma vez que ele não poderia, em sua extrema benevolência, ter criado os meios para a realização do mal. Assim, os “gnósticos licenciosos” sentem-se livres para entregar o corpo a todas as fantasias e prazeres que ele faculta ao ser humano, de maneira que a orgia passa a ser a via de acesso ao divino.

A história permitiu que a alternativa libertina tivesse uma longa posteridade, incluindo também a Idade Média. A imagem de um mundo medieval coeso e organizado sob o primado do ascetismo cristão se esfacela ante a ideologia libertina dos “Irmãos e Irmãs do Livre- Espírito”. Estes, tal como os “gnósticos licenciosos”, converteram o corpo em instrumento para se chegar à finalidade soteriológica, à redenção ou salvação da humanidade, negando-se a procurar a perfeição pelas vias tradicionais do ascetismo e suas práticas de macerações e jejuns. Os adeptos do “Livre-Espírito” esvaziaram o sentido de pecado da carne caro ao ascetismo cristão e exortaram “ao máximo de gozo aqui e agora”, através de toda e qualquer transgressão que forneça prazer: o roubo, o adultério, a gula etc. A ressurreição, para eles, não passa de um engodo cujo objetivo é ensinar a renúncia aos desejos em nome da hipótese de uma felicidade celestial (ONFRAY, 1999, p. 253). Em contrapartida, os adeptos do “Livre-Espírito” aconselham à satisfação dos impulsos naturais, pois, tendo sido dotado da capacidade do gozo

pela natureza, o homem não deve evitá-lo recalcando suas energias sensuais. Esse recalcamento é que constitui o mal na ideologia do “Livre-Espírito”.

Outra alternativa de instalação da ideologia hedonista no cotidiano medieval foi posta pela erótica do trovadorismo. O princípio do prazer orientava as Velentinadas e as Festas de Maio, durante as quais o casamento era colocado entre parênteses em nome de uma sexualidade libertina, que abria brechas na ordem social para atender à vontade libidinosa de gozar. Na Renascença, os “Sonetos luxuriosos” do italiano Pietro Aretino, que a tradição historiográfica cita como primeira fonte da pornografia moderna, também fazem da ideologia hedonista um instrumento político de combate à moral aristocrática. Sua prosa é igualmente colocada como um dos momentos fundantes da pornografia moderna no sentido de que ela traz uma representação explícita e realista de órgãos e condutas sexuais, tendo a intenção deliberada de transgredir a moral e os tabus sociais aceitos. Dessa forma, o século XVI legou aos séculos XVII e XVIII a tradição da pornografia política, na qual sodomitas e prostitutas ocupavam o lugar de observadores privilegiados e faziam críticas à ordem estabelecida. Naquele século houve também uma pornografia acadêmica, produzida por humanistas e destinada à elite ilustrada, cujo teor consistia em dissecar a política em termos sexuais (HUNT, 1999).

No século XVIII, destacam-se dois emblemas do materialismo hedonista: La Mettrie e Sade. O primeiro, um médico dedicado ao estudo de doenças venéreas, produz um materialismo que se singulariza mais pela procura do estado de satisfação posterior ao gozo do que pela busca do prazer em si. Para ele, o devasso visa ao excesso de prazer, que é mal saboreado, ao passo que o voluptuoso pretende a sublime voluptuosidade, a arte de saborear do prazer com sabedoria, distinguindo entre a flor (o prazer) e seu cheiro (a volúpia) ou entre o instrumento (o prazer) e seu som (a volúpia). Em seu hedonismo estetizado, o usufruto do gozo exige refinamento e sutileza, não devendo ser o desejo satisfeito de maneira grosseira e rude. A centralidade da matéria corporal leva La Mettrie a definir o cérebro como “a víscera do pensamento” (ONFRAY, 1999, p. 273). Portanto, para ele, não há reflexão, espírito, imaterialidade em si, uma vez que tudo está submetido às leis naturais da matéria soberana.

O segundo emblema, o Marquês de Sade (que as instituições insistem em enquadrá-lo no campo da pornografia ou, quando por condescendência, na área do erotismo) teoriza sobre a matéria, a necessidade e a imanência. Na alternativa hedonista radical de Sade, não há lugar para Deus, para o espírito e tudo que constitui o ascetismo cristão. Ele desconhece a noção de pecado, o erro, o recalcamento e o sentimento de culpa. Nesse sentido, sua ideologia hedonista se situa para além do bem e do mal e, por outro lado, antecipa o dilema do mal-estar identificado pela teoria freudiana, resultante da derrota do princípio do prazer pelo princípio de realidade.

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Para Sade, os sujeitos são governados apenas pelas leis da necessidade, a matéria agindo como um tirano imperioso que submete o real a seus princípios. Por isso, na cama, todo homem desejaria ser um tirano.

O denominado “materialismo hedonista”, no geral, corresponde a uma resposta zombeteira à austeridade da vida social, uma derrisão cuja ironia demole a ordem dos poderes. O caráter político e ideológico do materialismo hedonista deve ser compreendido como uma alternativa posta por sujeitos que, lutando sarcasticamente contra os valores da ordem estabelecida, idealizam uma outra organização social cujos valores cultivados não impeçam um ideal de vida boa como vida de prazer. São pensadores, ideólogos e apologetas que pensam de fora da ordem e contra a ordem. Isso faz toda diferença quando pensamos a ideologia do hedonismo materialista à qual pensamos se filiar o discurso da música carnavalesca baiana, no qual os sujeitos se posicionam de dentro da ordem e a favor da ordem capitalista.

A ideologia hedonista, em suas variadas e históricas formulações, pretende que o ser humano possa desfrutar dos prazeres que a vida oferece imediatamente, sem adiar a felicidade para um futuro ascético ilusório. Mas, quando cooptada pela ideologia do capital, ela passa a atender a outras finalidades relacionadas ao mundo dos lucros comerciais. O prazer se mercantiliza. Desse modo, seja qual for a coloração que a ideologia hedonista adquira no discurso musical baiano (mais sensual e erótico ou mais obsceno e pornográfico), seus sentidos, com momentos raríssimos de exceção, estão impregnados de valores que favorecem a reprodução de uma lógica excludente e opressiva, na qual a busca pelo prazer perde toda sua força positiva e afirmativa da vida defendida pela tradição hedonista para descambar na direção de preconceitos e discriminações necessários à manutenção da ordem social capitalista.

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